terça-feira, 19 de julho de 2016

Alemanha ano zero, por Jean Narboni


Nada é mais entediante do que certa mitologia desenvolvida em torno de Rossellini desde uma dezena de anos, mitologia à qual aliás- por “tipo”, lassidão, ou simplesmente pelo desejo de que o deixem em paz?- ele mesmo se prestou de boas graças. Nada é mais entediante do que esta mitologia do diretor de consciência universal, de corretor navegante entre um estoque de saber imemorial e povos supostamente famintos por cultura e de comunicação, ou de apóstolo dispensando a boa nova a uma corte de discípulos que concorrem entre si pela herança. A projeção de Alemanha ano zero permitiu-nos restituir do cineasta uma imagem, senão mais próxima de uma verdade, pelo menos infinitamente mais excitante: de um homem mais preocupado em agir que em pregar, e  mais de agarrar o mundo que de contemplá-lo, desbravador de terreno, explorador, cartógrafo e até um pouco aventureiro, assombrado pelo sentimento do provisório e da precariedade. Como não ser sensível, ao ver este filme concebido, decidido, rodado às pressas,- e, pode-se mesmo dizer, conquistado-, ao que ele manifesta de uma necessidade, de uma coerção íntima- em uma palavra, de uma urgência- que são talvez de uma obra de arte, mais do que os temas que desenvolve, mais mesmo que sua escritura, a sua parte infinitamente preciosa? Seria necessário, ao falar de Alemanha ano zero, tentar restituir um pouco da velocidade e da turbulência que o animam, de onde provém, durante a projeção e ao seu termo, a impressão extenuante, sufocante- fôlego entrecortado- de tê-lo, não visto, mas acompanhado em sua corrida. As reações do público, muito numeroso esta tarde, não deixavam nenhuma dúvida neste ponto.

Durante certo tempo no Cahiers, debatemo-nos na alternativa entre um cinema da transparência, que não conservaria nenhum traço de seu processo de produção, e um cinema que inscrevesse em si a marca de seu trabalho constitutivo. A este respeito, Rossellini- de quem se conhece a frase: “as coisas estão aí; por que manipulá-las?”-era tido como o cineasta por excelência da transparência. Alemanha ano zero, no entanto, torna vã ou ultrapassa esta oposição, pois sem dúvida não conserva traço de nada, já que é de parte a parte a anulação em ato dos traços de sua passagem. Em seu célebre artigo, Rivette escrevia antes que não se guardava dos filmes de Rossellini nenhuma memória dos enquadramentos, de imagem ou de plano, mas apenas de um traçado, uma linha implacáveis. Alemanha ano zero progride como uma devastação, um rastro de poeira que devora a si mesmo. O que conta o filme aliás senão o movimento de um “traço de passo” a um “nada de traço” ( “un trace de pas à un pas de trace”), que ele nada é senão uma versão moderna e atroz do Pequeno polegar, onde a criança, uma vez seu parricídio realizado, tentaria reencontrar nos escombros de uma cidade devastada algumas frágeis referências; depois, sentindo-as esquivar-se uma depois da outra, se deixaria propriamente morrer?

Impossível, sobretudo nos limites de uma nota, dar conta de semelhante filme. Eu me concentrarei em um ponto. Qual cinema não cessamos de defender aqui, e  contra que outro cinema? Um cinema da inscrição verdadeira, da picada cruel da letra, da experiência da passagem ao ato e da tomada à palavra, contra o implícito e o subentendido, a alusão e a metáfora. A extrema modernidade de Alemanha ano zero se deve talvez à realização radical deste programa. É certo que é por ter levado a sério o discurso nazista de seu antigo professor sobre a necessidade de livrar o mundo dos doentes e dos fracos que a criança realiza seu crime. Mas se só dissesse isso, o filme não escaparia desta maneira ao sentimentalismo das ficções sobre o abandono, a sedução, a dedicação e a morte das crianças. Sua crueldade, seu humor- sim, seu humor- se devem também ao fato de que a criança é sempre mostrada sob a tenaz de vários discursos de ordem e de incitação, portanto um discurso familiar,e  é entre eles que constrói sua rota como sobre um fio: discurso, no momento do crime por exemplo, do professor nazista é claro, mas também lamento repetido do pai sofredor: “valeria mais que eu morresse, sou uma carga para vocês, etc”. E este humor terrível é mais eficaz, mais violento que toda denunciação de uma ordem política ou da sub-reptícia manipulação familiar, se é verdade que o humor é aquilo que não se opõe à lei, não a contesta, não se insurge contra ela mas, realizando-a estritamente e conduzindo-a às suas últimas conseqüências, expõe de forma ainda melhor a sua verdade cruel e obscena.


Jean Narboni, Cahiers du cinéma, 290-291, julho- agosto de 1978

Tradução: Luiz Soares Júnior


A moça com a valise, por Louis Skorecki




Quando a palavra “Fim” se inscreve na tela, o que nos dizemos ( por menos sentimental que se seja)? dizemos: “Isso acabou mal, e eu amaria que tivesse acabado bem- mas no entanto eu sabia desde o começo que não poderia ter acabado de outra forma”. Zurlini- seu cinema- se apóia quase que inteiramente nesta reflexão e em suas conseqüências. Quando o fim ( de uma história, de um filme) não é propriamente inelutável, podemos sempre, como último recurso de sentimentalismo, colocar o desenlace entre parênteses,imputá-lo a um artifício de roteirista, ou mesmo sonhar, passando por cima do metteur en scène, um outro fim possível. Quando este fim está inscrito na própria história, naquilo que se dá desde o começo, não temos mais nenhum recurso à nossa disposição: só nos resta desesperar. Os belos filmes de Zurlini ( dentre os quais este se inclui) se empenham quase que exclusivamente em descrever, em negro e rosa, a imperceptível passagem do rosa ao negro: aqui, só se encena a dissolução das bochechas róseas, tudo está de antemão perdido, o  sentimental e o viscoso da adolescência se esmaecerão irremediavelmente sob a goma do tempo, só ganhamos da vida em derrisão e em “conforme às normas”: tudo acaba.

Assim com A moça com a valise: ele é rico mas jovem, ela é jovem mas pobre; ele a ama mas não sabe, ela não o ama porque sabe; quando ele sabe, não a ama mais, quando ela o ama, não sabe mais nada; ele é jovem e depois aprende, ela já viveu e depois esqueceu; tudo recomeça para ela até a decadência, tudo acaba para ele em um instante; ela permaneceu uma criança apesar das dificuldades, ele se torna um adulto apesar do conforto; tudo os separa, e no entanto tudo os reúne, no espaço de um segundo, na dimensão intemporal do despertar, antes que tudo se arruíne em uma conivência desencantada: “ eu sei que tu sabes”. Variações infinitas sobre o tema da passagem e a tese do contraste. Imobilismo regulamentar da fotonovela naquilo que possui de mais convencional. Convencional até lhe esposar totalmente o arbitrário e o traçado, a moral e o perfume. E, no entanto, existe bem e belamente subversão na operação de Zurlini, alguma coisa que faz derrapar a convenção, desregrar o propósito. O que?

Para começar, é mais fácil ver aquilo que não é: não são as liberdades tomadas para com os clichês ( ele é inocente mas logo se torna perverso, sacado; ela está longe de ser pura, e no entanto preservou dentro de si uma parte de pudor, uma parte de abertura para o sonho), tanto é verdade que neste domínio as liberdades e as variações se tornam em pouco tempo- é a lei do gênero- clichês tão fortes quanto aqueles de que queriam se descartar. Não se trata também da coloração um pouco mais política do que de costume ( ele pertence à juventude dourada, ela à juventude pobre e suja; ele possui a lei, a moral e a religião de seu lado; ela não tem nada do seu), pois também aí o fundo da fotonovela já está balizado, - não podemos fazer coisa melhor- por tais oposições, e das mais explícitas: o empregado e o patrão, o rico e o pobre, o fiel e o infiel, o crente e o ímpio, a ordem das coisas e sua impossível transgressão, a legitimidade e a revolta, o sonho e a realidade, etc. Não se trata muito menos do pessimismo da situação e o trágico de seu desenlace: atrás dos fins água de rosa dos folhetins mais sentimentais mascaram-se dificilmente as angústias mais intransponíveis, as separações e os antagonismos de classe mais definitivos, uma inverossimilhança radical de natureza mais desesperada e desesperante que o desespero confessado, justamente porque informulada. Então, o que derrapa e desregra em Zurlini?

Avancemos uma hipótese: nada. Ao colar à pele das convenções e de seus personagens como o faz, Zurlini compõe um mundo irreal que desnatura a platitude do original, que de certa maneira o media: é um pouco como se, ao estatismo da fotonovela, acrescentasse uma dimensão suplementar- a do élan sentimental que lhe empresta o leitor. Ele é assim o organizador e o organizado de uma ficção de ficção: engaja-se no corpo de seus personagens para cometer o delito supremo ( e o corpo de delito não é outro senão o filme), que consiste em fazer crer naquilo que fazem, de vibrar ao mesmo tempo que eles no diapasão improvável de suas paixões. A fotonovela se anima e adquire vida: a lavadeira espera o ônibus, Mickey salta do trem para abraçar sua mãe, o jovem aristocrata desenlaça o corpete da lavadeira, uma bomba de efeito retardado explode no coração da jovem. Os mutantes estão entre nós.

Louis Skorecki, Cahiers du cinéma 298, março de 1979

Tradução: Luiz Soares Júnior




terça-feira, 12 de julho de 2016

Eva, por Michel Mourlet


O criminoso, que ontem foi acolhido pela crítica parisiense como o melhor filme de seu autor, não era um bom filme, mas Eva nos convida hoje a considerá-lo como um filme importante, em relação à evolução geral da obra de Losey. Esta evolução vai no sentido de uma proximidade crescente da epiderme e do grão dos objetos, aliada aos mais definitivo conhecimento de si. Mas enquanto que um método era experimentado em The criminal – e apenas um método, para a descrição dos personagens e a expressão do conteúdo dramático do cenário, método que desenvolvia uma violência muito artificial que captava os momentos descontínuos de um homem surgido e retornando ao nada, sem nenhum eixo que viesse ordenar e imprimir um peso a seus gestos esparsos-, passa-se em Eva uma sedimentação desta forma nova, que encontra sua matéria e seu peso.
Podemos abordar este filme de três principais maneiras, que o caracterizam forçosamente: pelo movimento de sua dramaturgia, pelo método de descrição, pela natureza e elevação de tom do debate. Estando entendido que estas explicitações da análise, que recortam de forma relativamente arbitrária um élan único de inspiração e de trabalho, só pretendem indicar um certo número de referências sobre um terreno vasto e vário.

I Movimento da dramaturgia. É preciso compreender por estas palavras a operação que consiste em Losey em escolher, no curso dos eventos, os atos ou estados privilegiados, orientados diretamente no sentido do drama, as ramagens mais avizinhadas da raiz do mal e ainda vibrantes pelo efeito do abalo central. É  a dramaturgia natural do relevo, comum a todos os filmes de Losey, e que oporemos à dramaturgia em cavidade onde, por coquetismo intelectual, aquilo que é inútil ou acessório é sublinhado, os tempos fracos cultivados e a expressão voluntariamente não significativa. Em Eva, pelo contrário, e com ainda maior determinação, não há um único elemento, por mínimo que em aparência seja, que não concorra ao crescimento da tensão, nenhum grão de areia que não extirpe um pouco mais da pele. O tratamento do tempo se inscreve logicamente nesta escolha: esposa da forma mais íntima aquilo que Bergson chamava de duração: não o tempo abstrato dos relógios mas aquele real dos batimentos do coração.Tal cena passa, breve como o agudo do prazer; esta outra se estira ao longo da angústia: jamais sair do concreto, depositado nesta espessura da vida e das coisas.

II Método de descrição. Este evoluiu muito desde The boy with Green hair, tanto no que concerne aos personagens como ao cenário. Os personagens, muito classicamente pintados durante o período americano- explicados, justificados, sob os ângulos psicológico e moral-, são pouco a pouco extirpados destas explicações até se tornarem em Eva puros momentos de surgimento do ser, imediatos e fechados sobre si mesmos, salvo durante as evasões de reflexos, de palavras e de paixão que unicamente na vida nos permitem descobrir um desconhecido. Reencontramos aqui a vontade de se dirigir ao mais concreto, e o mais brutalmente possível, sem nenhuma das mediações habituais da narrativa. Esta mesma vontade conduz a câmera quase a tocar a superfície opaca da água, a rugosidade de uma escultura, o polido de um crânio calvo, a valorizar os detalhes sem no entanto perder de vista o conjunto, que permanece sempre presente. É aliás este poder de fazer pesar a totalidade sobre cada fração em si mesma que se constitui em um dos traços essenciais do gênio de Losey.

III. Natureza e elevação do debate. As características precedentes, nós já havíamos visto, encontravam-se já, mais ou menos afirmadas, em The criminal e em menor grau em Blind date. No entanto, Criminal havia aparecido a alguns dentre nós como um exercício de estilo excessivamente gratuito, distanciado das fontes profundas; talvez fosse necessário revê-lo novamente, à luz de Eva? Trata-se sempre de que este último filme, nisto fiel às preocupações fundamentais do metteur en scène- e explicitando-as até uma evidência jamais atingida até então- manifeste a ambição de expor o conflito entre o puro e o impuro, ou seja entre a a natureza e a não-natureza, em termos literalmente bíblicos: não é por acaso que as palavras do profeta abrem e fecham o filme. Um plano admirável do início já encontra o tom de tudo, onde vemos Stanley Baker, ereto sobre seus esquis, penetrando os flocos de neve em meio a feixes de espuma, enquanto comenta: “Eu entrava na Babilônia, montado sobre uma biga de fogo”. É estranho que se tenha podido pensar, diante de uma denunciação perpétua do artifício, em alguma complacência de sua parte. Retratar Babilônia implicava a análise e a exposição metódicas de seu caráter barroco; a acumulação, em torno de Jeanne Moreau, dos objetos e dos gestos que se relacionam com ela não possui outra função nem sentido. Sobre um tema banal, eterno e que bem vale por outros, Losey construiu uma obra onde a carne se mostra vivamente ( à vif) , profundamente moral na acepção verdadeira e nobre- eu quero dizer: não determinada pelo curso dos eventos, mas pelo olhar que portamos sobre eles.

Michel Mourlet ( Defesa do Ocidente, novembro 1962) Présence du cinéma, março/abril de 1964, Joseph Losey e Samuel Fuller

Tradução: Luiz Soares Júnior



O criado, por Marc Bernard


Contando-se os filmes mais interessantes que pude ver nestes dois ou três anos, parece-me que Losey é hoje o metteur en scène mais capaz de representar o mundo atual, possuindo conjuntamente o dom necessário à caricatura e o máximo de força documentária. Apto tanto a fazer desfilar os seres de exceção quanto aqueles que correspondem a noventa por cento de nossos congêneres e a nós mesmos ( mescla de embrutecimento, de patetice, de fatiga, desejos vagos e de pândega) , mantém em seus filmes esta “profundeza humana” de que o diretor de uma sala perto de L’Étoile falava a propósito de Beyond a reasonable doubt. Sendo característico da profundeza humana o fato de se situar ao mesmo tempo acima e abaixo da cintura, esta não é definível, mas é inesgotável. Sobre o que testemunharia ( de que, portanto, testemunham Eva e O criado)? De um esforço de compreensão e de comunicação sustentado durante várias dezenas de anos de uma vida. O que prova esta? Não sabemos de nada senão, sem dúvida, que o mundo é mal feito e que as chances de melhorá-lo são débeis. O que poderia provar além disso? Tudo se passa e deve passar: a doença, o sono, o álcool, o trabalho, o ciúme, etc ( ou seja: o ciúme que vai te matar, o sono que te mata, o riso que vai te destruir, etc).

Os filmes americanos de Losey possuíam a mesma emoção, a mesma compreensão e a mesma compaixão que seus últimos filmes ingleses. E o que quer que digam, a  dramaturgia em Eva ou O criado não é diferente da de The Lawless. Passemos de lado a evolução de Losey vista sob o ângulo da mise en scène e da técnica, já que não somos capazes de falar disso, e que unicamente Losey deve saber do que se trata. De onde aparece, no entanto, que se, em seu tempo, seus filmes americanos eram os mais realistas do cinema, The servant é fundamentalmente diferente destes, embora igualmente dotado de um realismo excepcional. Nenhuma explicação pode ser fornecida, já que esta deveria remeter à vida de Losey nestes últimos dez anos. É plausível pensar que o realizador de Eva constate, mais do que ousa explicar, esta evolução ( busque este aliás explicar o que quer que seja em si mesmo se, como é verossímil e desejável, Losey se esforça mais e mais em viver em torno de si. The servant, como M e Time whitout pity, não é de forma alguma um filme obsessivo, e se distancia absolutamente de tudo o que poderia consistir em preocupações pessoais).
A diferença à qual, em primeiro lugar, somos sensíveis é de caráter humano. Esta sensibilidade aos homens e às mulheres no mundo assemelha-se à do doente, depois a do convalescente. Ressentindo em toda parte a presença do mal e do sofrimento, apercebe-se igualmente, e  mais que qualquer outra sensibilidade, daquilo que é rico, diversificado, concreto, e signo de vida ( da vida orgânica e da vida pública).

O adjetivo inglês washed up ( exausto, esvaziado) exprime muito bem uma parte de meu sentimento sobre os filmes. Um esgotamento que é escavação ( como a ação do mar sobre os ossos e as cartilagens) é a impressão direta dada pelo Criminal. Depois de ter lutado durante toda sua vida “ em nome de certos princípios morais e artísticos”, Losey realiza filmes que atestam um espírito livre mas vazio. É do seio da própria fadiga que The criminal gera energia e vida. The servant, como Eva ( o plano em que Stanley Baker se desnuda diante de Jeanne Moreau) acumula os momentos de “verdade bufona e trágica”, segundo a expressão de Blake Edwards. E se talvez em efeito nenhum filme americano tenha dado testemunho de uma visão tão rica, seja porque esta visão, assim como a fadiga, sejam a consequência natural dos anos de experiência e de uma reflexão lógica sobre estes anos.

Até agora e com justo valor, insistiu-se sobre as implicações sociais do Servant. Mas não é menos verdadeiro que, pela impertinência e a exatidão, atestemos que muita gente entre Londres e Paris poderia fazer igual. A vivacidade da mise en scène não teria, por outro lado, nenhum imitador à altura. Um amigo que viu boa parte dos filmes publicitários de Losey me citava aquele em que se vê uma velha preparar e cheirar uma sopa, e  a qualidade irresistível de cremosidade e de perfume que se desprendia desta operação. Estes jogos e querelas entre dois “malcriados” que é The servant abundam em efeitos similares, proliferação de detalhes sensíveis e ativos como raramente se verá no cinema ( de fato, vê-se muito disso, mas de forma acidental).

Talvez mais que qualquer outro filme, The servant mostra-nos a que ponto o cinema é eficaz para criar uma atmosfera, exprimir uma emoção e adicionar as gags de toda ordem ao utilizar os procedimentos mais simples ( o steak em chamas brandido pelo bizarro servidor para abrir a primeira cena com Wendy Craig. O plano de Bogard fugindo pela tangente, seu saco de provisões na mão, os olhos ébrios do mesmo quando anuncia: “Just a Beaujolais, but from a  very good butler”). Lembremo-nos, aliás que em Time without a pity a vida de Leo McKern era uma sequência de gags. Para retornarmos à profundidade humana, Losey é seguramente o único capaz de fazer planos extraordinários com cães e pássaros.

Marc Bernard, Présence du cinéma, março/abril de 1964

Tradução: Luiz Soares Júnior



O acidente, por Serge Daney



Nova variação sobre a perversidade, a mentira, a fascinação e a pusilanimidade. Reconhecemos de passagem os tiques e os tropos de Losey, olhares às vezes vazios, às vezes ambíguos, com freqüência protuberantes, atores mascotes fiéis a si mesmos e enfim reunidos ( Bogarde e Baker), relações de mestres a escravos e vice-versa, fascinadores e fascinados, etc. Em uma universidade inglesa com belas cores, um professor, ainda jovem ( Dirk Bogarde), complica-se inutilmente a vida. Ele ama em silêncio sua aluna, Anna, que um jovem corteja e um terceiro já seduzira. Por covardia, por ser incapaz de desempenhar um papel verdadeiro nesta história, Bogarde torna-se pouco a pouco confidente, organizador, intermediário. Ele dá-se a impressão de dar as cartas, enquanto apenas sofre a ação dos eventos. O personagem de Bogarde acaba por tornar-se fascinante na medida em que o cinema de Losey mostra-se mais e mais à sua imagem. Cinema cuja marca foi sempre a busca ( ao mesmo tempo desconfiança e fascinação) do natural, do espontâneo, do primeiro grau. Qualidades que, é preciso bem admitir, acabaram por desaparecer de Losey desde que este chegou a Albion ( com exceção de instantes fulgurantes: Chance meeting). Só subsiste portanto, o artifício sob todas as suas formas, do desenho animado a um certo “accent inglês”. Observando Bogarde, vemos como funciona esta alquimia: como o natural se torna fabricado, o imediato se converte em calculado ( arrière-pensée), o evidente tortuoso, etc. Podemos achar este artifício insuportável ou comovente “ao segundo grau”. Acidente é um filme vão e sofisticado onde encontramos todas as aparências do rigor. Cada cena se articula sobre um pequeno “detalhe significativo” que o zoom sublinha alegremente. A impressão global é, no entanto, de uma flacidez ( uma flacidez que se enrijece às vezes), para não falar de derrisão.

Serge Daney, Cahiers du cinéma, 191, junho de 1967

Tradução: Luiz Soares Júnior

Paris nos pertence por Delahaye




Paris nos pertence é um filme suma. Uma totalidade onde a aventura interior e exterior, moral individual e coletiva são indissociáveis; uma obra total onde um homem por completo se entregou, arriscando-se inteiramente. Ele pôs no filme também Nossa época e tudo o que respiramos no ar de esperanças e inquietudes, e tudo ainda aquilo que amamos na arte como na vida.
Consiste numa destas “sumas” estranhas e demenciais- diria quase: obra de místico- tais quais raramente aparecem na história do cinema, e de forma nenhuma no cinema francês. Uma suma como Cidadão Kane um dia o foi.
Contar a história? Inútil. Em primeiro lugar, esta é incontável, em sequência porque existem várias, e depois tudo se situa “em um outro plano”. Podemos apenas dizer que se trata talvez de uma aventura real vivida por mitômanos, ou talvez de uma aventura mítica tornando-se pouco a pouco real, ao menos que as duas versões não sejam verdadeiras. Mistérios de Paris.
É em todo caso um filme inquietante, perturbador, como conheço poucos; um filme que exala uma angústia indefinível e de qualidade rara, angústia que só encontramos até aqui em Poe e Borges.
É um filme simples, rodado com a fé e a convicção dos antigos seriados. Rivette encontra-lhes o tom até nesta extraordinária foto que nos provoca uma espécie de exílio, uma nostalgia cujo nome não podemos dizer até o momento em que fazemos a ligação com esta foto fulgurante e rude dos filmes de outro tempo, com estes céus brancos que dominavam os tetos aventureiros da Paris de Vampires.
Obra total onde tudo aquilo que não é dito permanece mesmo assim presente pela magia de uma linguagem que sabe constantemente nos conduzir para outros planos que não aqueles onde crêramos estar. Tudo aquilo que empresta cor a nossa vida está lá: a traição e a pureza, a paixão de chegar e de se realizar, o risco e a segurança, a arte e a vida, a fé e as montanhas, a perda e o ganho.
Mas quem perde, e quem ganha?
De Rivette diríamos talvez que ele perdeu. Bela homenagem. Não nos contradizemos: isto seria tombarmos em uma armadilha, seria perder-se, seria atentar contra o filme tentando paralisá-lo , enquanto que neste plano também ele é essencialmente o filme do risco, que ele deve e quer permanecer uma aventura.
Seria preciso que este filme, de tanto inquietar, deixasse alguns perturbados em relação ao seu próprio valor. Que os outros se tranqüilizem: aquilo que quiserem achar encontrarão; o que devem ganhar, ganharão.
Quem perde e quem ganha? A resposta é conhecida desde muito tempo. Aquele que conquista é o que não aspira à conquista e Paris sem dúvida pertence àquele que antes de tudo persuadiu-se de que “Paris não pertence a ninguém”.

Michel Delahaye, Présence du cinéma, 6/7, dezembro de 1960. Sadismo e libertinagem

Tradução: Luiz Soares Júnior