O criminoso,
que ontem foi acolhido pela crítica parisiense como o melhor filme de seu
autor, não era um bom filme, mas Eva nos convida hoje a considerá-lo como um
filme importante, em relação à evolução geral da obra de Losey. Esta evolução
vai no sentido de uma proximidade crescente da epiderme e do grão dos objetos,
aliada aos mais definitivo conhecimento de si. Mas enquanto que um método era
experimentado em The criminal – e apenas um método, para a descrição dos
personagens e a expressão do conteúdo dramático do cenário, método que
desenvolvia uma violência muito artificial que captava os momentos descontínuos
de um homem surgido e retornando ao nada, sem nenhum eixo que viesse ordenar e
imprimir um peso a seus gestos esparsos-, passa-se em Eva uma sedimentação
desta forma nova, que encontra sua matéria e seu peso.
Podemos
abordar este filme de três principais maneiras, que o caracterizam
forçosamente: pelo movimento de sua dramaturgia, pelo método de descrição, pela
natureza e elevação de tom do debate. Estando entendido que estas explicitações
da análise, que recortam de forma relativamente arbitrária um élan único de
inspiração e de trabalho, só pretendem indicar um certo número de referências
sobre um terreno vasto e vário.
I Movimento
da dramaturgia. É preciso compreender por estas palavras a operação que
consiste em Losey em escolher, no curso dos eventos, os atos ou estados
privilegiados, orientados diretamente no sentido do drama, as ramagens mais
avizinhadas da raiz do mal e ainda vibrantes pelo efeito do abalo central. É a dramaturgia natural do relevo, comum a
todos os filmes de Losey, e que oporemos à dramaturgia em cavidade onde, por
coquetismo intelectual, aquilo que é inútil ou acessório é sublinhado, os
tempos fracos cultivados e a expressão voluntariamente não significativa. Em Eva,
pelo contrário, e com ainda maior determinação, não há um único elemento, por
mínimo que em aparência seja, que não concorra ao crescimento da tensão, nenhum
grão de areia que não extirpe um pouco mais da pele. O tratamento do tempo se
inscreve logicamente nesta escolha: esposa da forma mais íntima aquilo que
Bergson chamava de duração: não o tempo abstrato dos relógios mas aquele real
dos batimentos do coração.Tal cena passa, breve como o agudo do prazer; esta
outra se estira ao longo da angústia: jamais sair do concreto, depositado nesta
espessura da vida e das coisas.
II Método de
descrição. Este evoluiu muito desde The boy with Green hair, tanto no que
concerne aos personagens como ao cenário. Os personagens, muito classicamente
pintados durante o período americano- explicados, justificados, sob os ângulos
psicológico e moral-, são pouco a pouco extirpados destas explicações até se
tornarem em Eva puros momentos de surgimento do ser, imediatos e fechados sobre
si mesmos, salvo durante as evasões de reflexos, de palavras e de paixão que
unicamente na vida nos permitem descobrir um desconhecido. Reencontramos aqui a
vontade de se dirigir ao mais concreto, e o mais brutalmente possível, sem
nenhuma das mediações habituais da narrativa. Esta mesma vontade conduz a
câmera quase a tocar a superfície opaca da água, a rugosidade de uma escultura,
o polido de um crânio calvo, a valorizar os detalhes sem no entanto perder de
vista o conjunto, que permanece sempre presente. É aliás este poder de fazer
pesar a totalidade sobre cada fração em si mesma que se constitui em um dos
traços essenciais do gênio de Losey.
III.
Natureza e elevação do debate. As características precedentes, nós já havíamos
visto, encontravam-se já, mais ou menos afirmadas, em The criminal e em menor
grau em Blind date. No entanto, Criminal havia aparecido a alguns dentre nós
como um exercício de estilo excessivamente gratuito, distanciado das fontes
profundas; talvez fosse necessário revê-lo novamente, à luz de Eva? Trata-se
sempre de que este último filme, nisto fiel às preocupações fundamentais do
metteur en scène- e explicitando-as até uma evidência jamais atingida até
então- manifeste a ambição de expor o conflito entre o puro e o impuro, ou seja
entre a a natureza e a não-natureza, em termos literalmente bíblicos: não é por
acaso que as palavras do profeta abrem e fecham o filme. Um plano admirável do
início já encontra o tom de tudo, onde vemos Stanley Baker, ereto sobre seus
esquis, penetrando os flocos de neve em meio a feixes de espuma, enquanto
comenta: “Eu entrava na Babilônia, montado sobre uma biga de fogo”. É estranho
que se tenha podido pensar, diante de uma denunciação perpétua do artifício, em
alguma complacência de sua parte. Retratar Babilônia implicava a análise e a
exposição metódicas de seu caráter barroco; a acumulação, em torno de Jeanne
Moreau, dos objetos e dos gestos que se relacionam com ela não possui outra
função nem sentido. Sobre um tema banal, eterno e que bem vale por outros,
Losey construiu uma obra onde a carne se mostra vivamente ( à vif) ,
profundamente moral na acepção verdadeira e nobre- eu quero dizer: não
determinada pelo curso dos eventos, mas pelo olhar que portamos sobre eles.
Michel
Mourlet ( Defesa do Ocidente, novembro 1962) Présence du cinéma, março/abril de
1964, Joseph Losey e Samuel Fuller
Tradução: Luiz Soares Júnior
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