Contando-se
os filmes mais interessantes que pude ver nestes dois ou três anos, parece-me
que Losey é hoje o metteur en scène mais capaz de representar o mundo atual,
possuindo conjuntamente o dom necessário à caricatura e o máximo de força
documentária. Apto tanto a fazer desfilar os seres de exceção quanto aqueles
que correspondem a noventa por cento de nossos congêneres e a nós mesmos (
mescla de embrutecimento, de patetice, de fatiga, desejos vagos e de pândega) ,
mantém em seus filmes esta “profundeza humana” de que o diretor de uma sala
perto de L’Étoile falava a propósito de Beyond a reasonable doubt. Sendo
característico da profundeza humana o fato de se situar ao mesmo tempo acima e
abaixo da cintura, esta não é definível, mas é inesgotável. Sobre o que
testemunharia ( de que, portanto, testemunham Eva e O criado)? De um esforço de
compreensão e de comunicação sustentado durante várias dezenas de anos de uma
vida. O que prova esta? Não sabemos de nada senão, sem dúvida, que o mundo é
mal feito e que as chances de melhorá-lo são débeis. O que poderia provar além
disso? Tudo se passa e deve passar: a doença, o sono, o álcool, o trabalho, o
ciúme, etc ( ou seja: o ciúme que vai te matar, o sono que te mata, o riso que
vai te destruir, etc).
Os filmes
americanos de Losey possuíam a mesma emoção, a mesma compreensão e a mesma
compaixão que seus últimos filmes ingleses. E o que quer que digam, a dramaturgia em Eva ou O criado não é
diferente da de The Lawless. Passemos de lado a evolução de Losey vista sob o
ângulo da mise en scène e da técnica, já que não somos capazes de falar disso,
e que unicamente Losey deve saber do que se trata. De onde aparece, no entanto,
que se, em seu tempo, seus filmes americanos eram os mais realistas do cinema,
The servant é fundamentalmente diferente destes, embora igualmente dotado de um
realismo excepcional. Nenhuma explicação pode ser fornecida, já que esta
deveria remeter à vida de Losey nestes últimos dez anos. É plausível pensar que
o realizador de Eva constate, mais do que ousa explicar, esta evolução ( busque
este aliás explicar o que quer que seja em si mesmo se, como é verossímil e
desejável, Losey se esforça mais e mais em viver em torno de si. The servant, como M e Time whitout pity, não é de
forma alguma um filme obsessivo, e se distancia absolutamente de tudo o que
poderia consistir em preocupações pessoais).
A diferença
à qual, em primeiro lugar, somos sensíveis é de caráter humano. Esta
sensibilidade aos homens e às mulheres no mundo assemelha-se à do doente,
depois a do convalescente. Ressentindo em toda parte a presença do mal e do
sofrimento, apercebe-se igualmente, e
mais que qualquer outra sensibilidade, daquilo que é rico,
diversificado, concreto, e signo de vida ( da vida orgânica e da vida pública).
O adjetivo
inglês washed up ( exausto, esvaziado) exprime muito bem uma parte de meu
sentimento sobre os filmes. Um esgotamento que é escavação ( como a ação do mar
sobre os ossos e as cartilagens) é a impressão direta dada pelo Criminal.
Depois de ter lutado durante toda sua vida “ em nome de certos princípios
morais e artísticos”, Losey realiza filmes que atestam um espírito livre mas
vazio. É do seio da própria fadiga que The criminal gera energia e vida. The
servant, como Eva ( o plano em que Stanley Baker se desnuda diante de Jeanne
Moreau) acumula os momentos de “verdade bufona e trágica”, segundo a expressão
de Blake Edwards. E se talvez em efeito nenhum filme americano tenha dado
testemunho de uma visão tão rica, seja porque esta visão, assim como a fadiga,
sejam a consequência natural dos anos de experiência e de uma reflexão lógica
sobre estes anos.
Até agora e
com justo valor, insistiu-se sobre as implicações sociais do Servant. Mas não é
menos verdadeiro que, pela impertinência e a exatidão, atestemos que muita
gente entre Londres e Paris poderia fazer igual. A vivacidade da mise en scène
não teria, por outro lado, nenhum imitador à altura. Um amigo que viu boa parte
dos filmes publicitários de Losey me citava aquele em que se vê uma velha
preparar e cheirar uma sopa, e a
qualidade irresistível de cremosidade e de perfume que se desprendia desta
operação. Estes jogos e querelas entre dois “malcriados” que é The servant
abundam em efeitos similares, proliferação de detalhes sensíveis e ativos como
raramente se verá no cinema ( de fato, vê-se muito disso, mas de forma
acidental).
Talvez mais
que qualquer outro filme, The servant mostra-nos a que ponto o cinema é eficaz
para criar uma atmosfera, exprimir uma emoção e adicionar as gags de toda ordem
ao utilizar os procedimentos mais simples ( o steak em chamas brandido pelo bizarro
servidor para abrir a primeira cena com Wendy Craig. O plano de Bogard fugindo
pela tangente, seu saco de provisões na mão, os olhos ébrios do mesmo quando
anuncia: “Just a Beaujolais, but from a
very good butler”). Lembremo-nos, aliás que em Time without a pity a
vida de Leo McKern era uma sequência de gags. Para retornarmos à profundidade
humana, Losey é seguramente o único capaz de fazer planos extraordinários com
cães e pássaros.
Marc Bernard, Présence du cinéma, março/abril de 1964
Tradução: Luiz Soares Júnior
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