quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Os dandys do cabo

À questão se podemos ser cinéfilos hoje em dia, uma resposta lapidar poderia ser: Não há salvação fora da televisão. Outros o disseram antes de mim;  Daney, Biette, Skorecki, mas a situação hoje se mostra muito mais complexa. A oferta é muito maior, e as correntes de transmissão, assim como os delinquentes são raros. Este claro recuo da pedagogia tradicional, de que o serviço público atual é largamente responsável, só possui inconvenientes: ele deixa aberto um campo considerável no seio do qual os filmes são livrados a eles mesmos e aos telecinefílicos, numa certa desordem mas também uma grande liberdade. Canal + , depois os canais temáticos Cine Cinemas e Cine Cinefil, com suas programações genéricas, testemunham uma oferta à disposição generalizada da história do cinema. Todos os filmes estão virtualmente ali; eles flutuam, passam e repassam, aparecem e desaparecem,formam um banco do dados ao qual podemos inquerir a qualquer momento, tanto mais porque a edição em vídeo constitui o escopo permanente.
A cinefilia dos anos 50-60 era de essência vertical, genealógica e histórico-empírica: a história do cinema, por intermédio da Cinemateca, passava por uma série de etapas, de cortes, de conexões e de influências, mesmo no caso em que o mais dandy dos dandys conseguia encontrar o objeto mais raro e insignificante, que virtualmente tenderia a desestabilizar todas as hierarquias.  No fundo, para esta geração, a  história do cinema era una e indivisível: Fuller ou Godard eram os descendentes diretos de Griffth ou Lumière. Mesmo Vittorio Cottaffavi ou Bud Boetticher podiam ainda ser aparentados a Giovanni Pastrone ou a William S. Hart. A cinefilia dos anos 70-80, já formada pela televisão ( é meu caso) era mimética. Ela flutuava ainda entre a sala e o canal, queria destruir seu brinquedo em nome da política, mesmo sonhando em reproduzir as grandes batalhas de seus companheiros mais velhos.
Finalmente, ela tinha fortemente o sentimento de ter chegado muito tarde, engolfando-se já na cultura das séries televisivas e dos folhetins. É aliás no cruzamento entre estas décadas de 70 e 80 que a parte mais heróica da cinefilia evaporou-se, face a assunção do cultural cujo triunfo de Télerama é o signo definitivo. A cinefilia dos anos 90-2000 é horizontal, digital e rizomática. Ninguém pode mais descender de ninguém porque já está tudo lá. Esta nova cinefilia funciona um pouco como a montagem virtual: procede-se por cortes abstratos, faz-se muitos ensaios de montagem,criam-se alianças e, no fundo, só vemos fragmentos. As seqüências, os planos, os detalhes, as atitudes são privilegiadas em cima dos próprios filmes, graças ao uso intensivo do congelamento da imagem ( arrète sur l’image),da aceleração, ou simplesmente do controle remoto zapeador.Os filmes perdem suas raízes, e até mesmo seus autores- eles crescem como ervas daninhas, um pouco como os rizomas descritos por Deleuze e Guattari.
Este processo mental é admiravelmente posto em cena por Dream On, a série criada por John Lands que podemos ver todo domingo no Canal Jimmy ( outro canal a cabo). O princípio, aliás tantas vezes descrito, é o seguinte: as lembranças do herói, o editor Martin Tupper, são substituídas por trechos de filmes, telefilmes ou outras séries, e intervém como rastros de memória e de comentários da situação presente, com freqüência extremamente engraçadas. As imagens tornaram-se a substância maior de nosso cérebro, e a lembrança-tela adquire sua forma televisual. O fenômeno não possui, aliás, nada de trágico; ele age sob a forma de uma psicanálise selvagem e permanente, e possui antes o caráter de ajudar a viver o personagem fetiche de Dream on. Esta irrupção da memória involuntária, a maior parte das vezes cômica, é um tanto comparável ao processo do sampling no rap: um trecho, frequentemente brevíssimo, é desviado de sua função primeira, de seu contexto. O trecho do filme, da mesma forma, pelo jogo das citações, age de forma diferente, encontra um outro campo de ação, se reposiciona e modifica o sentido ou a direção do campo ( no sentido magnético ou analítico do termo) das imagens nas quais aparece. O autor é relativizado. O filme é desonerado de seu peso referencial, histórico, de sua paternidade. Ele flutua e deriva como um átomo, na espectativa de um encontro fortuito com outro átomo. É um  alívio que rima com apaziguamento, e age como um bálsamo sobre o cérebro do cinéfilo, paralisado pelo acúmulo de tantas memórias, mas é também uma perda de referentes, a destruição de uma certa organização racional da memória, uma programação da amnésia. Admitamos de qualquer maneira que esta contaminação de todas as imagens, televisão e cinema confundidos, obras-primas e porcarias lado a lado, possui algo de liberador. Ela nos vinga da obrigação de amar apenas os grandes filmes da história do cinema. Ela nos permite reivindicar nossas perversões. Ela nos obriga a reconsiderar nossa experiência real de espectador, e nos força a admitir que tal ou tal série- digamos, Chapeau Melon e Bottes de cuir ou Les Envahisseurs- teve um impacto bem maior sobre nós que a visão de tal obra reputada como maior- o Encouraçado Potenkim ou Les enfants du Paradis. Deste ponto de vista, a América, e em particular seus cineastas, possuem uma certa vantagem sobre nós. Depois da Nouvelle vague, que tinha finalmente o entusiasmo e a inocência , segura de si mesma e iconoclasta das gerações inaugurais, a cinefilia tornou-se na França algo paralisante, e de certa maneira ainda o é. Enquanto que os cineastas americanos da geração de Joe Dante, John Carpenter ou ainda Tim Burton, sem esquecer Tarantino, jamais foram constrangidos pelo peso de suas referências da ficção científica dos anos 50, de Jack Arnold, Roger Corman ou Mario Bava.
O cinema e a televisão francesas falharam em nos oferecer objetos supostos menores que são com freqüência menos castradores que as referências maiores. Os Tontons flinguers ou Vidocq não são forçosamente suficientes.
Mas o fim desta hierarquização, verdadeira desregulamentação em matéria de valores cinefílicos, possui também evidentes efeitos perversos. Ela possui a tendência a elidir todas as diferenças e a colocar no mesmo nível todos os filmes, a nos fazer crer que a arte de Raoul Walsh e o esforço de Willy Rozier são da mesma natureza. É um discurso tão perigoso que certos trechos da história são um tanto ausentes desta oferta à disposição generalizada: por exemplo, a modernidade dos anos 60 e 70 é sem nenhuma dúvida a tendência mais negligenciada dos “bancos de dados” tele-vídeo. Não vemos também filmes de Glauber Rocha, Marco Bellocchio ou Robert Kramer, nestas novas telas.
Não se trata de operar uma volta para trás. A digitalização da cinefilia está em plena marcha. Apesar de suas prováveis derivas, ela é muito preferível à metamorfose da paixão cinefílica em discurso de patrimônio, ou mesmo a transformação do cinema em um puro objeto de saber e de história. Fazemos a aposta em que um novo circuito, uma nova rede, uma nova geografia estão prestes a se recompor. E que um anova geração, através desta instrumentalização generalizada das imagens, está à altura de se reapropriar da herança da antiga cinefilia. Último paradoxo: esta cinefilia de apartamento- minoritária como todas as formas de cinefilia, só que mais disseminada, na ausência lógica de grandes espaços de acumulação gregária- não está, diante da ameaça da massificação da cultura, prestes a reencontrar as duas condições fundadoras da antiga cinefilia: a clandestinidade e um certo dandysmo?
 Thierry Jousse
 Cahiers du Cinéma, 498, janeiro 1996
Tradução: Luiz Soares Júnior







segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Morte de um conceito


Vemos claramente hoje, a mais de sessenta anos da sessão do Grande café, que uma palavra simboliza tanto a substancial história da arte cinematográfica, assim como a maneira com que a linguagem crítica se empenhou em dar conta dela. É a palavra mise en scène, que se aplica com efeito, com igual ventura, ao L’Arroseur arrosé, O Assassinato do duque de Guise, Nascimento de uma nação, O encouraçado Pontenkime ao último Preminger. Dos dois conceitos gêmeos que permitem à crítica “captar” os filmes ( como se usasse um bisturi), a palavra mise en scène designa antes aquilo que, para além do sujeito, designa o “modo de fazer” ( rendu).

Desde Delluc, julgar um filme consiste sempre em julgar a interpretação dos atores,a qualidade dos diálogos, a beleza da fotografia, a eficácia da montagem. E se, durante trinta ou quarenta anos, a crítica  pôde se acercar com mais precisão de seu objeto, é que de fato o cinema não evoluiu,. Ou antes: que ele só evoluiu no interior do conceito definido pelo de mise en scène.

Desde então, compreende-se o embaraço de nossos críticos diante das obras mais representativas dos últimos anos: é que eles são vítimas de sua linguagem. Porque os filmes hoje falam cada vez menos a linguagem da mise en scène, então como então os críticos prisioneiros desta palavra poderiam compreendê-los? Acho que não há ainda hoje, em 1967, diálogo justo entre a crítica e os filmes de Godard. Armados de um vocabulário ultrapassado, os críticos só podem falar de forma conveniente de filmes ultrapassados. Os outros, os que nos importam, permanecem convenientemente longe de seus campos de percepção. Pois não é que eles os desprezam; eles não os enxergam.

Ora, o que questionamos nós, aqui no Cahiers? Que se faça um pouco de luz sobre este estado de coisas, ou que ao mesmos iluminemos os pés da dançarina!!Petrificados como todos em conceitos extenuados, o que temos feito? Ok, temos essencialmente nos esforçado de nos ajustar ao cinema novo- explicando, por exemplo, ( tranqüila ou raivosamente) que a mise en scène não é apenas o “rendu”( o modo de fazer”), mas a idéia também; não apenas a premeditação e a ruse ( esperteza), mas também o collage e o acaso; não apenas o exuberante plano de grua da abertura da Marca da maldade, mas também estes planos “jogados na lixeira” de que fala Chabrol a propósito de alguns Aldrichs; não apenas a extraordinária performance de Audrey Hepburn em Philadelphia story, mas também as patéticas aparições destes heróis documentários que encarna Jean-Pierre Léaud nos filmes de Truffaut, Godard, Eustache, de Skolimowski; em suma, que a mise en scène não é apenas a mise en scène, mas também o contrário do que havíamos pensado seguindo a linha de Delluc.

É-nos necessário perguntar para que serve uma palavra que é necessário sem cessar explicar, sem cessar impor esclarecimento circunstanciados pelos filmes, segundo o autores. Por que não nos desembaraçarmos, como fez a pintura da palavra figurativo? Por que não abandoná-la uma vez por todas àqueles que, sintomaticamente, dela se orgulham tanto: os Delannoy e Duvivier, os Prat e Lorenzi, ou ainda Barrault e Villar- ou seja, àqueles todos que fazem da mise en scène uma Tróia do romance balzaciano, zumbis aplicados na sobrevivência de um cinema ( ou de um teatro) exangues, trabalhadores cegos que assombram estes sepulcros irrespiráveis que são a maioria das salas de cinema (e de teatro) de Paris e de qualquer outro lugar? E se a crítica consiste em falar do cinema até que o cinema fale por si ( vê-se aí como é absurdo opor crítica e cinema de outra forma que a relação da moeda e seu inverso), por que não buscaríamos os conceitos de que somos necessitados nos domínios vivos da publicidade, da cibernética ou mesmo da pintura, da escultura ou da música?

Um autor chinês conta que pescadores cegos jogavam um dia sua rede num lago.
Então, abramos os olhos! o cinema se deslocou. Não tentemos mais pescá-lo. Cassemo-lo!.


André Labarthe

Cahiers du cinéma, número 195 novembro 1967

Tradução: Luiz Soares Júnior