quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

O cinema e a memória da água [Le Grand Bleu (Imensidão Azul) de Luc Besson e Palombella Rossa de Nanni Moretti]

Quando durante os anos noventa nos debruçarmos sobre as metáforas de sucesso dos anos oitenta, veremos que eram aquáticas. “Só água, só água”, dir-se-á, lembrando tudo o que, em todos os sentidos do termo, flutuava. Da cotação das moedas ao fluxo das imagens televisivas (o tema da "torneira de imagens"), do regresso olímpico da natação sincronizada à promoção da "glisse"1, e, para acabar em beleza, da liquidação (a Leste) do comunismo, sobre fundo de liquefação (a Oeste) do sujeito, é a mesma mensagem que passa: o indivíduo novo, esse anti-herói das sociedades democráticas massificadas, esse "átomo flutuante esvaziado pela circulação dos modelos e por isso continuamente reciclável" (Lipovetsky) é, fundamentalmente, alguém que tem de saber nadar. Como de resto fazer de outro modo num mundo onde um Baudrillard, de longe o melhor jornalista da década, lhe descreveu freqüentemente a “ultra-fluidez”. Mas as metáforas populares (“ça baigne”2) dizem também o espanto de não ir ao fundo, e, apesar da água engolida, a euforia resignada de se manter, graças a alguns movimentos limitados, à tona de água, longe das praias e das pedras da calçada dos anos setenta. A cultura, doravante, merece a designação de “caldo”, é aí que a mercadoria flutua como uma rainha e a sopa (não apenas a Campbell de Andy Warhol) tem mais comerciantes do que nunca.Como é que o cinema terá sobrenadado neste caldo? Não muito bem. Duas “histórias”, no entanto, a de um mergulhador em apnéia apolítica e a de um jogador de pólo aquático comunista, terão marcado estes últimos anos. Uma, a do Grand Bleu (1988), terá tido um sucesso meteórico junto do que resta do grande público e a outra, a de Palombella Rossa (1989), terá permitido aos que ainda precisam de cinema contarem quantos eram3.Os dois filmes não têm nada em comum a não ser o facto de falarem de formas muito diferentes da mesma coisa. Nos dois casos, há um herói aquático e sedutor, um “banho” ao qual o primeiro escapa “afundando-se” e o segundo ocupando a superfície. Nos dois casos existe uma dificuldade de comunicar que torna o primeiro quase afásico e o segundo doente da linguagem. Do lado de Édipo, o papá está no fundo do oceano e a mamã à beira da piscina, não há mulheres nem ligação sexual e, mesmo quanto às relações com outros homens, apenas uma ligação distante com a competição. Um é imbatível, o outro é um derrotado-nato, mas cada um deles tem apenas um “outro” a dominar que é ele próprio. Estes heróis, confrontados com o que Eric Conan chamava aqui mesmo o “grau zero da alteridade”, são bem do nosso tempo.
Desde a sua saída, Le Grand Bleu incomodou os profissionais da cinefilia. Demasiado inconsistente do ponto de vista estético, o filme tornou-se esta coisa triste: um fenômeno social. Não é portanto o fenômeno que foi analisado mas sim o que revelava do seu público jovem que, radiante, o via, a ele, dez vezes4. Ora Le Grand Bleu não é, como Jean de Florette ou Camille Claudel, o lifting acadêmico de um cinema cujo prazo acabou há muito, nem um enorme sintoma cujas falhas estéticas obrigam a abandoná-lo aos sociólogos. Se deu a tal ponto a sensação de “acertar” foi precisamente porque tinha qualquer coisa a ver com a estética. A única questão é saber se se trata ainda da do cinema. Voltemos à água e mergulhemos mais à frente. O que é desarmante em Le Grand Bleu é a forma como Besson parece contentar-se com o look que o mar há muito tempo tem em todo e qualquer spot publicitário (lembremo-nos do aterrorizador Ultra-Brite). Menos por inaptidão a filmá-lo do que porque o mar, para ele, é isso: um “grande azul” de síntese no qual se “hidrodesliza” sem fazer ondas. Enquanto que Beneix tem ainda um super-ego de artista que o faz sofrer imenso, Besson já utiliza a roupagem do cinema para produzir esses “seres de síntese” que são os indivíduos pós-modernos. É, neste sentido, o primeiro verdadeiro cineasta pós-publicitário, aquele que herda em completa inocência todos os “conceitos visuais” da publicidade e que, por isso, já não sofre com não ser “pessoal” e com alinhar apenas “lugares comuns”. É verdade que rodar um filme continua a ser uma aventura e um desafio desportivos, mas já não é uma aventura do olhar. A água é lisa e o seu fundo está vazio: já não há nada para ver5.O que é que nos diz a publicidade? Que as coisas já foram olhadas, que os olhares são arquivados e que o mundo é já visto. Besson sabe de uma vez por todas com que se parece um mar, um mergulhador, uma mulher, um golfinho, um italiano (ou mesmo uns peruanos). Tal como sabe intuitivamente com que se parecerá o “herói” do individualismo democrático massificado: com um corpo sem órgãos, fora do sexo, fora da linguagem, fora do desejo, programado para efetuar um único movimento. Com um robô sedutor, um autômato auto-legitimado. Por mais que custe aos media, Le Grand Bleu não representa forçosamente uma enésima “nova vaga” na história do cinema francês. É perfeitamente possível imaginar que o parque de salas de cinema só possa ser “salvo” do naufrágio por produtos audiovisuais como este (nem filmes de autor nem filmes de produtor, mas filmes de “promautores”), situados a meio-caminho entre a Disneylândia americana e os “sons et lumières” da cultura européia reciclada. O erro seria pensar que estes produtos não têm conteúdo nem estética. O interesse do Grand Bleu é, pelo contrário, fazer-nos admitir que a vizinhança, durante muito tempo estimulante ainda que turva, entre “cinema” e “publicidade” não tem já talvez razão de ser. Porque o cinema é demasiado fraco e a publicidade demasiado forte. O início dos anos oitenta terá visto a legitimação cultural e depois estética da publicidade. Mas no fim desta mesma década, ter-se-á começado a assistir à sua aplicação propagandista. São os cânones publicitários que servem doravante para tratar os “grandes temas”, quer dizer, para declarar guerra ao Mal (do clip antidroga ao negócio da telecaridade) e a unificar o público do lado do “lado bom”. E a fabricar, para o fazer, o “corpo” de síntese dos cavaleiros brancos.Le Grand Bleu (com uma candura muitas vezes tocante que o astuto Ours [O Urso] de facto não tem) deriva desta fabricação. O indivíduo contemporâneo já não é pensável através das velhas categorias de “pessoa” (pós-guerra, neo-realismo) ou de “sujeito” (pós-1968, novas vagas), exige, também ele, um mito fundador e é lógico que este, por seu turno, tenha algo a ver com a água. É do fundo do oceano que, novamente, surgiu o elo que faltava. Pequeno celacanto botticelliano, o mergulhador órfão tem como pai essa coisa simpaticamente lisa que é o golfinho. Neste aspecto é o contemporâneo exato do actual vitalismo ecológico. Se os indivíduos animais têm, também eles, “direitos”, têm certamente o de serem mitologicamente pais dos indivíduos humanos.
É com tudo isto na cabeça que é preciso repetir, com a última energia, que Palombella Rossa é um grande filme e Nanni Moretti o mais precioso dos cineastas. Palombella Rossa é, num certo sentido, a resposta do cinema ao audiovisual. Resposta minoritária porque o “cinema” passou doravante para a minoria (ativa, espera-se). O filme de Besson “acerta” porque propõe a um vasto público o espetáculo de um indivíduo autônomo, ao passo que o de Moretti “visa com verdade” porque fala a um público modesto de um indivíduo plural, estorvante e estorvado, jogador e jogado, falante e falado, insuportavelmente ligado aos outros.Voltemos então à água e mergulhemos de novo. Esta água já não mitológica mas social, a água sobrepovoada de uma piscina onde se ajusta ao mesmo tempo um grande número de contas: com a infância, com a outra equipa, com a política, com as palavras, com o jornalismo, com o cinema, com a memória. Onde a fundação mitológica exigia um efeito de profundidade, o laço social é agora um efeito de superfícies e, cada vez mais, de interfaces. É, dos dois, o filme “superficial” que é mais profundo porque vivemos num mundo onde este todo que é privado aflora à superfície e se torna “público” (a publicidade é precisamente o agente estético e econômico deste “afloramento”).É verdade que Moretti pertence à família dos cômicos que – de Chaplin a Jerry Lewis – tomam tudo (e tudo é demais) a “seu cargo”, mas pertence também àquela outra tradição que – de Keaton a Tati – renunciou a salvar o mundo, pela boa razão que o mundo, para surpresa geral, não se “afunda” (flutua). A água de Palombella Rossa não é nem a grande coisa amniótica de que se sai como de uma câmara de descompressão, simpático e regenerado, nem esse elemento gag onde se cai facilmente com um grande pluf: é o habitat doravante natural das sociedades desreguladas, das economias e das atenções flutuantes, dos interfaces cintilantes e dos encontros aleatórios (o “drible” como figura do laço social, como arte de apagar o adversário).No seu filme precedente (La Messa è finita), Moretti filmava um rapaz muito novo que não se cansava de atravessar a piscina de um lado ao outro: não o filho do golfinho que regressa do fundo matricial mas o pequeno peixe (pescellino) que, custe embora a alguns, “se masturba”6 enquanto desliza, à força de idas e vindas, nos interstícios do social. A cena era sublime porque, ele próprio nadador, Moretti filmava como David Hockney soube pintar: a materialidade da água, o movimento reconquistado e a liberdade da cria humana (que não tem nada a ver com a autonomia do mergulhador publicitário). A cena “respirava”, estava nos antípodas do que caracteriza o mergulho em apnéia: reter o fôlego, não respirar mais.“É aqui que estamos”, parece dizer Moretti. O cinema está aqui, apetece acrescentar. Não irá mais além. Custar-lhe-á. É hoje o nosso único fio condutor e a nossa única memória neste banho pós-moderno onde, à falta de combatentes, a ideia democrática triunfa sob os nossos olhos (“cosa significa oggi essere communista?”), onde rosna a guerra econômica, a aplicação das leis de mercado a todas as esferas da atividade humana e a difícil “subjetivação” de um indivíduo multifacetado, certamente enganador mas talvez mais “forte”7. Mais forte porque poroso, móvel e deslizante? Da água bessoniana surge um mutante demasiado liso e um autômato demasiado perfeito para não inquietar. Na água morettiana é toda uma população (italiana, européia) que se agita entre a nostalgia da História e a fuga em frente. Cada um em suspenso, à imagem do pólo aquático, esse desporto onde se nada menos do que se flutua. Porque flutuar ainda é trabalho.
Serge Daney.
Libération, 29 de Dezembro de 1989.
Texto recolhido em Devant la recrudescence des vols de sacs à main, — cinéma, télévision, information (1988-1991), Lyon, Aléas Editeur, 1991, pp. 161-165.
Notas
1 Denominação reunindo esportes que implicam deslizar, como o surf, o ski, o snowboard...
(NdT)2 Está tudo a correr bem.
(NdT)3 Estranho sentimento, à saída do filme, de um regresso de cinefilia grupal, “à antiga”. Sentimo-nos de novo prontos a zangarmo-nos com o nosso melhor amigo caso ele não gostasse de Palombella Rossa. A ponto de passar por cima dos defeitos que o filme tem: um certo voluntarismo teórico, um certo desejo asfixiante de dizer tudo.
4 O psicanalista Jean-Jacques Moskowitz confiava ao autor que o seu jovem filho não parava de ver e rever o filme para o compreender melhor. Mas o que é que há de tão difícil de compreender nesta história tão simples? A resposta pode ser esta: Le Grand Bleu diz que a morte existe. Di-lo a crianças que não confundem as gesticulações dos mortos na televisão ou dos filmes gore com a morte, a verdadeira, aquela cujo espectáculo lhes é cada vez mais cuidadosamente escondido. Do mesmo modo, Sociedade dos Poetas Mortos, outro filme-culto para os adolescentes, começa com uma cena onde é significado aos alunos que morrerão um dia.
5 Isto ainda vai mais longe. No seu terceiro filme, Nikita, Besson inventa uma curiosa personagem, interpretada por Jean Réno e chamada “o Limpador”. A função do Limpador é fazer de modo a que não sobre rigorosamente nenhum rasto material de uma operação de espionagem que acabe mal. Ele atravessa portanto o filme como um exaltado, com o seu banho de ácido debaixo do braço. Daí os gags anatômicos bastante divertidos. Podemos ver no Limpador um herdeiro dos “Senhores Limpinhos” da publicidade. E, ao mesmo tempo, podemos ver nesta necessidade de “criar vazio” uma vontade bem firme de não herdar nada. Nem do mundo, nem do cinema.
6 Alusão furiosa à campanha publicitária que, na mesma altura, louvava a nova fórmula dos Cahiers du Cinéma: “já não nos masturbamos”.
7 É evidentemente a questão central da época e nada seria mais temerário do que responder aqui. O autor sente bem que faz parte daqueles a quem a porosidade do social pós-industrial mergulha numa certa soturnidade. Não é o único, mas terá por isso razão? Os apoiantes do “pensamento fraco” (do pensiero debole segundo Vattimo) não terão razão? A circulação dos significantes, a flutuação dos significados, o apagamento dos referentes não permitirão a uma sociedade de indivíduos resistir mais eficazmente a tudo o que a ameaça, fosse embora ao preço de uma certa mediocridade e de uma desqualificação progressiva do sagrado (pela secularização), do trágico (pelo “segundo grau”), da arte (pelo mercado da arte) ou mesmo da cultura (pelo turismo)? Os “roubos de malas de mão” serão um mal menor? E o “fim da história” não será apenas o começo das aventuras do “mal menor”? Vertiginoso.

Bom dia tristeza, Preminger

No interstício entre dois períodos, o filme ocupa um lugar à parte na obra de Preminger. É o único onde o autor deu a um tema pequeno, de caráter intimista e trágico ( caráter este que figura em geral na primeira parte de sua obra), os atributos – o scope, a cor- que ele reserva com frequência ao tratamento dos grandes temas políticos e sociais. A fim de bem demarcar a dupla natureza, a natureza um pouco híbrida do filme, Preminger rodou em preto e branco as sequências atinentes ao presente da ação. Os dois tipos de sequência ( o passado em cores, o presente em preto e branco) são unificados por um comentário em off muito importante no filme, pois ele orienta ao mesmo tempo sua estrutura, seu conteúdo emocional e moral. Ele projeta a heroína e o filme em uma espécie de eternidade gélida, apesar de excitante para o espectador, onde a narradora revê e retoma indefinidamente uma história que a fez sair , sem dúvida irremediavelmente, do universo livre e descuidado da adolescência e de sua conivência com seu pai. A história de Bom dia tristeza é a de um paraíso perdido para sempre para a heroína, sob os efeitos conjugados de sua lucidez e de uma vontade perversa de agir e de triunfar. Junta-se a isso um desejo mais secreto de imobilizar o tempo a seu bel-prazer. Cécile procura prolongar até os limites da saciedade o conforto de uma célula familiar reduzida à sua mais simples expressão, aquela de uma relação pai-filha que inclui em si mesma, com uma perfeição interdita, todas as outras relações que possam unir dois seres.
A intenção de Preminger de adaptar o romance de Sagan não deve surpreender, já que a intriga do romance se assemelha muito à de um de seus primeiros filmes, Angel face, 1953. Sendo a obstinação uma de suas virtudes principais, ele não se deixou desanimar pelo insucesso monumental de Santa Joana, e retomou a parceria com a atriz que descobrira, Jean Seberg. Ele descobriu e forjou em Seberg uma personalidade física, um talento inteiramente novo e fascinante ( Santa Joana e Bom dia tristeza foram os únicos grandes filmes de Jean Seberg, uma carreira que desejaríamos ter sido mais rica e mais feliz).
Uma influência discreta da pintura abstrata (que Preminger adorava colecionar) faz-se presente na mise-en-scéne do filme. O rosto- os rostos- de Jean Seberg se entrecortam, ao sabor das sequências, sobre fundos unitários e coloridos, segundo uma dinâmica plástica que ressona tanto sobre o caráter único e autônomo de cada sequência quanto sobre a adesão e confrontação contrastadas das mesmas no conjunto da narrativa. Bom dia tristeza é, ainda mais nitidamente que os outros filmes de Preminger, um filme tanto de artista plástico quanto de dramaturgo.


Jacques Lourcelles Dicionário de Filmes. Tradução: Luiz Soares Júnior.

Objective Burma!, Raoul Walsh

Uma das grandes obras-primas de Walsh e a obra-prima do filme de guerra americano (com The naked and the dead do próprio Walsh e Merril’s Marauders de Fuller). Em dois filmes precedentes com Errol Flyn, Walsh havia pintado a Guerra como um jogo (Desperate Journey), como uma ocasião insólita e inesperada de redenção individual ( Uncertain Glory). Ele a mostra em Objective Burma! como uma aventura coletiva grave e que mobiliza de todas as energias. O jogo interpretativo de Flyn, sem arabescos nem ironia, é o espelho destas intenções. É aqui o triunfo absoluto da arte clássica, onde o concreto e o abstrato,a descrição analítica e sintética da realidade, o emprego dos closes e dos planos gerais, o “subentendido” ( litote) e o espetacular se harmonizam com perfeição e dão lugar a uma obra que, realizada com urgência” ( à chaud) em um contexto e com fins militares precisos, atinge imediatamente ao intemporal. Ver-se-á esta obra em cinqüenta anos com a mesma admiração que ela inspira hoje.
O filme é fascinante pelo gênio com o qual Walsh decompõe constantemente as diferentes fases de uma ação, as diversas reações dos que as realizam, a fim de recompô-las quase em seguida, dando uma visão global desta ação e da atitude física e mental dos combatentes.Quer se trate das múltiplas atividades do campo interrompidas pelo anúncio de um briefing em certa hora; da calma, nervosismo ou ansiedade dos pára-quedistas antes do salto; do próprio salto; das diversas atitudes dos soldados confrontados à fadiga, ao perigo, desânimo ou a uma renovação de esperança e energia, Walsh opera uma síntese da realidade que engloba todos os seus aspectos, sem privilegiar artificialmente nenhum. O filme não esconde que é a descrição de uma vitória ainda não totalmente conquistada. Com uma espantosa sobriedade ( e que contrasta com o tom um tanto pomposo dos filmes de guerra da época), Walsh mostra-nos esta vitória em germe, e mais que em germe, na solidariedade profunda, tangível dos membros da equipe e de seu chefe. Cada homem, tanto por vontade própria quanto por necessidade visceral de sobrevivência, se funde no grupo e no processo da ação a realizar.
Embora demarque cada personagem com características próprias, Walsh foge do pitoresco fordiano, assim como destas observações neuróticas que abundam nos filmes de guerra hollywoodianos dos anos 50. No coração do combate levado por seu país, ele intenta testemunhar que o perigo, a urgência, a vontade de sobrevivência, a coragem suscitam, na célula sã que ele escolheu para examinar, reações imunitárias contra os riscos de destruição interna e reações de agressividade contra o inimigo externo. Ele quer mostrar também que, em ambos os casos, estas reações são suficientemente poderosas para obterem a vitória. Uma parte de esperança, outra de realismo ( uma parte igualmente de sobrenatural cósmico, sensível na maneira de filmar e de apreender a Natureza) animam também esta obra onde Walsh, graças a seus talentos de cronista, pintor e poeta épico, pôde captar o instante com um imenso recuo, e conferir a uma página da História imediata os acentos da Eternidade.

Nota: O filme, em seus diversos relançamentos, foi frequentemente amputado. O vídeo comercial Warner Home vídeo apresenta a duração original do filme em v. original legendada ( sob o título Objective burma!). Excelente restituição da foto de James Wong Howe.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

À beira do mar azul, Barnet 1935


Soberbo pedaço de poesia do mais inspirado e “artista” dos cineastas russos. Primeiro filme falado do realizador, À beira do mar azul guarda ainda um pé no mudo e permite aos personagens se exprimir ora pelo silêncio, ora pela palavra ( poucas palavras), ora pelo canto. Obra dionisíaca, tudo nela jorra e se transforma alegremente em seu contrário. A intriga é composta por eventos minúsculos, imponderáveis, aliás com freqüência improvisados no estúdio; e, no entanto, os personagens dão-nos a impressão de viverem uma grande aventura. A maioria das sequências utiliza uma montagem curta, entrecortada, mas que ao fim possui uma grande amplidão lírica, devido ao interesse equilibrado que o autor dispensa às paisagens e aos personagens.
Estes últimos são pobres diabos desprovidos de tudo, espécies de clowns próximos dos heróis de Gosho ou de Jacques Rozier, e no entanto dão verdadeiras lições de vida. Desprovido de mensagemn política, o filme transmite uma mensagem de alegria, felicidade e reconhecimento para com a vida. A crítica russa da época foi violenta ( vide os documentos reunidos na excelente publicação do Festival de Locarno, Boris Barnet, 1985). Reprovou-se sobretudo seu vazio, seu formalismo, falta de imaginação, ingenuidade, seu artifício. Um dos críticos ( Herrman Khokholov) lamenta que o mar constitua de qualquer maneira o personagem principal do filme”, o que em certo sentido não é falso, mas ele lamenta que “este personagem não possua nenhuma simpatia particular”. A quem se interessasse por abordar o imenso continente cinematográfico russo, não haveria melhor conselho a dar que o de começar por À beira do mar azul. Pois não há obra mais original, mais livre de todos os cânones estéticos e ideológicos, mais intimamente próxima do seu autor e mais de acordo com esta infinita vitalidade cósmica do universo que os melhores filmes russos sempre tentaram restituir.

Jacques Lourcelles.

Tradução: Luiz Soares Júnior.

As aventuras de Hadji, Don Weiss 1954


No cinema hollywoodiano do pós-guerra, a corrente do filme de aventuras orientais, adaptadas menos ou mais das Mil e uma noites, foi quantitativamente pouco importante, mas se ilustra por tendências variadas.
Na Universal dos anos 40, esta corrente deu lugar por exemplo a todo tipo de narrativas espetaculares para a apreciação das crianças, onde a inovação recente da cor foi particularmente valorizada ( Arabian nights, John Rawlins, 1942, ou Ali Baba e os quarenta ladrões, Arthur Lubin, 1944). No fim dos anos 50, o conto oriental reencontra seu caráter fantástico, favorecido por efeitos especiais especialmente atraentes ( A sétima viagem de Sinbad, Nathan Juran, 1958). Situado entre estes dois períodos, As aventuras de Hadji representa uma tentativa de certa forma única- ao menos por sua qualidade- de valorizar, em uma narrativa não-fantástica, a dimensão adulta, elegante e discretamente erótica do conto oriental. Don Weis, no que é sem dúvida o melhor filme de sua carreira, demonstra um refinamento plástico- um refinamento simplesmente, na verdade ( tout court)- absolutamente extraordinário, onde a contribuição do “color consultant”, o célebre fotógrafo George Hoyningen-Huene ( colaborador de Cukor em todos os seus filmes em cores, de A star is born a The Chapman Report) foi realmente determinante.
O filme manifesta, com efeito, uma soberba qualidade em todos os seus níveis: na natureza luxuriante dos cenários, sabiamente abstratos ; nos figurinos, fantasistas e coloridos, de uma perfeita unidade de estilo; na beleza elegante de seus intérpretes: soberbas Elaine Stewart e Rosemarie Bowe. John Derek não está mal também, um distante primo de Fabrício Del Dongo. Com muita arte e leveza, Don Weis permite ao espectador respirar o ar da grande aventura, purificada tanto de toda grandiloqüência quanto destas facilidades burlescas que são frequentemente pecados do gênero. O leve sorriso do contador de histórias também acrescenta constantemente a nota irônica sem a qual uma obra deste gênero seria incompleta; uma certa insolência é aqui necessária , tanto àquele que conta a história quanto ao que a escuta.

Nota: A Crítica americana, tão raramente lúcida, ignora como sempre este filme, que ela deveria incensar. Bosley Crowther, o crítico do The New York Times, revela seu obsceno mau gosto ao declarar que preferia Bob Hope no papel de John Derek. O filme deveu sua reputação apenas à clarividência de certos cinéfilos franceses , em particular dos Mac-Mahonistas.

Jacques Lourcelles.

Tradução: Luiz Soares Júnior.

Eric Rohmer, por Serge Daney



Primeira qualidade do cinema de Rohmer: a paciência. Não somente no caso de um homem seguro de si o suficiente para se impor- ao termo de um longa-metragem e de alguns filmes pedagógicos- como um dos “grandes” do jovem cinema francês. Mas também em uma obra onde tudo nos leva a esta virtude primordial: saber esperar, aprender a ver; ambas as atitudes são, graças ao cinema, uma única e mesma coisa. Como se o mundo não passasse de um imenso repertório de lições de coisas, repertório este do qual nunca se fez realmente o inventário.
O primeiro olhar não ensina nada. Mas há por detrás da neutralidade das aparências – em Rohmer, nada é sublinhado, e ainda menos privilegiado- uma lição a merecer, uma ordem a descobrir, uma verdade a pôr em evidência. Esta lenta maturação constituirá o próprio tempo do filme, ou seja: ela, longe de excluir os tempos mortos e os detalhes, apenas será possível por meio destes.
O princípio é simples então: catapultar idéias contra experiências, observar escrupulosamente e ver o que resulta daí. A experiência é para Rohmer um pouco o que foi para Hawks: a única realidade, que nos informa onde estão o possível e o impossível, recusando o segundo, buscando esgotar o primeiro. Toda idéia que não foi experimentada- ou seja: encarnada, filmada- não existe. A mesma coisa com os personagens: para que lhes seja consentido “ver” alguma coisa, é-lhes necessário um périplo, uma iniciação, uma prova ao termo da qual eles terão merecido o que já possuíam, mas que deveria tornar-se mais interior ( devenir plus intérieur), melhor assimilado por eles. No Signo do leão, é preciso merecer a riqueza por meio de um teste de pobreza que o obriga a redescobrir tudo; logo, a ver melhor. A mesma situação, só que num registro menos grave em La Boulangère de Monceau.
A experiência exige a maior honestidade possível, muitos escrúpulos e meticulosidade. Mas Rohmer é o cineasta assombrado pela geografia, as cidades, os mapas, as pedras, tudo o que pode oferecer esta resistência impessoal que torna as aventuras humanas mais exemplares.
A ficção, contudo, é sempre uma fraude; é preciso dissimular, gerir seus efeitos. É justamente o contrário que ocorre com os filmes pedagógicos, onde Rohmer reencontra a paixão da precisão, o ódio do “flou” e da entropia, a beleza de um raciocínio e o caráter inelutável de toda experiência. Nos Cabinets de physique au XVIII siècle, que é talvez sua obra-prima, é-lhe suficiente filmar uma experiência de Física, passo a passo, para que nasça a emoção mais simples. E a mais estranha também, pois nascida unicamente da exatidão.

Dictionnaire du cinema, Éditions universitaires, 1966
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Os carrascos também morrem, Fritz Lang

A opressão exercida em 1941 pelos nazistas sobre Praga e a resistência de seus habitantes são o assunto desse filme realizado em 1942 por Fritz Lang, adaptado de um roteiro original de Bertolt Brecht. A música é de Hanns Eisler e a foto é de James Wong Howe, fotógrafo de Sua Única Saída e Um Punhado de Bravos de Raoul Walsh que estão, junto a Os Carrascos Também Morrem, entre os primeiros filmes americanos de grande importância. Insistiremos portanto quanto ao fato de que Carrascos... representa uma colaboração entre Lang e Wong Howe. Após sua chegada nos E.U.A. foram, até 1942, diretores de fotografia de seus filmes: Joseph Ruttenberg, Leon Shamroy, Charles Lang Jr., George Barnes, Edward Cronjager e Arthur Miller. A superioridade de Wong Howe determina diretamente uma melhor expressão das intenções de Lang. Durante cento e trinta minutos de projeção, Carrascos prova a que ponto os problemas de luz são integrados à mise en scène, e como eles podem estimular a força dessa mise en scène. Não existe a possibilidade de um trabalho completo sobre um ator fora de uma certa comunhão de idéias entre o realizador e o fotógrafo, de uma colaboração íntima em vista das metas a se alcançar. Um plano mal iluminado é imediatamente esvaziado de seu sangue. Aqueles que conhecem a foto de Wong Howe para A Embriaguez do Sucesso (The Sweet Smell of Success) de Alexander Mackendrick sabem que ela permite imagens de uma grande brutalidade. Ora, basta se ter refletido pouco sobre o que deve ser e o que pode ser a mise en scène para se pressentir a necessidade dessa brutalidade. Todos os grandes romances, « Bon pied bon œil » de Roger Vailland, ou « La Corrida » de Michel Déon, são brutais. Da mesma forma, encenar, é se engajar na brutalidade em relação a si mesmo e ao mundo. A situação de um grande filme é sempre de ir contra a cegueira de seus contemporâneos. Nós somos portanto persuadidos que se, de uma maneira geral, as intenções de Fritz Lang não coincidem inteiramente com as de Bertolt Brecht, ao menos elas estão longe de lhes serem alheias (o crítico brechtiano Louis Marcorelles escreveu o contrário) e até mesmo se reencontram no que tange essa questão. Daí o caráter próprio a cada filme de Lang como a cada filme de Losey de ser teatral, de consagrar a duração do espetáculo à exposição dos fatos, dos impulsos e dos sentimentos. Trata-se de fazer com que a verdade se instaure sobre uma questão, isto quer dizer que se propague, que exponha as implicações sociais, econômicas, sentimentais, sexuais e familiares. Nesse sentido, o diálogo de Brecht, que a cada momento precisa onde está a responsabilidade de cada personagem, elimina todo o mistério e precipita a ação.
Da mesma forma, a mise en scène de Lang, em Carrascos e em outros filmes, elimina todo o mistério e precipita a ação. Como alcançar a mise en scène de Carrascos e a de O Tigre de Bengala, quais são as qualidades requisitadas? Uma boa memória e um exercício razoável dos sentidos. Em suma, não é falso crer que o talento ou o gênio não existem, pois apenas o trabalho conta (o trabalho do artesão e do técnico). Lembremo-nos de Joseph Losey falando de Bertolt Brecht: « A verdade não é absoluta mas ela é precisa. » Um policial não se expressaria de outra forma e exigiria: a verdade deve ser estabelecida com exatidão. Eis um desejo que é ao mesmo tempo o mais humilde e o mais pungente. Carrascos não é mais que uma visão um pouco mais exata das coisas. Espetáculo excepcional e todavia natural a quaisquer uns. Quem são esses e como reconhecer suas vozes, a questão está alhures. Visto que tudo está no método, é necessário citar Georges Bataille: « Se você tiver a paciência, a coragem também de ler meu livro, estudaremos, conforme as regras de uma razão que não descansa, soluções para problemas políticos procedentes de uma sabedoria tradicional, mas encontraremos igualmente essa afirmação: que o ato sexual é no tempo aquilo que o tigre é no espaço » Para concluir, diremos que a brutalidade é um método e a própria honestidade.


Marc C. Bernard Présence du Cinéma n° 10, janeiro de 1962
Tradução: Bruno Andrade.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

The Gipsy and the Gentleman, Joseph Losey 1957


Terceiro longa-metragem de Losey em seu exílio londrino. Este filme extravagante e barroco- na linha das produções Gainsborough, tipo The man in grey e The Wicket lady, ambos de Leslie Arliss, 1943 e 45-, é um pontos altos de sua obra menos conhecidos e mal amados. Mal amado em primeiro lugar pelo próprio Losey, em razão das péssimas condições de filmagem (desentendimento com o produtor Maurice Cowan; abandono do filme antes do mixagem e a montagem final; cortes prejudiciais praticados pela produção após este abandono). Em seguida, mal amado pelo público inglês, que se entediou com o filme. No entanto, o projeto não havia começado mal: foi na época o maior orçamento de Losey que, segundo disse, desejava fazer de seu primeiro filme de época uma narrativa de caráter walshiano (veine walshienne). Gipsy não consegue evitar certos defeitos de ritmo. Construído desde o princípio, e sem dúvida precipitadamente, em curtas seqüências secas e incisivas, no seu desenrolar a narrativa não consegue acelerar o ritmo, tal como exigido pela intriga. A partir da segunda parte, ele arrefece um pouco para readquirir vigor ao final, que constitui um dos mais belos finais da história do cinema. Mas em seu conjunto, Gipsy tem tantas qualidades que pode-se mesmo chegar a considerar que é o último “verdadeiro” filme de Losey, aquele em todo caso onde se exprime, sem dúvida pela última vez, seu talento mais autêntico e precioso. Em particular, todas as seqüências caracterizadas pela irrupção de um elemento violento na ação e pela valorização deste elemento na dimensão plástica do filme atingem o gênio: a atmosfera do filme eleva-se em grau na tensão, elegância e fascinação trágicas. (Ver por exemplo a cena, no entanto pouco importante na economia geral da história, da vandalização da propriedade pelo cigano selvagem).

O tema da decadência aparece pela primeira vez claramente na obra de Losey (encontraremos as premissas em Time without pity) e se inscreve concretamente nos aspectos visuais e dramáticos do filme. A decadência não é um tema de discurso, um pretexto para arabescos e figuras de retórica mais ou menos vãs, como será o caso frequentemente nas obras ulteriores de Losey. A decadência, resultado ao mesmo tempo da situação de uma classe na sociedade e da evolução individual de um personagem pertencente a esta classe (aqui, Paul Deverill), é designada por Losey como o momento a partir do qual os fortes tornam-se fracos e são incapazes neste estado de sobrepujar influências que em outros tempos eles teriam rejeitado ou digerido sem nenhuma dificuldade. A partir deste ponto, o equilíbrio psicológico e moral de um indivíduo, seu gosto do risco, sua vontade de viver vão se abismar com ele em uma vertigem, uma atração mórbida pela destruição, pelo naufrágio e pela morte.

Jacques Lourcelles. Tradução: Luiz Soares Júnior.

Sedução da Carne, Luchino Visconti 1954

A breve novela de Camilo Boito (1883) forneceu a Visconti a matéria de seu melhor filme e de uma das obras-primas do cinema italiano. Poder-se-ia mesmo afirmar que se trata do único filme “caligrafista” (calligraphique) italiano em cores. Visconti retorna a este movimento estético e a esta inspiração nascidas, bem o sabemos, de uma secreta oposição ao fascismo nos últimos anos do regime (e do qual Malombra é o filme-chave). Eles constituem, muito mais que o neo-realismo, o seu verdadeiro universo de artista. A intriga de Senso mostra o naufrágio de dois personagens em seu amor, qualificado por eles mesmos como triste e vergonhoso, amor este que conduzirá à sua recíproca destruição. Eles são um para o outro sua prisão e seu carrasco. Toda sua aventura se desenrola “à parte” (à coté) da História, da qual sua fraqueza, passividade e uma espécie de maldição social os impede de participar. São os representantes impotentes mas lúcidos de um mundo prestes a desaparecer. O positivo está morto neles, e eis a razão pela qual aqui é difícil falar-se em melodrama ou de ópera. Certo, a ópera é a referência estética maior que acompanha suas trajetórias, mas ela age à semelhança de um réquiem, do qual o lirismo gélido e fúnebre não nos permite experimentar por eles a menor piedade. Visconti pousa sobre seus personagens um olhar frio e distanciado, descreve-os em longas cenas anti-dinâmicas onde abundam os planos gerais, que colocam entre eles e os espectadores o máximo de recuo permitido pela mise-en-scéne. Sob o plano estético, o sucesso do filme (apesar das dificuldades e obstáculos encontrados por Visconti) aproxima-se da perfeição. Os dois intérpretes principais são inesquecíveis, e Alida Valli prolonga com uma coerência profunda o papel que desempenhara no Piccolo mondo Antico, assim como aqueles de Isa Miranda na época do caligrafismo. O mesmo refinamento caracteriza as cenas intimistas do filme e os “tableaux” de guerra. Estes últimos figuram entre os mais belos de um gênero que o cinema hesitava na época tratar em cores. Na parte consagrada à batalha de Custoza, Visconti teve de suprimir algumas cenas, das quais a ausência prejudica a clareza da narração (exemplo: aquela em que Ussoni recusa a seus partidários o apoio às tropas regulares). Contudo, o “ponto de vista de Fabrício”, tão frequentemente de forma vã chamado em defesa, permite aqui justificar sem artifício a confusão, plásticamente soberba, desta parte da narrativa. A produção e a censura tiveram uma influência conjunta para tirar do filme todo o lado negativo desejado por Visconti. Aliás, foi-lhe proibido chamar o filme de Custoza, nome da célebre derrota italiana, como era o seu desejo. É sob pressão que ele filma, a título de desenlace, a morte de Mahler, execução que julgava inútil mostrar. Ele a filmou no castelo Santo Ângelo em Roma e não em Verona, que a equipe já tinha deixado para trás.

Vejam a descrição dada por ele nos Cahiers du Cinema (número 93) a respeito da seqüência que ele havia filmado para terminar o filme, ao invés da execução do tenente: “ Vemos Lívia passar por entre grupos de soldados bêbados, e o fim mostrava um pequeno soldado austríaco, muito jovem, no máximo 16 anos, completamente bêbado, apoiado contra o muro, cantando uma canção de vitória como as que se ouve na cidade.Depois ele parava, chorava e gritava: Viva a Áustria!” Não podemos, evidentemente, julgar a respeito da qualidade deste final, mas o que conhecemos é perfeitamente lógico e admirável. Ele acresceu ao filme alguns dos planos mais significativos do estilo de Visconti. Nos vinte anos que se seguiram a Senso, Visconti foi sem dúvida mais livre, mas não reencontrou jamais o gênio que manifesta aqui. Ele se embrenhou pouco a pouco no academicismo e, comparado ao rigor e à plenitude estética deste filme, seu tão elogiado Leopardo, onde ele tentou vulgarizar sua temática e seu universo, é apenas um “pensum” extremamente cansativo.

Nota: o diretor de fotografia G. R. Aldo morreu em um acidente de automóvel no decorrer das filmagens.

Jacques Lourcelles. Tradução: Luiz Soares Júnior.

O segredo da Porta Fechada, Fritz Lang 1948

Segundo e último filme da Diana Productions, sociedade fundada por Lang, Walter Wanger , sua mulher Joan Bennett e Dudley Nichols. (Diana era o nome da filha de Bennett e de seu primeiro marido). Depois do fracasso deste filme e do fim da Diana, começará para Lang a fase mais errática de sua carreira. O segredo da porta fechada é o mais onírico,, mais barroco , mais cheio de poesia de todos os seus filmes americanos. A psicanálise, que aqui não é aprofundada enquanto método científico e terapêutico, serve sobretudo de suporte concreto à revelação da obsessão criminal do herói, que se liga de maneira central ao universo languiano. “Somos todos filhos de Caim”, diz o personagem interpretado por Redgrave quando de seu processo imaginário; esta frase poderia ser posta como princípio em todos os filmes de Lang. O fato de o personagem não ser um criminoso literal, mas assombrado pela idéia do crime, torna-o ainda mais languiano. Lang era intimamente convencido de que cada homem é um criminoso em potencial, e o exprimia frequentemente em conversações privadas. Às vezes, perguntava a algum de seus interlocutores, com um tom falsamente interrogativo, se este jamais desejara matar alguém. A resposta negativa suscitava nele um ceticismo completo.

Uma das particularidades do filme (que engendra aliás seu poder poético) é sua construção profundamente subjetiva, que nos permite penetrar nos pensamentos e sentimentos da heroína, especialmente graças a um dos mais belos comentários off jamais ouvidos em um filme. No interior da visão da heroína (que existe no filme enquanto “sujeito”), o personagem masculino é considerado sucessivamente como objeto de fascinação, amor, por fim de estupor e terror, os quais serão sempre mesclados intimamente à presença do amor. A extrema liberdade da dramaturgia permite a este “objeto” tornar-se, por seu turno, “sujeito”, na única e célebre seqüência do processo imaginário que o herói intenta contra si mesmo. A foto, os cenários, o découpage, minuciosamente pensados préviamente por Lang com a ajuda de Stanley Cortez, dão ao menor interior uma intensidade expressiva próxima do fantástico. O plano típico do filme é o da heroína atravessando algum corredor ou vestíbulo, transformado pelas zonas de sombra e de luz em um lugar perigoso, ao mesmo tempo ameaçador e fascinante. Ela deve percorrê-lo integralmente, com o propósito de atingir aos limites de seu medo, do obstáculo, do enigma e do segredo que ainda a separam de sua felicidade. Pois O segredo da porta fechada é, na cronologia da obra de Lang, o último filme onde o autor ainda deixa a seus personagens uma chance - mínima que seja - de felicidade.


Jacques Lourcelles. Tradução: Luiz Soares Júnior.

A Carruagem de Ouro, Jean Renoir 1953

A obra-prima absoluta de Renoir. O mais civilizado e o mais europeu de todos os filmes. Os motivos de admiração aqui são inumeráveis: construção em atos ainda mais hábil, em sua genial simplicidade, que a de A regra do jogo; utilização refinada e sábia da profundidade de campo no teatro, no palácio do rei e sobretudo no apartamento de Camilla; esplendor harmonioso das cores, e esta luz dourada e clara que desde então não mais se viu na tela. É muito mais fácil amar este filme que lhe penetrar os segredos. Sem dúvida, estes se encontram no caráter proteiforme de Camilla, retrato ao mesmo tempo da condição humana segundo Renoir, do próprio autor, de suas aspirações e visão de mundo. Proteu: símbolo e encarnação do desejo faustiano de viver várias vidas. Camille sente com plenitude, com uma intensidade avassaladora, o apelo da exuberância da vida; mas ela lhe experimenta também a frustração. Uma vida é muito pouco. Todas as vidas é impossível. Entre ambas, ou melhor, para além de ambas, há o teatro, esta miragem encarnada, este remédio à melancolia e à todas as frustrações.

Certo, Renoir presta uma homenagem ao teatro, mas seria um erro reduzir o sentido do filme à esta homenagem. O teatro aparece aqui, evidentemente, como realidade concreta (Renoir não exprime nada que não passe em primeiro lugar pelo concreto), mas sobretudo como metáfora. Ele é o receptáculo de todas as aspirações humanas à totalidade, à plenitude; é o espelho da alma sensível e ávida da heroína e de seu autor. O teatro representa uma ultrapassagem, embora real, da realidade: o teatro ou a metafísica preferida do Ocidental. Síntese de arte plástica e de arte dramática, música e confissão íntima, A carruagem de ouro é um desses filmes que permitem crer na superioridade do cinema sobre todas as outras artes.

Nota: O filme existe em três versões: italiano, francês e inglês. A versão inglesa deve ser considerada a oficial, já que nela se ouve o som direto da filmagem. No entanto -pois tudo é paradoxo em Renoir-, a versão dublada em francês nos parece muito superior. As vozes são mais variadas, mais pitorescas, mais engraçadas e, se pudermos falar assim, mais concretas. Elas acrescentam à elegância e ironia medidas do diálogo um elemento picaresco do qual não se consegue abrir mão, uma vez provado.Os atores que dublam a si mesmos (Magnani, Odoardo Spadaro) estão ainda melhores na dublagem que no idioma original. Por outro lado, Jean Debucourt, na versão inglesa, é horrivelmente mal dublado. Quanto à versão italiana, ela apresenta o mérito de fazer na Magnani falar em sua língua original. No entanto, enquanto versão dublada, ela parece menos colorida e variada que a francesa.

Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes. Tradução: Luiz Soares Júnior.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

CIDADÃO KANE. 1941, USA ( 119’) Prod. RKO/Mercury Theatre Production ( Orson Welles). Realização: Orson Welles. Roteiro: Herman J. Mankiewicz, Orson Welles. Foto: Gregg Toland. Música: Bernard Herrmann. Dec: Van Nest Polglase, Perry Ferguson, Darrell Silvera. Intérpretes: Orson Welles ( Charles Foster Kane), Joseph Cotten ( Jedediah Leland), Dotothy Comingore ( Susan Alexander Kane), Everett Sloane ( Mr. Bernstein), Georges Coulouris ( Walter Parks Thatcher), Ray Collins ( James W. Gettys), Ruth Warrick ( Emily Norton Kane), Erskine Sanford ( Herbert Carter), William Alland ( Jerry Thompson), Agnes Moorehead ( Mrs. Kane), Richard Baer ( Hillman), Paul Stewart ( Raymond).




Tamanho foi o impacto de Cidadão Kane em seu lançamento e no imediato pós-guerra que desde então ele foi sempre citado- e ainda o é- entre os 10 melhores filmes da história do cinema em listas feitas pelos historiadores, críticos e cinéfilos. Ainda muito recentemente, no “The top 100 movies” de John Kobal, Londres, Pavilion Books, 1989, que reúne quatrocentas listas de filmes de todos os países, Cidadão Kane chega em primeiro lugar.
Uma grande parte- e sem dúvida parte essencial- da originalidade do filme já existia “no papel”, antes mesmo do primeiro dia de filmagem. Ela diz respeito à construção do filme, que compreende ao menos três elementos novos. Em primeiro lugar uma espécie de sumário, de lista de temas do filme aparece no cine jornal que resume no começo o filme da vida e a carreira de Kane. Esta indica os principais pontos a serem desenvolvidos pela intriga. Aqui, originalidade absoluta: em nosso conhecimento, nenhum outro filme comportou até então este tipo de introdução. Segundo elemento novo: a utilização sistemática e múltipla de flashbacks confere a Cidadão Kane a estrutura de conjunto de um filme-investigação (enquéte).
Estes flashbacks emanam de cinco narradores diferentes, contactados pelo jornalista-inquiridor. Um desses narradores, o tutor de Kane, Thatcher, que está na origem do primeiro dos flashbacks, a princípio só nos aparece como autor de memórias lidas pelo jornalista; mas nós o vemos em carne e osso em outro trecho do filme. Desvio imprevisto, revivendo com virtuosismo a curiosidade do espectador: o primeiro narrador encontrado pelo jornalista ( Susan Alexander) recusara-se a falar então, e seu testemunho só aparece em quinta posição no conjunto de 6 flashbacks.
Embora não fosse o primeiro filme a utilizar o flashback - longe disso, aliás, pois este procedimento aparece com força na história do cinema com The Power and the glory , Thomas Garner, de 1933, de William K. Howard sobre um roteiro de Preston Sturges, filme que apresenta analogias de estrutura e conteúdo com Cidadão Kane; além disso, o flashback também fora usado em Trágico amanhecer, 1939, de Carné-, o filme de Welles marca uma data muito importante na utilização deste meio.
Terceiro elemento novo: embora a maioria das seqüências contidas nos flashbacks se completem, como é normal ocorrer, em relação aos eventos que relatam, algumas se repetem e dão-nos diferentes pontos de vista sobre o mesmo evento: a primeira sequência de Salambô, por exemplo, é narrada sucessivamente por Leland ( quarto flashback) e por Susan ( quinto flashback). Este tipo de repetição ou variação de pontos de vista sobre um mesmo evento passado aparece, sem dúvida, pela primeira vez em um filme. A posteridade deste procedimento será relativamente abundante: citemos as célebres seqüências de Rashomon de Kurosawa ( 1951) , onde este procedimento constituirá a própria base do filme, e A condessa descalça de Mankiewicz ( 1954).
Esta construção extremamente inovadora de Kane, no entanto, apresenta falhas, tanto no plano da coerência quanto em relação ao equilíbrio das partes. Depois de ter mostrado seus personagens unicamente através de testemunhos, escritos, cine jornais, o próprio Welles renega este procedimento e torna-se novamente um verdadeiro “narrador-deus”, com o propósito de revelar ao espectador, na última sequência e por meio de uma narração direta, o significado de “Rosebud”.
De outro lado, a importância acordada à descrição de Kane como um Pigmaleão fracassado ( em suas relações com sua segunda esposa) parece muito excessiva, em relação a todos os outros aspectos da vida de Kane. De qualquer modo, esta construção impressionou muito tanto o público quanto a crítica.
O relevo adquirido pela estrutura do filme se deu provavelmente ao fato de que o personagem que esta se encarregara de retratar não estava à altura da sutileza estrutural do filme, que este carecia singularmente de substância.
É aí que o filme parece muito inferior à sua reputação. Kane, o personagem, é sem dúvida o mais belo “albergue espanhol” da história do cinema, no sentido mais negativo da expressão: um verdadeiro balão inflado, um envelope vazio de onde a principal realidade provém de dois elementos exteriores. O primeiro é a relação que mantém com sua “figura chave” ( William Randolph Hearst), e que lhe dá, já que Hearst é um magnata da imprensa e manipulador da opinião pública americana, um certo valor sociológico. Mesmo que Hearst não seja a única inspiração para Kane- cita-se também Basil Zaharoff, Howard Hughes, etc,-, a sua biografia e a de Kane são suficientemente próximas e ricas em similitudes para que Kane possa ser considerado uma tradução cinematográfica de Hearst.
O segundo elemento exterior é a semelhança que Kane entretém com o próprio Welles: megalomania, vontade constante de se afirmar diante de si mesmo ou do mundo, tentação e fascinação do inacabado, etc. No plano dramático, o mais belo acerto de Welles foi suscitar para este vencedor a compaixão que o público habitualmente experimenta diante dos perdedores ( loosers). (A notar que o próprio filme, à imagem de Kane, perdeu muito dinheiro em seu lançamento, apesar do sucesso, e só tornou-se lucrativo ao longo dos relançamentos).
Se certos autores, como Sartre em seu célebre artigo no “Écran Français” ( de 1 de agosto de 1945), em parte renegado pelo próprio, criticaram o filme como intelectualizante e estetizante, a reação destes deve ser relacionada com o caráter paradoxalmente inconsistente de Kane “enquanto herói de ficção”. Kane é, com efeito, quase que totalmente desprovido de espessura romanesca ou psicológica. Toda força do personagem reside em seu mito, que faz dele um colosso com pés de barro.Ao longo de sua carreira, Welles vai criar e interpretar personagens mais ricos, como Arkadin em Grilhões do passado e o policial Quinlan em A marca da maldade.
No plano visual, Cidadão Kane contém uma série de procedimentos ( curtas focais, plongés e contra-plongés, presença dos tetos dos cenários no quadro, objetos em primeiríssimo plano, etc) que Welles não inventou, mas dos quais ele fez as figuras de uma retórica barroca que lhe pertence plenamente de direito.
Este é o lugar de colocar duas questões. Cidadão Kane é um filme revolucionário? Um filme moderno? Os lugares comuns que circulam através da maioria das histórias do cinema impõem-nos de responder afirmativamente. Mas isto talvez seja incorrer em precipitação.

Estilísticamente, a dívida de Welles com o passado é considerável: influência do expressionismo nos cenários, iluminação e até mesmo no esquematismo de certos personagens secundários, reforçado pela mediocridade na direção das atrizes ( os atores masculinos, ao contrário, estão excelentes); influência do cinema russo na fragmentação analítica e voluntária da construção ( jamais radicalizada desta forma antes) e do découpage ( corte) propriamente dito. Sob este aspecto, Cidadão Kane, pelo retorno às fontes russas, parece justamente o contrário de um filme moderno, o cinema moderno - Lang, Preminger, Mizoguchi- caracterizando-se ao contrário como sintético e “ d’une seule couleé” ( de um fôlego só, uma corrente única), procurando fazer esquecer ao máximo a presença e o papel da montagem, neste desejo irrealizável de um filme composto por um único plano longo e perfeitamente deslizante ( lisse).
A revolução wellesiana só tem sentido, então, em relação a certos hábitos hollywoodianos. Resta a questão da profundidade de campo e do emprego do plano-sequência, figuras que Welles utiliza e que são as bases do cinema moderno. Mas nele a profundidade de campo é empregada de maneira tão demonstrativa, tão “visionária”( voyante) que ela chama a atenção mais para si do que para a sucessão de planos do découpage tradicional ( sem ser por isso mais rica de sentido).
No que se refere ao célebre plano em que Kane descobre a tentativa de suicídio de Susan ( com o copo em primeiro plano), considerado como exemplo perfeito do plano-sequência usado com profundidade de campo, longe de corresponder a um emprego realista, global, sintético, totalizante do espaço cinematográfico, ele é resultado- sabe-se hoje em dia- de um truque no interior da câmera. O plano foi primeiro filmado com o foco sobre o primeiro plano iluminado, enquanto que o plano de fundo estava escurecido e invisível, depois voltaram a película para trás para refilmar o plano novamente, agora com o primeiro plano no escuro e o foco sobre o plano de fundo iluminado. Welles aqui se revela, como Kane, um manipulador e um prestidigitador sem igual; e as principais vítimas de sua manipulação foram seus asseclas, na primeira linha dos quais figura André Bazin. Depois de ter julgado “natural” a mise-em-scéne deste plano, Bazin fala do “realismo” deste découpage em profundidade. “Realismo sob qualquer aspecto ontológico, escreve ele, que restitui ao objeto e ao cenário sua densidade de ser, seu peso de presença, realismo dramático que se recusa a separar o ator do cenário, o primeiro plano dos planos dos fundos, realismo psicológico que recoloca o espectador nas verdadeiras condições da percepção, a qual não é jamais totalmente determinada a priori” ( Em André Bazin: Orson Welles, Éditions du Cerf, 1972, Ramsay).
Nos três domínios onde Bazin o situa, este dito realismo não é nada mais que o produto das manipulações de Welles, que tem por objetivo aprisionar a realidade em um cadre do qual a rigidez, o extremo artifício, o caráter coercitivo e congelado saltam aos olhos, mesmo se ignorarmos o modo como o plano foi fabricado. É aliás uma espécie de aberração falar de realismo, e ainda mais ontológico, a respeito de Welles, que dele se distancia tão radicalmente, por sua natureza barroca, sua vocação de prestidigitador e de mestre dos artifícios, seu gosto do disfarce, da maquiagem e dos elementos postiços. Estes últimos aliás são frequentemente detestáveis no Cidadão Kane, embora tornados necessários pelo fato de que ele encarna com vinte e cinco anos um homem entre vinte e seis e setenta.
Sartre escrevia: “Tudo é analisado, dissecado, apresentado na ordem intelectual, em uma falsa desordem que é apenas a subordinação da ordem dos eventos à ordem das causas: tudo é morto. As invenções técnicas do filme não são feitas para restituir a vida. Há admiráveis fotos (...). No entanto, tem-se a impressão freqüente de que a imagem “prefere a ela mesma” ( se prèfere); somos constantemente atropelados por essas imagens excessivamente rígidas, mascaradas por excesso de cálculo (grimaçantes à force d’être travaillées). Como um romance no qual o estilo foi radicalizado e levado para o primeiro plano, enquanto os personagens foram esquecidos “ ( Este texto figura na excelente obra de Olivier Barrot: “L’écran français Reunis, 1979).

Última questão: Cidadão Kane teve uma influência preponderante sobre a evolução da mise-em-scéne cinematográfica? Aí também a maioria dos historiadores respondem afirmativamente, e alguns de uma forma exagerada, que beira o delírio. Estéticamente, a influência concreta do filme deve ser relegada ao filme noir, por meio de sua construção de “filme-inquérito” e por sua temática da nostalgia da infância, do paraíso perdido, bem resumido pela palavra-chave Rosebud. É com razão que Robert Ottoson, no prefácio a seu “Reference Guide to the American Film Noir 1940-1950”, coloca Cidadão Kane entre os oito fatores principais que determinaram o nascimento do gênero noir ( depois do expressionismo alemão, o realismo poético francês, o romance policial “hardboiled”, o uso das externas como elemento de economia no cinema do pós-guerra, o clima de desespero engendrado pela guerra e pela dificuldade dos antigos soldados de se readaptarem socialmente, o interesse pela Psicanálise e por Freud , e por fim o neo-realismo italiano).
Tratando-se de um cineasta essencialmente barroco, a influência de Welles foi forçosamente muito limitada, os barrocos tendo sempre representado uma ínfima minoria no cinema de Holywood e outros. Fora sua influência sobre alguns pequenos mestres que viveram em sua órbita (Richard Wilson, Paul Wendkos), Welles marca, em uma certa medida, a geração de novos cineastas americanos dos anos 50: Aldrich ( sobretudo em A morte num beijo), Nicholas Ray e Fuller.
Mas onde Cidadão Kane teve o papel mais determinante foi na forma através da qual o público, e sobretudo os cinéfilos e cineastas iniciantes, passou a olhar o cinema e o lugar do metteur-em-scéne no interior da criação cinematográfica. Welles era justamente o contrário de uma eminência parda; embora fosse um homem empreendedor , buscando sempre provar aos outros o seu próprio gênio, acabou por representar o emblema espetacular do metteur-em-scéne-autor. Seria ele considerado assim se não tivesse também representado no filme o papel principal?
Para o primeiro filme deste jovem de 25 anos, que já tinha detrás de si as carreiras de pintor, jornalista, ator, diretor de troupe teatral, homem de teatro e de rádio, a RKO confiou um grande orçamento e uma total liberdade, inclusive o controle- privilégio supremo- sobre a montagem final.. Sob este prisma, Cidadão Kane, antes mesmo do primeiro dia de filmagem, já era uma bomba. O gênio publicitário e auto-publicitário de Welles, que impressionou tantos cineastas da Nouvelle Vague francesa, fez o resto. A tal ponto que se esqueceu, durante mais de 30 anos, a contribuição essencial do co-roteirista Herman Mankiewicz, irmão mais velho brilhante de Joseph L., que ofuscava tanto o brilho de seu irmão diretor que este declarou um dia: “ Eu sei o que vão inscrever no meu túmulo... aqui jaz Herm... ops, Joe Mankiewicz”.
De qualquer forma, uma grande parte da substância e da construção do filme, assim como o imortal “Rosebud”, pertencem a Herman J. Mankiewicz, que escreveu sozinho os dois primeiros esboços do roteiro. ( Não podemos minimizar igualmente o papel do operador Gregg Toland e do músico Bernard Herrmann, mesmo que o trabalho deste aqui seja apenas um pálido esboço do que realizará mais tarde para Hitchcock ou Mankiewicz).
Em conclusão, poder-se-ia quase dizer que Cidadão Kane foi mais importante para a história da crítica cinematográfica que para a arte do cinema propriamente dita. Cidadão Kane ensinou muitos espectadores a ver melhor os filmes e a melhor julgar a respeito da importância do metteur-em-scéne no interior desta criação coletiva que é a realização de um filme. Evidentemente, eles teriam chegado a esse estágio de apreensão dos filmes sem ele.
Contrariamente aos que pensam que Welles modificou profundamente com este filme o status do realizador em Hollywood, excetuando-se Ford, Hitchcock e 2 ou 3 diretores, a maioria dos grandes metteurs-em-scéne hollywoodianos ( Lang, Walsh, Tourneur, Sirk) permaneceu relativamente na sombra. Assim como Welles, aliás, antes e depois de Kane. E para a maioria deles, esta discrição lhes era conveniente. Por que necessitariam eles de Welles para se afirmar?

Dicionário de Filmes, Jacques Lourcelles.

Traduzido por Luiz Soares Júnior.
A REGRA DO JOGO 1939 ( França) ( cópia restaurada: 110’).Prod: N.E.F. Realização: JEAN RENOIR. Roteiro: Jean Renoir. Foto: Jean Bachelet. Música: Roger Désrormières, Mozart, Monsigny, Chopin, Saint-Saens, Vincent Scotto, Johan Strauss, etc. Dec: Eugène Lourié. Intérpretes: Marcel Dalio ( marques Robert de la Chesnaye), Nora Gregor ( Christine), Roland Toutain ( André Jurieu), Jean Renoir ( Octave), Mila Parely ( Geneviéve de Marrast), Julien Carette ( Marceau), Gaston Modot ( Schumacher), Paulette Dubost ( Lisette), Pierre Magnier ( o general), Odette Talazac ( Charlotte de la Plante), Piewrre Nay ( Saint-Aubin), Roger Forster ( o homossexual), Nicolas Amato ( o sul-americano), Richard Francoeur ( La Bruyère), Claire Gerard ( Mademoiselle de la Bruyére), Anne Mayen ( Jackie), Corteggiani (Berthelin), Eddy Debray ( o mordomo), Larive ( o cozinheiro), Lise Elina ( a repórter), André Zwobada ( o engenheiro de Caudron).

Insucesso comercial notório quando de seu lançamento e de seu primeiro relançamento em 1945, é sem dúvida o filme de Renoir que foi sucessivamente mais atacado e louvado. Não apenas o público não o compreendeu e amou durante anos, mas até os anos 50 os principais historiadores , em seus comentários sobre o filme, mesclaram aos elogios gerais o seu veneno. Bardèche fala de “estranha miscelânia”, Sadoul de “incoerência”, “obra desigual”, Charles Ford de “glória um pouco usurpada”. Em 1945, quando o filme foi relançado, alguns, como Charles Charensol, ainda não tinham se desarmado de suas invectivas de antes da guerra, e até lamentavam a reaparição do filme: “A regra do jogo foi realizado às vésperas da guerra e hoje em dia estaria esquecido se não tivessem a infeliz iniciativa de ressuscitá-lo”, escreve Charensol, unindo a indignação pública do censor ao truísmo de um La Palice.

Vinte anos mais tarde, A regra do jogo será quase que unanimemente considerado como o melhor Renoir e um dos maiores filmes franceses. Nesse ínterim, os cinéfilos do pós-guerra haviam descoberto o filme, haviam-no visto e revisto nos cine clubs, tão influentes na época. Este é um dos numerosos exemplos de reputação criada pelos cinéfilos contra a crítica estabelecida oficial dos “profissionais” e dos historiadores. Nesta época, o filme é frequentemente amado e descrito como um meteoro caído do céu no meio da produção corrente da época, produção esta com a qual ele não teria nenhuma relação, semelhança nem medida comum. Este ponto de vista, completamente errado, deve ser colocado em relação com os preconceitos nutridos pelos cinéfilos do pós-guerra e dos anos 50 em relação ao cinema francês, que eles conheciam muito mal aliás.
A partir dos anos 70, este cinema é redescoberto, re-estimado e, desde então, apercebemo-nos de que A regra do jogo, longe de ser uma exceção na produção da época, pertence, pelo contrário, a uma longa e rica linha de filmes que descrevem a sociedade do tempo segundo uma visão crítica e panorâmica, apoiando-se sobre uma série de personagens, pertencentes a todas as classes.
Quer se tratassem de filmes em formato de sketches, ou fossem eles assinados por Guitry ( Ils etaient neuf célibataires), Yves Mirande ( Café de Paris, Derrière la façade) ou Duvivier ( Um carnet de bal), estes filmes mesclavam o humor à crueldade, declinando, sob todos os tons, o seu pessimismo; e todos, com uma lucidez mais ou menos aguda, têm a consciência de descrever o crepúsculo de um mundo. Podemos mesmo encontrar no argumento de um desses filmes ( Sept hommes... une femme, de Yves Mirande, 1936) uma fonte possível para o roteiro de A regra do jogo: uma jovem e rica viúva reúne em sua mansão sete pretendentes ( artistas, aristocratas ociosos, financista, empresário, etc) para escolher aquele com quem ela se casará. Cansada das mentiras, da cupidez e vulgaridade dos pretendentes, ela vai rejeitar a todos. Antes disso, para diverti-los, ela organizara uma partida de caça, e o filme contém planos quase idênticos aos de Renoir. Constantemente, se estabelece um paralelismo entre o mundo dos patrões e dos empregados. Trata-se, é bom que se diga, de um dos filmes mais preguiçosos e mal-sucedidos de Mirande, e aqui não se trata de compará-lo,no plano criativo, à Regra do jogo. Mas a semelhança de ambos os panoramas diz muito acerca do pertencimento de Renoir a um filão em voga na época. De uma maneira geral, estes filmes tiveram grande sucesso. E o público, longe de se mostrar desorientado, apreciava sua profusão dramática, suas rupturas de tom, seu niilismo mais ou menos envolto em piada. Como explicar então o insucesso total de Renoir no interior deste gênero? Alguns consideraram para este fracasso causas externas, como o lançamento excessivamente tardio do filme, às vésperas da guerra. Quanto às causas internas para o insucesso, elas são tão numerosas que hesitaríamos em enumerá-las, caso o gênio específico do filme não fosse melhor explicado por algumas. Entre elas, pode-se citar em primeiro lugar este parentesco tão profundo com uma tradição literária que vai de Marivaux a Beaumarchais e Musset, que embora pudesse seduzir a crítica, deve ter assustado o público ( aliás, um dos primeiros títulos do filme seria Os caprichos de Marianne).
Em seguida, há esta distribuição de atores , variada mas muito insólita e às vezes discordante. A melancolia desfalecente, indecisa de Nora Gregor,- princesa austríaca que havia interpretado no Michael de Dreyer e em numerosos filmes alemães e austríacos , antes de aparecer pela primeira vez aqui em um filme francês- certamente decepcionou o público, assim como a volubilidade desajeitada e estranha de Renoir no papel de Octave, personagem que contém em filigrana fantasmas de ordem autobiográfica. Será que foi esta discordância que impediu o público de aplaudir as interpretações mais clássicas de um Carette ou de uma Paulette Dubost?
Durante a preparação do filme, este elenco sofreu várias modificações: o papel de Nora Grégor estava previsto para Simone Simon, o de Renoir para seu irmão Pierre, o de Dalio para Claude Dauphin, o de Roland Toutain para Gabin e o papel de Modot para Fernand Ledoux.
Mas certamente o fator de maior rejeição do público foi esta gravidade de tom que progressivamente se instala na intriga e pouco a pouco recobre suas peripécias burlescas e “guignolesques”. Com os personagens incongruentes, inocentes, vulneráveis, sinceros de Jurieu e Octave, tão deslocados na universal mentira social que estigmatiza o filme, Renoir abolia, em um só movimento, o cinismo, a distância e o recuo que o público apreciava nos afrescos irônicos de Mirande. Distância e cinismo que, para o espectador da época, eram parte integrante do seu prazer. Privado desta distância, insensível à sábia construção da intriga, às suas referências permanentes a uma tradição literária, o público aderiu ainda menos ao filme ao perceber neste a atmosfera de uma confissão íntima, sobretudo quando esta exprime a impotência de certos seres ( Octave, Jurieu) para se inserir no jogo do mundo.
As qualidades formais do filme só serão apreciadas no pós-guerra. Então, louvar-se-á sem reserva esta virtuosidade espantosa no uso da profundidade de campo, dos planos longos, dos movimentos de câmera, complexos e fluidos, que transformam um décor teatral em uma seqüência contínua de espaços por onde desfila, como em uma mascarada, toda uma sociedade. Longe de lamentar que este vaudeville, esta comédia de erros se transforme -e se congele- em uma tragédia grotesca e razoavelmente inquietante, um novo público de cinéfilos, de amadores passionais e de cineastas aprendizes verá em A regra do jogo a síntese genial de um artista que utiliza a fundo a escritura cinematográfica, em seus aspectos igualmente visuais e literários.
Nota complementar: Renoir é por excelência um “autor de obra”: seu gênio brilha, é claro, em cada um de seus filmes, mas ainda mais na reunião dos filmes, em sua confrontação. Se ele nos espanta por ser o autor de A grande ilusão ou da Regra do jogo, ele nos causa ainda maior admiração por ter realizado ambos os filmes e de ter desta forma tocado a todas as camadas do público, como um escritor que fosse capaz de escrever ao mesmo tempo Os Miseráveis e A Cartuxa de Parma. A história das cópias de A regra do jogo testemunha a vicissitude das recepções do filme. Em 1939, sai uma cópia de 113 minutos, já reduzida a 100 minutos. Em vista das reações do público, corta-se ainda uma dezena de minutos do filme e o papel de Octave é amplamente amputado. Em 1945, relança-se sem sucesso uma cópia curta. Durante mais de 10 anos circularão cópias de 90, 85 e 80 minutos. O negativo original foi destruído em um bombardeio em Bolonha, em 1942. Em 1965, apoteose da reavaliação cinefílica do filme, lança-se, aos cuidados da Sociedade de Grandes Filmes Clássicos, uma cópia bem completa de 3000 m ( 110 minutos), estabelecida desde 1958-9 por Jean Gaborit, Jacques Marechal e Jacques Durand a partir de uma cópia excessivamente longa, reencontrada em 1946 e de um vasto stock de cortes. O esforço beneficiou-se dos conselhos do próprio Renoir, e o filme conhece -enfim- o sucesso.

Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles.

Tradução: Luiz Soares Júnior.

La Punition, Jean Rouch

Dos espectadores da televisão francesa aos especialistas em cinema verdade, quase todo mundo tem condenado La Punition como um tipo de cinema mentira. Sua atitude é injustificada, uma vez que confundem três elementos bastante diferentes: filme, verdade, e cinema verdade. Por exemplo, não teríamos o direito de dizer que La Punition é ruim por ser inexato (os documentários de Rossif são verdadeiros, mas vejam só o resultado), ou por não ser um real exemplar do cinema verdade (The Rules of the Game também não o é), ou por seu diretor ou, mais precisamente, seu produtor (e a quem nós poderíamos dar crédito mediante um desacordo?) pudessem incorretamente associá-lo a tal. A verdade de La Punition não se torna aparente sem a participação ativa do espectador, que em conversações paralelas ou diante de seus pratos, enquanto tentam assistir ao filme, negligenciam sua correspondência. Não é este tipo de passividade que um ataque de nervos dramático estimula em você. O público tem de interpretar o filme ativamente para compreender a que nível de verdade ele se situa. Se a nossa atenção for lassa, perdemos o sentido do filme. É possível ver La Punition três ou quatro vezes sem que uma única vez aparente ser o mesmo filme. Mesmo que tivesse oito horas de duração, seria igualmente atrativo. Aqui temos um filme excitante, isento de erotismo e acessível a todos, que faria quebrar todos os recordes de bilheteria, caso o Francês não preferisse, ao invés de um cinema simples, direto (La Punition, Adieu Philippine, Procès de Jeanne), o maneirismo do cinema indireto (Melodie en sous-sol, La Grande Evasion, La Guerre des boutons), cujas inúteis digressões, aridez e repetição, no final das contas, refletem valores puramente comerciais.

Luc Moullet. Traduzido por Felipe Medeiros.

A retrospectiva dedicada a Mario Bava (1914-1980) pela Cinemateca Francesa, também co-editora de uma preciosa coletânea de textos sobre o mestre italiano, permite hoje uma análise mais confiável. Como seus filmes saíam em Paris sempre nas mesmas salas, todas associadas ao filme de terror – Atlas e Midi Minuit incluídas – se poderia pensar que Bava, durante os vinte anos de sua carreira de diretor (1960-1980), tivesse sempre realizado o mesmo filme, à exceção de alguns westerns ruinzinhos, e que ele era homem de um só gênero... assim como Matarazzo, Leone ou Jacopetti, que realmente só se sentiam à vontade no melodrama, no western ou no documentário-espetáculo.Na verdade, colar uma só etiqueta na obra de Bava se revela coisa difícil, a marca do Fantástico não se encaixando nem em La ragazza che sapeva troppo (Olhos Diabólicos), nem em Banho de Sangue, que se situa na realidade contemporânea, sem pegar emprestado nem ao passado, nem ao futuro, nem ao sobrenatural. A marca do Terror, da qual fazem parte, de certa forma, esses dois filmes, só podendo ser atribuída a Perigo: Diabolik, reconstituição muito divertida de uma história em quadrinhos de sucesso, e nem mesmo – por causa de seu título – à Terrore nello spazzio (O Planeta dos Vampiros), inteiramente marcado pela frieza e especulações futuristas.Dois gêneros, portanto, são utilizados alternativamente, o fantástico e o terror.Mas estará o medo, que faz figura de marca de fábrica (vejam esses títulos: I tre volti della paura, Operazione paura ["as três faces do medo", "operação medo", traduzidos no Brasil como As Três Máscaras do Terror e Mata, Bebê, Mata, n.d.e.]), realmente no encontro? As ações se revelam inverossímeis demais. Personagens e atores são freqüentemente inexistentes1. Pode-se temer, então, pela vida de personagens inconsistentes, que deixam a identificação impossível, e que não se podem distinguir uns dos outros. Em O Planeta dos Vampiros, raramente se vêem os rostos e os corpos dos atores, dissimulados atrás de suas roupas de astronautas. O medo, se ele existe, aparece unicamente durante aqueles poucos segundos que passam entre a primeira visão da arma do crime – de preferência gilete ou canivete – e a visão realmente gore do corpo odiosamente mutilado. Dois filmes, no entanto, procuram uma angústia quase contínua: Olhos Diabólicos, por causa da protagonista perseguida permanentemente, situada no quadro realista, à qual não podemos nos identificar, e, principalmente, por causa da impossibilidade de não sabermos nem de onde, nem como, nem por que pode surgir o perigo; e também Banho de Sangue, pois a acumulação estupefaciente dos quinze assassinatos repartidos em todo o filme cria, além do medo pontual que mencionei (causado mais pela particularidade visual atroz da morte que pela morte em si, que sabemos inevitável, já que o hábito ajuda), uma impressão de mal-estar e de enjôo contínuos.Pode parecer surpreendente que o humor seja consubstancial ao medo. Em Banho de Sangue, onde se ri a cada clímax sangrento, com mais intensidade ainda quando o crime é atroz. Tem nesse riso ao menos quatro razões:1. Reação frente à inverossimilhança das situações.2. Expressão de uma necessidade de recuo, de distanciamento em relação à acumulação macabra.3. Presença de um humor que decorre do comportamento dos personagens: depois de ter visto o homem agonizante se arrastar longos minutos sobre o chão, a mulher o interroga: "Mas tu estás ferido?". Ou ainda, intrusão cômica de uma figura codificada estranha ao gênero do terror, a menina que vê emergir da baía o corpo de seu pai, com polpa no rosto: "Mas é meu pai..."4. Apreciação admirativa de invenção refinada na escolha de armas mortíferas, a cada assassinato diferentes uma das outras. Banho de Sangue aparece, aliás, como a obra-prima de Bava. Ele impõe ao espectador uma dinâmica irremediável fundada no assassinato, e que remete ao cinema mais puro, na medida em que não deve nada, nem ao roteiro, nem às ações – nada compreensíveis, por sinal – nem ao sentido, nem aos personagens, nem aos atores.
Um cinema, uma lógica que funciona unicamente por ela mesma, sem muletas, da qual não se encontra equivalente na arte fílmica, e que mergulha o público no estupor admirativo.O mesmo estupor é acentuado pela utilização do travelling ótico. Se fosse preciso encontrar um denominador comum ao cinema italiano posterior ao neo-realismo, seria a reflexão em cima do zoom, fundamental em cineastas tão diferentes quanto Rossellini (do qual Bava foi diretor de fotografia), Cottafavi e Bava. Com Rossellini, o travelling ótico constitui um apêndice ao movimento lateral da dolly, criador de vida, de respiração interna, de fluidez, de peso existencial, o oposto total da utilização essencialmente dramática que descobrimos nos outros dois mestres peninsulares. Curiosamente, Bava retoma freqüentemente a figura-mãe do zoom cottafaviano, o brusco movimento antes seguido illico de um movimento traseiro não menos rápido. Mas, enquanto que com Cottafavi, como por exemplo em Una donna libera2, o efeito é muito raro – o cineasta se permite usá-lo não mais do que duas ou três vezes por filme – criando um clima excepcional chocante pela sua raridade e pela sua natureza contraditória, Bava, por sua vez, se serve dele até o abuso. O zoom é sua imagem de marca mais do que a escolha de um gênero.Aqui, o zoom se revela criador, não de vida, mas de medo. Essa equivalência torna-se tão institucional que, logo que entra um zoom, ou um duplo zoom, ficamos com medo, mesmo que o objeto filmado não tenha nada de aterrorizante. É o procedimento técnico que, por ele mesmo, suscita medo, como um reflexo pavloviano... E Bava se diverte em nos enganar, em nos orientar com pistas falsas. Eu detesto filmes que se apóiam no travelling ótico. Eu gosto quando tem um ou dois por filme, ainda assim justificados e eficazes. Porém, quanto mais eu avanço na carreira de Bava, mais os encontro, e mais percebo que funcionam. Eu não contei, mas deve ter mais de cem no espantoso Lisa e o Diabo, infinitamente mais apaixonante que as faixas da metade da década de sessenta, que tinham duas ou três vezes menos. É o meio-termo, a justa (a injusta) medida que não funciona. Chegamos a um delírio, a uma orgia, uma vertigem gratuita (lembrando o admirável O Arquivo Confidencial de Sidney Furie) que nos arrasta, ligados a todo um arsenal de artifícios formais que visam a confundir o verdadeiro com o falso, o ator e a boneca, o sonho e a realidade. Uma reavaliação do cinema3, e ao mesmo tempo a sua afirmação lírica pela importância do movimento que anima o filme.
Mas tudo isso se encontra hoje ameaçado pelo tempo: raramente projetados, mostrados por difusores quebrados ou pouco exigentes, as cópias dos Bavas são reduzidas a uma dominante rosa ou liga de vinho em todos pontos contrárias ao negativo original. O enorme trabalho de Bava, que conseguia fazer esquecer a falta de recursos, se encontra hoje destruído pelo apodrecimento da cor, que deixa o resultado envelhecido, brega, pobre. Os italianos dedicam toda sua atividade em favor da preservação de obras acadêmicas que não interessam a ninguém, como as de Genina, Camerini, Gallone ou Bolognoni, que não tiveram a ocasião de trabalhar a cor ou nem tentaram. Enquanto que, no sentido de conservação e preservação, não existe no mundo tarefa mais urgente que a consideração pela obra de Bava, onde a cor é essencial, e que periga desaparecer insidiosamente da memória.

Luc Moullet
Publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma a propósito de uma retrospectiva Mario Bava na Cinemateca Francesa, mencionada no início do texto.
Tradução de Bolívar Torres.
1. Eu suspeito que Bava procurava os maus roteiros e os atores impossíveis, como se ele quisesse se proteger do fracasso: o que eu poderia fazer com uma matéria-prima tão chinfrim? O desprezo pelo ator (e do personagem) corresponde a uma atitude assaz freqüente nos diretores de fotografia – função que Bava exerceu durante quarenta anos –, para quem o intérprete não tem muito o que fazer, se tornando até um rival em matéria de interesse concedido pelo diretor a seus colaboradores. Esse desprezo deságua numa metafísica do diretor de fotografia, rebaixando o homem ao seu nível mais insignificante.
2. Em 1954, talvez não fosse zoom, mas que parece, parece.
3. Em Il rosso segno della follia, Bava insere uma manchete de jornal francês carregada de erros de ortografia, e um plano de Paris ridículo, como se estivesse troçando de um produtor que lhe teria imposto referências francesas que o desagradasse.

Sorrisos de uma Noite de Amor, Ingmar Bergman

Filme que revela Bergman a imprensa internacional durante o Festival de Cannes de 1956. Algumas semanas mais tarde, o filme é lançado em Paris com grande sucesso. Trata-se de um vaudeville ao mesmo tempo sério e irônico, onde os episódios mais dramáticos acabam desembocando em reviravoltas cômicas: por exemplo, o mal-sucedido enforcamento de Henrik que dispara, em sua queda, o mecanismo da cama móvel, vinda do quarto vizinho, sobre a qual dorme sua bem-amada. "Sorrisos de uma noite de amor" trata da guerra dos sexos de maneira a pôr em questão as diferenças psicológicas que separam os homens das mulheres. Ao homem pertencem o egoísmo, o pesar impostado ou despropositado, uma vontade de afirmar, notadamente pela violência, uma dignidade constantemente ameaçada pelo ridículo. À mulher, a leveza, as maquinações conscientes ou inconscientes, a conivência com a vida e finalmente, a sabedoria. Em momentos privilegiados, estas diferenças irreconciliáveis se pulverizam entre os jogos do prazer e do amor. O entrelaçar dos personagens, a qualidade literária e o humor dos diálogos, a condução natural e clássica da narrativa, a variedade de tons e de reviravoltas, o clima de erotismo e de sensualidade unido à poesia do momento e do lugar, atingem aqui uma plenitude que Bergman jamais encontrará novamente. É necessário apreciá-la uma última vez antes que ela seja estragada pelo pathos, o intelectualismo e as pretensões metafísicas do autor. Este filme que fecha o primeiro período da carreira de Bergman, o mais fecundo e rico (dezesseis filmes em dez anos filmados por um diretor de trinta e sete anos), contém também um dos mais belos quartetos de atrizes da história do cinema: Eva Dahlbeck, Ulla Jacobsson, Harriet Andersson, Margit Carlquist.

Nota: Poucos roteiros originais suscitaram da parte da crítica a identificação de tantas referências literárias. Foram claramente citados: Anouilh, Beaumarchais, Feydeau, Kafka, Laclos, Marivaux, Musset, Pirandello,Shakespeare, Strindberg, etc.
Jacques Lourcelles
Texto contido nas páginas 1390-1391 do Dictionnaire du Cinema – Les Films (Aut.: Jacques Lourcelles). Tradução feita por José Roberto Rocha.

Husbands, John Cassavetes

O filme mais característico de John Cassavetes. Trata-se de uma espécie de serão fúnebre que toma progressivamente ares de reviravolta pueril, lúdica, acerba, trivial, picaresca e absurda. Mais uma vez crianças e adolescentes, os três heróis vêem repentina e claramente sua própria imaturidade, o impasse e o momento de bloqueio em que se encontram suas vidas. Estas poucas horas de lucidez serão, sem dúvida, nada mais que um parêntese no curso de suas existências, salvo talvez por Harry. Cassavetes recusa a construção, a dramatização; ele utiliza, como Jacques Rozier, a dilatação extrema do detalhe, do instante, da cena, e se volta à pesquisa de uma nova autenticidade. Ele faz uso sistemático do close, encarregado de exprimir o desarranjo dos personagens, seu desequilíbrio, a inexistência de qualquer inserção em um contexto concreto e harmonioso. Uma vez esvaída, ou mesmo simplesmente atenuada, esta potência de choque e de ruptura, não é certo que os filmes de Cassavetes prezem pela durabilidade. Como a maioria dos filmes feitos contra um estilo ou um sistema (neste caso o sistema hollywoodiano clássico), as obras de Cassavetes se arriscam a não serem, em breve, mais que uma simples etapa, um momento significativo no desenvolvimento cinematográfico de uma época. E, quinze anos apenas após seu lançamento, Husbands já parece muito mais como um documento sobre uma certa maneira de filmar que como uma obra viva e eventualmente durável..
Jacques Lourcelles .Texto contido nas páginas 717-718 do Dictionnaire du Cinema – Les Films (Aut.: Jacques Lourcelles). Tradução feita por José Roberto Rocha.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Sobre uma arte ignorada

Há um mal-entendido sobre o cinema. Digo: no coração mesmo da elite que faz profissão de elaborar ou de compreender a arte. Uma extrema confusão preside seus julgamentos e seus trabalhos. Uma falta de abertura inclina uns a considerar o cinema como um divertimento menor que abandonamos rapidamente para retornar às coisas sérias, tais como a literatura. Uma falha de exigência incita outros a povoar seu panteão em cinqüenta anos de uma centena de gênios, e a descobrir uma obra importante por semana. Estes são os mais perigosos, pois a espécie dos primeiros se apagaria por si mesma sob o peso do tempo e da evidência, caso ela não se achasse fortificada pela parca seriedade dos segundos. E dentre esses últimos a discórdia não é menos viva. Não tendo idéia do que buscam, como eles persuadiriam alguém a amar o cinema? Enquanto as artes milenares dispõem de um termômetro pouco a pouco ajustado pelos consumidores ativos, minoria que acaba impondo seu gosto sobre a passividade da maioria – donde um acordo estatístico sobre os fins e sua realização –, o espectador de cinema está entregue a si mesmo, jogado nu em sua poltrona, virgem de hábitos e de leis. Ele precisa a cada vez percorrer todo o caminho, reinventar as tabelas de valores, enquanto o apreciador de Música ou de Poemas, que os séculos liberaram da tarefa de julgar, deixa-se conduzir confiantemente a seu prazer. Ele não é mais levado pela cultura a uma reverência cujo protocolo o tempo fixou, essa cultura ao contrário entrava sua compreensão de uma arte que para possuir seus recursos próprios deve necessariamente não derivar dos mesmos critérios interiores[1] dos quais ela nos dá o modelo. O espectador de cinema extrai de si mesmo exigência e lucidez, ele se forma e amadurece só em contato com as obras; não há trapaça possível. O cinema é um potente revelador. Daí a mistura e o ruído que surpreendem às vezes em habitués das salas obscuras, onde o passivo e o ativo divididos em mil partes contraditórias têm a mesma potência de voz. Já que, no entanto, desenham-se linhas de partilha, uma maioria sobressai, e esta é naturalmente a da imobilidade mais míope.
Propõe-se esboçar aqui uma análise da res cinematographica considerada em seu ser e sob os pressupostos que a mascaram. O cinema nasce com esforço, ele se procura e nós o procuramos, ele toma lentamente consciência de si mesmo através de seus avatares. Essa arte é a que mais exige disponibilidades, flexibilidade, aquela cujo deus adorado no dia anterior deve poder ser renegado no dia seguinte. Imaginemos o espectador ideal à beira da tela, monstro de inocência e de rigor...
O cinema começa com o sonoro.
Pode parecer estranho e mesmo contrário às proposições precedentes que a propósito dessa arte adolescente e de evolução acelerada venhamos a falar de “essência”. Pareceria que diante das figuras sucessivas que ele assume, deveríamos nos contentar em aguardar, sem procurar defini-lo. Entretanto, seria interditado pensar que dessas premissas estaríamos no direito de tirar certas implicações permanentes, porquanto contidas no modo da apreensão cinematográfica do real? De fato, essas implicações aparecem e desaparecem como um fio na trama histórica do cinema, separando o joio do trigo, pondo em plena luz as formas aberrantes e as estruturas essenciais.
A arte sempre havia sido uma mise en scène do mundo, ou seja, uma chance dada à realidade contingente e inacabada de se locupletar, de um golpe preciso, segundo os desejos do homem. Mas esse mundo não podia ser apreendido senão por um meio termo, era preciso recriá-lo em uma matéria indireta, transpô-lo, proceder por alusões e convenções, na impossibilidade de uma possessão imediata. Linguagem, tela e cores, mármore, sonoridades, convenções teatrais eram o lugar da alquimia onde o mundo cambiava sua forma contra sua verdade. Nessas condições, a obra se media em valor absoluto independentemente de sua técnica, a renovação desta não engendrando um progresso, mas a simples exploração de um domínio novo. Dito de outro modo, a arte criando sua própria matéria não era suscetível de aperfeiçoamento, e as obras mais primitivas, por definição, igualavam as mais refinadas.
Ora, no fim do século XIX, um evento considerável vem bagunçar esses dados. O meio de captar a realidade diretamente, sem mediação, sem essas convenções cuja necessidade Valéry tinha compreendido muito bem quando se trata de recriar pelas forças do homem, fora descoberto. Um olho de vidro e uma memória de bromato de prata deram ao artista a possibilidade de recriar o mundo a partir daquilo que ele é, portanto de fornecer à beleza as armas mais agudas do verdadeiro.
O princípio do cinema como modo de apreensão é fundado sobre o registro passivo das deformações do espaço. Uma idéia que teve curso outrora queria que o cinema puro fosse mudo, que somente o jogo das imagens pudesse dar conta dessa arte que se tomava por uma espécie de pintura móvel. Isso era não enxergar duas coisas: a primeira, que o som é uma implicação necessária das premissas visuais do cinema; a segunda, que a linguagem metafórica das imagens mudas correspondia à obrigação de falar na ausência do som, e não a uma finalidade interna. Que, muito pelo contrário, uma tal deformação das aparências traía a vocação original da câmera, eis o que experimentamos hoje no espetáculo das caretas e da gesticulação desses fantasmas, e das sobre-impressões, das trucagens que conduziam a sétima arte sobre as vias de um onirismo de camelô, sem medida comum com a revelação cortante de que ele tem o poder.
Pretender que o som seja uma conseqüência previsível de A chegada de um trem à estação Ciotat não é um paradoxo[2]. O registro das aparências visuais devia criar a necessidade de uma apreensão completa do real, pelo movimento de sua dialética com o mundo: indo rumo às formas sensíveis, ele era sentido em sua separação do universo sonoro como algo obstruído no caminho, incompleto, em devir rumo a uma plenitude que se apoderaria de todas as formas. Enquanto os técnicos buscavam o procedimento que faria do cinema o que ele tendia a ser, os cineastas tentavam suplantar seu mutismo de duas maneiras bem diferentes. A primeira, ao orientar a imagem rumo à significação puramente plástica, o que levava ao monstruoso híbrido de uma arte da apreensão objetiva da aparência dedicada ao registro do falso[3] (híbrido do qual o “caligarismo” é a manifestação mais típica e mais insuportável): ao fazê-lo, o cinema perdia sua extraordinária originalidade para se pôr na esteira das artes cuja matéria não é o mundo, mas a metáfora do mundo. A segunda, ao fatiar o escoamento das imagens com intertítulos, como Griffith ou Stroheim. Notemos que essa última solução preservava a franqueza essencial de nossa arte: um filme de Griffith não é um cinema que traiu o cinema, é um cinema ao qual falta a palavra, um cinema atento a seu ser e localizado sobre a via central de seu porvir. Dessa via que passa por Griffith, Stroheim, Murnau, divergem, conforme vimos, múltiplos vieses de garagem – plástico, pictórico, trucagens surrealistas, expressionismo alemão, e todos esses filmes sofríveis, ditos de “vanguarda” ou “experimentais”, que são o último sobressalto de uma estética minada por sua contradição interna.
Assim, uma arte cuja singularidade é estar fundada sobre a técnica no sentido mecânico da palavra se acha, por esse fato, suscetível de progresso, noção incompatível com a concepção tradicional da arte. Seu primeiro princípio, o olho registrador, indica sua vocação de posicionar o homem diante do mundo, e por conseguinte sua realização ideal, que é estar dotado de sentidos tão sutis quanto os sentidos humanos[4]. Quanto menos esses sentidos estão afinados, mais a obra dá uma sensação de inacabamento e de mal-estar. É preciso ousar dizer que o cinema começa com o sonoro. Aquilo a que costumamos chamar as obras-primas do mudo são apenas as etapas de um desabrochamento; trata-se de recolocá-las em sua perspectiva balbuciante, aproximativa, de qual teria sido o gênio de seus autores. Esse gênio não está em causa, mas os meios a seu serviço. Imaginemos os Girassóis de Van Gogh desenhados com giz, ou Mozart diante de seu tam-tam. E mesmo assim, os girassóis de giz se acomodariam a esse postulado, o virariam a seu favor; Mozart inventaria uma linguagem batendo sobre a pele esticada. Mas não há linguagem a inventar com o olho irrefutável, não há convenções a estabelecer de partida; se eu planto minha câmera em um canto e os atores vêm a seu turno declamar diante dela com gestos de teatro, eu não “faço cinema”, eu transformo o espectador em um paralítico ao qual uma trupe beneficente vem fazer uma representação. Eu não o coloco em contato direto com o mundo, eu lhe ofereço o que o teatro já lhe oferecia, mas seqüestrando-lhe a motivação, o ritual, para não deixar senão o resultado e a partir daí restituir-lhe seu artifício, como se minha câmera estivesse parada diante da cena a fim de considerá-la de fora. Com efeito, o espectador sente confusamente que esse olho congelado, posto sobre essas formas, objetiva-as, despe-as de seu valor de linguagem, põe a nu sua mentira que não procede mais de uma comunicação metafórica porquanto a cumplicidade foi rompida entre o olhar e o objeto. Em outros termos, toda deformação da realidade com fins de expressão, condição das artes tradicionais, pelo fato de que ela chega ao espectador de cinema através da objetividade da câmera, se revela como mentira. O painel elizabethano onde está inscrita a palavra “Floresta” sobre a cena é a melhor imagem da floresta. Esse mesmo painel, filmado, será apenas um painel e a ausência evidente da floresta. É que o lugar ideal não é proposto diretamente ao olhar prevenido, ele o é por meio de um olhar intermediário cuja inocência e insensibilidade corroem na passagem sua vontade de expressão. A heresia que mais atrapalhou o desenvolvimento do cinema foi tomá-lo por um simples jogo de imagens suscetível de todas as combinações possíveis (exemplo: as sobre-impressões), esquecendo o ponto de partida dessas imagens: um olhar sobre o mundo sensível. Desse esquecimento resulta quase inteiramente o caráter caduco de uma grande parte da produção de antes da guerra. Cada vez que uma combinação entra em conflito com sua condição original (assim o vento que sopra do espelho em L’Âge d’Or), o imenso poder de credibilidade da fotografia se volta contra si mesmo para denunciar a inverossimilhança, multiplicado pela aparência do verdadeiro. O que poderia ser poesia nas palavras, porque a linguagem está apta a refletir as combinações ilimitadas do espírito, é apenas trucagem nos limites do olhar. Notemos que o cinema deixa atrás de si os “cinéfilos” e não se permite mais tais monstruosidades que os amadores ainda veneram. Haveria uma análise a fazer, que excederia o propósito desse estudo, das excrescências que sufocaram num certo momento uma arte intoxicada de si mesma e crendo explorar seus recursos enquanto se destacava de sua verdade profunda. Assim os ensaios de câmera subjetiva que, ao introduzir à força o espectador no espetáculo, propõem-lhe um duplo que ele não reconhece.
A tomada de consciência progressiva de sua natureza própria, somada à faculdade de aperfeiçoamento técnico na franqueza e na adequação ao real, acarreta uma conseqüência irritante: à medida que o cinema progride, as obras antigas se desvalorizam em proveito das novas. Há no público de cinema uma superstição das velhas obras-primas que se explica de diferentes modos. O primeiro, por sentimentalismo: teríamos pena de renegar suas primeiras e entusiasmantes descobertas, mesmo se o charme se escondeu diante do aprofundamento do conhecimento e da maturidade do gosto. Uma outra razão dessa superstição é que, a despeito da evidência, não admitimos a diferença o cinema e as outras artes, e imaginamos que entre um filme do período da infância e um filme adulto existe uma mesma relação que entre uma escultura primitiva e uma escultura de Houdon. Mas isso é não enxergar que de uma parte nós estamos em presença de duas era da humanidade, duas concepções do mundo se exprimindo através de meios invariáveis, enquanto na outra temos o mesmo homem, antes paralisado, mudo, atingindo perturbações visuais, depois em possessão de todas as suas faculdades. Enfim, uma terceira razão é que o cinema mudo oferece mais prestígio ao neófito, é mais facilmente acessível pela exterioridade de seu estetismo. Podemos entender, no curso da projeção desses filmes de papel timbrado e de sombras chinesas, donde um bom exemplo é Marcel l’Herbier, espectadores suspirarem após os felizes tempos de um cinema repleto de maravilhas para os olhos. Não se pode debochar demais. Nós todos fomos mais ou menos esse espectador de alma simples. O inquietante não é começar por lá, mas lá permanecer, estagnação onde se compraz a maior parte dos “cinéfilos”, raça estranha, pastora, dócil nos modos, em divórcio flagrante com o cinema no reconhecimento de sua pureza e de suas aproximações do ponto de perfeição.
Tudo está na mise en scène.
A cortina se abre. A noite se faz na sala. Um retângulo de luz vibra em sua presença diante de nós, e é logo invadido por gestos e sons. Nós estamos absorvidos por esse espaço e esse tempo irreais. Mais ou menos absorvidos. A energia misteriosa que suporta com alegrias diversas (bonheurs divers) a enxurrada de sombra e de claridade e sua espuma de ruídos se chama mise en scène. É sobre ela que repousa nossa atenção, ela que organiza um universo, que cobre uma tela; ela, e nenhuma outra. Como a correnteza das notas de uma peça musical. Como o escoamento das palavras de um poema. Como os acordos ou dissonâncias de cores de um quadro. A partir de um assunto, de uma história, de “temas”, e mesmo do último tratamento do roteiro, como a partir de um pretexto ou de um trampolim, eis o jorramento de um mundo do qual o mínimo que podemos exigir é que ele não torne vão o esforço que o fez nascer. A mise en place dos atores e dos objetos, seus deslocamentos no interior do quadro devem tudo exprimir, conforme vemos na perfeição suprema dos dois últimos filmes de Fritz Lang, O Tigre de Bengala e Sepulcro Indiano.
Documentário ou Féerie?
A arte se insere em uma falha. Toda atividade é o produto de uma falta, o movimento de um desequilíbrio rumo ao equilíbrio. O fazer é um deslizamento ontológico rumo à satisfação imóvel. Produzir arte significa construir com o já existente um existente novo que de alguma forma exorciza o artista. Quando Lênin profetiza que os povos felizes não mais terão arte, ele entrevê sob os nus da utopia uma verdade, mas a enfraquece numa aplicação que só dá conta de sua parte mais superficial. O homem terá sempre necessidade da arte porque o jogo ultrapassa em muito a condição social: ele diz respeito ao Eu mais íntimo em suas relações de antagonismo e de acordo com o Resto. A arte é a religião da lucidez.
Recriar um mundo que ao mesmo tempo exorciza o artista e gratifica o espectador, por uma coincidência da vontade de potência do primeiro e do desejo de ordem do segundo no seio de assombrações comuns, reconciliar, tal parece o fim da arte enquanto ato destinado por sua essência de ato a preencher um vazio. À questão “Por que existe arte?” sucede a questão “Como existe arte?”. Como esse fim pode ser atingido e o espectador se sentir preenchido? É preciso, evidentemente, que haja a substituição mais total possível do imaginário pelo real presente, uma absorção da consciência pelo espetáculo, uma proximidade à beira do idêntico, antítese do distanciamento brechtiano que arruína o poder do espetáculo para restaurar o vazio no coração do espectador.
O artista faz obra de arte para se livrar, para apaziguar suas contradições, para se agradar e se seduzir, para se esquecer em um mundo onde ele cessa de “não estar no mundo”, para “sair do inferno”. Seja por uma descida a esse inferno para conhecer-lhe o fundo, se fascinar de seus excessos ao adorná-los dos prestígios da angústia e do medo, prestígios naquilo que os seres que lá mergulham nos propõem do homem uma imagem incandescente que nos projeta para fora de nossa banalidade cotidiana, em um universo onde a alma se dilata, se rasga e ganha a medida de seus possíveis. Apertado por um nó de angústia e de exaltação, o ser é revelado a si mesmo, projetado fora de si rumo a um eu mais autêntico cuja paixão o preenche e o justifica, o seqüestra em uma vertigem onde ele se reconquista em sua totalidade. A contradição levada a seu ponto extremo se resolve em sua tomada de consciência e sua contemplação, que a alça ao sagrado de uma necessidade, portanto de um aquiescimento, de um equilíbrio, de uma paz. É toda a vocação do trágico na arte. O afrontamento, a “crise” visa a uma torção do ser sobre si mesmo, onde tendo sido percorrido o círculo completo, o ser se reencontra no início em sua nudez luminosa e apaziguada. – Seja por uma negação do inferno, uma emergência simultânea na alegria, na luz, na calma, ou pelo movimento do prazer. Que tudo aquilo que não deriva dessa ordem do sublime seja nulo, inútil e sem interesse, que toda arte que não é exclusivamente íntima e passional, dedicada ao excesso, preciosa, aristocrática, seja frívola e derrisória, é ao mesmo tempo a evidência de nosso desejo e uma conseqüência lógica da função existencial da arte.
E, portanto, se o cinema fosse tomado como uma sensibilidade insensível, um olhar impassível sobre o mundo, esse caráter poderia espessar ainda, se houvesse necessidade, o mal-entendido que quer fazer da arte um reflexo passivo da realidade integral, enquanto precisamente essa atividade é nascida da necessidade de reformá-la, de se reconciliar com ela. Colocar o homem diante da imagem de um mundo que ele espera exorcizar por meio dessa imagem (do contrário, não há necessidade de imagem, o mundo basta) é o projeto contraditório do “realismo”[5]. Zavattini representa esse projeto em seu estado de absurdidade explícita, o documentário de uma mediocridade, 90 minutos para nada, pois não valeria a pena alugar uma poltrona do teatro para ver o que a rua nos oferece com o mérito de ser real.
Mas inversamente, toda imagem que escapa à realidade não responde de partida ao papel definido por sua existência mesma, enquanto essa existência é suscitada por uma falta na realidade, que não pode, portanto, ser remediada senão por objetos aferentes a ela e se lhe integrando – encarada, nem em sua proliferação casual e banal, nem em um direcionamento rumo ao impossível ou ao falso, mas em suas possibilidades de equilíbrio entre o mundo e o homem. Desse modo os pleonasmos do realismo, assim como os sonhos dos falsos poetas formam ambos fossos-limites entre os quais toda atividade estética deve estar contida sob o risco de escurecer na estupidez ou na inutilidade.
A essência do cinema como arte não é ser mais documentário ou mais feérie, se o documentário se limita a restituir as aparências incontroladas e se a Feérie autoriza a mentira, a trucagem e os artifícios de estetas; mas sim, ao mesmo tempo, o documentário e a feérie, tratando-se da beleza imposta pela evidência do olho irrecusável.
Vertigens e cintilações.
A substituição de seus possíveis dilatados pela armadura da banalidade-cotidiana abre o espectador a uma plenitude que se trata de circunscrever em função das modalidades particulares do cinema.
Porquanto o cinema é um olhar e um ouvido mediadores entre o espectador e as aparências, porquanto a organização das aparências e sua apreensão mais eficaz constituem a mise en scène, como esta será em si beleza, isto é, exorcismo de malefícios e canto? A resposta é: pela seleção das aparências, a narrativa sobre um retângulo branco de certos movimentos privilegiados do universo. Dito de outro modo, sobretudo naquilo que elas têm de mais íntimo, as ações e reações de um homem em um cenário. A proximidade mais aguda do corpo do ator veiculará as assombrações e a vontade de sedução, engendrando uma direção de gestos raros, uma arte da epiderme e das entonações de voz, um universo carnal – noturno ou ensolarado. Não uma demonstração, uma sentença, o suporte sacrificado de uma operação superficial do intelecto, mas a linha melódica, com seus crescendos, suas pausas, suas irrupções, movimentos secretos do ser, nos concernindo ao mais vivo de nós mesmos pelas vias do perigo e da exaltação. O ponto de chegada do cinema, atingido em raros instantes pelos grandes dentre os grandes – Losey, Lang, Preminger e Cottafavi –, consiste em despir o espectador de toda distância consciente para precipitá-lo em um estado de hipnose mantido por um encantamento de gestos, de olhares, de ínfimos movimentos do rosto e do corpo, de inflexões vocais, no seio de um universo de objetos radiantes, injuriantes ou benéficos, onde alguém se perde para se reencontrar engrandecido, lúcido e apaziguado. A paixão exclui a indulgência. O acesso a essa mise en scène de vertigens e de cintilações, que se abre a uma liturgia ou à contemplação de uma ordem cósmica reencontrada, pode explicar por que noventa e cinco por cento da produção cinematográfica nos parece inexistente, miserável e sem relação com o cinema. Que, após conhecer tais transportes, venhamos a recusar todos os filmes que não visam a esse sublime, que se limitam a colocar sórdidos problemas ou a contar histórias “com imagens” numa confusão dos meios e do fim, abandonando ao acaso ou a uma repetição de procedimentos mecânicos o que deve ser dominado por uma intuição do coração e uma precisão cuja menor falha rompe a curva de febre, não surpreenderia senão aqueles que se satisfazem com pouco e que, crendo defender uma arte, sugerem-lhe a idéia mais baixa.
A Fascinação.
A absorção da consciência pelo espetáculo se nomeia fascinação: impossibilidade de se arrancar das imagens, movimento imperceptível rumo à tela de todo o ser tencionado, abolição de si nas maravilhas de um universo onde até mesmo morrer se situa no extremo do desejo. Provocar essa tensão rumo à tela aparece como o projeto fundamental do cineasta. Em decorrência, o movimento, domínio específico de nossa arte, deve se adensar de um jogo ou se encher de uma graça tais que ele impede a irrupção da consciência crítica no encadeamento dos atos filmados. Recriando a cada instante nossa expectativa, as metamorfoses contínuas do sensível desenham no espaço o traçado de uma música inelutável e imprevista. No limite, não sabemos mais nada da história que desfila diante de nós, de seu passado, de seu porvir possível, em uma coincidência absoluta de nosso tempo com o tempo imaginário, em uma presença ausente, uma espécie de esquema abstrato que é a beleza pura liberta das condições que a sustentam. Assim, em certas circunstâncias excepcionais da vida, ficamos fora de nós mesmos, como estrangeiros a nossa ação, inteiramente requisitados pelo exterior.
A montagem transparente.
Essa fascinação sempre foi a meta dos cineastas. Suas divergências provêm simplesmente das diversas concepções que eles têm dos seus meios. As teorias sobre montagem que outrora apareceram ilustram seu peso. Tratava-se de imprimir à sucessão das imagens um ritmo análogo ao ritmo musical, de modo a submeter a consciência espectatorial a uma arquitetura determinada, impondo-lhe linhas de força, parâmetros que substituíssem uma necessidade interna pelo acaso. As primeiras pesquisas de Gance, as de Eisenstein, ou a polivisão que é uma montagem espacial perpendicular à montagem temporal, traduzem essa preocupação em aumentar a eficácia do plano por sua disposição em um organismo calculado, como as notas de uma melodia se põem mutuamente em valor. O erro dessas teorias (erro de toda teoria preexistente a uma obra) é quebrar o natural, aqui ao colocar o espectador diante da contradição de uma apreensão do real ao mesmo tempo objetiva e subjetiva: não é a lógica dramática da cena que conduz a tela a liberar sua visão em uma continuidade onde o descontínuo dos planos se dissolve por essa lógica mesma, mas a intervenção exterior e brutal de uma vontade que se superpõe ao olhar da câmera e este, de transparente, puramente mediador que deveria ser, se opacifica, se embaralha, até restabelecer entre o espectador e o espetáculo a distância que se propunha a abolir. Esse erro é devido, conforme já destacamos em uma outra ocasião, a uma identificação abusiva do cinema com as artes tradicionais. Se o cinema coloca o homem face à realidade objetiva, toda ruptura de sua impassibilidade com fins expressivos trai precisamente seus fins. A arte da montagem, que se confunde então com a decupagem[6], consiste, portanto, em tornar os cortes efetuados na massa informe do real tão invisíveis quanto possível.
Agora que o prazer do jogo novo desapareceu, como suportar esses choques de planos, ou essas metáforas intercaladas, como as ovelhas de Chaplin após um plano de multidão? A própria montagem paralela toma velocidades insistentes demais para ser ainda admissível. A única montagem (ou decupagem, se consideramos a operação em sua origem) adequada ao modo de apreensão cinematográfica da realidade é aquela que adere, justo à identidade completa, ao desenvolvimento de uma série dramática dada, por seleção e justaposição de planos essenciais, como um olhar que iria sempre direto ao que importa na marcha de um evento. Assim, o espectador não é posto em face de vários espetáculos ao mesmo tempo, ou de uma análise do espetáculo por um olho absurdo que transgride as leis da atenção, situações que o distanciam brutalmente do espetáculo ao defini-lo por contradição com este último; ele está diante do espetáculo, diante do mundo, o mais próximo do mundo, graças à docilidade, à ductilidade de um olhar que o seu desposa de tal modo que o esquece. Esse olhar não tem a ubiqüidade de que conscientemente ou não o espectador se separa, ele não salta, não desliza como uma serpente, ignora as curvas, as quedas, as provocações, tudo isso que os cinéfilos um pouco retardados chamam de “movimentos de câmera fantásticos”. Ele é clássico ao extremo, ou seja, exato, motivado, equilibrado, uma transparência perfeita através da qual a expressão nua encontra sua mais eficaz intensidade.
DeMille superior a Hitchcock.
Uma vez devolvidos ao domínio da má literatura os ângulos insólitos, os enquadramentos bizarros, os movimentos de câmera gratuitos, em suma, todo o arsenal revelador de impotência, obtemos essa franqueza, essa lealdade sobre o corpo do ator que é o único segredo da mise en scène. Para bem compreender, basta se referir ao recente Vertigo de Hitchcock, ou ainda a um certo plano de O Homem Errado, como exemplos do que não se deve fazer. O redemoinho da câmera em torno do rosto de Henry Fonda para exprimir sua angústia, ou as colorações sucessivas de James Stewart em meio ao pesadelo da vertigem, procedem da mesma impotência diante do ator, ao suplantar uma incapacidade de revelar suas virtualidades passionais – do interior – por uma crispação de tudo aquilo que não é o ator, de tudo aquilo que está fora dele, da mesma forma que os escritores medíocres forçam o estilo e brutalizam as palavras para tentar dar a sentir o que eles não sentem. É aliás interessante escutar da boca de Hitchcock a descrição dessa mise en scène trucada: “Na maior parte do tempo pedimos (ao ator) que atue com calma e naturalidade (...), deixando à câmera a tarefa de adicionar quase todos os efeitos[7] e de enfatizar os pontos importantes. Eu diria que o melhor ator de cinema é aquele que sabe melhor não fazer nada”[8]. Não saberíamos mais explicitamente declarar que não se tem nada a mostrar além de uma certa maneira de mostrar o que não há. Voltemo-nos agora a um ancestral de Hitchcock, Eisenstein: “O realizador não considera nunca o ator como um verdadeiro ser humano, ele imagina o que será o filme e escolhe cuidadosamente o material ao fazer evoluir o ator de modos diferentes e ao decidir, em função do intérprete, as posições da câmera”. E eis a razão dessas grandes máquinas de tela e de cartolina. Pudemos verificar graças à segunda parte de Ivan, o Terrível, a fragilidade da mise en scène de Eisenstein, colosso de pés de argila. Como em Welles, cujo modernismo agressivo e a originalidade gratuita recobrem um expressionismo velho de um quarto de século, ela desenvolve um baixo-alívio atormentado e fingido, galeria de monstros pitorescos, barroca se o barroco se define por uma abundância ornamental do signo sufocando a significação. A obra de Eisenstein nos faz inelutavelmente pensar nos pintores e nos literatos que, não sabendo desenhar um homem, desenham um esqueleto e crêem fazer metafísica.
Se agora damos a palavra ao inocente da cidadezinha, Cecil B. DeMille, o que ouvimos? “Eu devo conhecer a fundo cada ator, enquanto pessoa, assim como seus métodos, e adaptar minha própria concepção do filme a essa personalidade. Eu devo lhes oferecer minha ajuda, meus conselhos, devo guiá-los quando eles me solicitam e lhes oferecer também simpatia e compreensão...”[9]. Essa linguagem nos tira das brutalidades precedentes, e explica o prazer que podemos ainda experimentar em Sansão e Dalila, enquanto Eisenstein, Hitchcock ou Welles se distanciam cada vez mais, na noite de um cinema bárbaro que é apenas a convulsão de um olhar sobre objetos medíocres, ao passo que o cinema deve ser uma contemplação de objetos raros e sem preço.
Preeminência do ator
Dentre os objetos cuja nomenclatura constituiriam um catálogo precioso, refinado – jóias gravadas em fogo sobre peles foscas, carros riscando o espaço com traços flamejantes, jardins em flor, robes entreabertos, aldeias à beira mar, ou ainda, numa outra série, navios longilíneos, choques de armas, robes esvoaçantes, casacos rasgados sobre o peito do herói – o objeto privilegiado é, portanto, a imagem de nós mesmos, o ator. Porque o cinema é um olhar que se substitui ao nosso para nos dar um mundo em acordo com nossos desejos, ele nos colocará sobre rostos, corpos radiantes ou feridos mas sempre belos, dessa glória ou desse fracasso que testemunham uma mesma nobreza original, de uma raça eleita que, com embriaguez, reconhecemos nossa, último avanço da vida rumo a deus. Não, como em Rossellini, a aproximação tateante da criatura rumo a um criador, tema exterior à mise en scène, mas o homem tornado deus na mise en scène, pela revelação de seus poderes, brecha aberta bruscamente na superfície das coisas e nos arrebatando. Hino à glória dos corpos, o cinema reconhece o erotismo como sua motivação suprema. Queremos dizer com isso que o cinema não escolheu o erotismo dentre outras vias possíveis, mas que estando dada sua dupla condição de arte e de olhar sobre a carne, ele estava dotado ao erotismo como reconciliação do homem com sua carne. (Enquanto a literatura oferece um terreno favorável às florações mais cerebrais do amor-sentimento, as palavras residindo por natureza no coração da fascinação dos psiquismos, mas se revelando signos muito mais pálidos da fascinação dos corpos.) A busca obsessiva de uma equação que reúne os termos equilibrados de uma carne e de um mundo converge para esse plano de Contos da Lua Vaga em que o amante se estende sobre a relva, banhado de sol, na admiração tranqüila do prazer, exclamando: “Ah! Isso é divino!”. E é de fato o reflexo do divino, possessão perfeita do mundo e de si mesmo, momento comparável a uma água pura desposando os contornos do vaso. Losey, Preminger, Cottafavi, Don Weis, Lang, Walsh, Fuller, Ludwig, Mizoguchi [10], somente eles souberam em graus inigualáveis o segredo dessa empreitada sobre o ator e o cenário que Murnau ou Griffith não podiam levar até o fim, e que Hawks, Hitchcock, Renoir, Rossellini apenas entreviram sem a controlar[11]. Quanto a Bresson, parece que ele quis controlá-la sem entrevê-la.
Essa revelação não é obtida pela câmera a partir do acaso e do vazio, como espera a maior parte dos cineastas, ela se faz merecer por um trabalho preciso sobre os atores em função de suas virtualidades. A escolha dos atores é portanto capital, e no fim das contas um filme nulo e completamente desprovido de ambição, se ele comporta um ator essencial (exemplo: O Egípcio, em que Bella Darvi está sublime), é mais atraente que um filme ambicioso cujos atores são mal escolhidos. (Exemplo: Renoir utilizando Valentine Tessier em Madame Bovary, portanto seu melhor filme). Um ator essencial é aquele cujo rosto, voz e corpo são profundamente tingidos de uma capacidade passional e de uma sedução. A arte do metteur en scène consiste então em provocar essa natureza para que ela exploda ou radie, por uma espécie de simpatia direta e fulgurante, donde deriva que cada metteur en scène possui seus atores benéficos, como cada escritor é apegado a certos seres da linguagem mais que a outros, como cada pintor é atraído por uma cor. Face ao azar e aos motivos grosseiros que engendram as escolhas da maioria dos cineastas, que se colocam diante dos atores como a anta de Buridan, ponhamos a fidelidade de Preminger a um tipo de mulheres, Jean Simmons, Gene Tierney, Maggie McNamara (sobre um mínimo gesto), reencontrada ulteriormente através de Kim Novak e Jean Seberg, mulheres feridas, secretas e refugiadas em um mundo de infância, de onde elas lançam através da fixidez de seu rosto apelos apaixonantes que absorvem o abismo de seus olhos. Ou aquela de Losey em duas linhas contrárias que se juntam em uma busca comum da felicidade, uma de mulheres iluminadas docemente de uma luz de calma e de pudor, de razão e de ternura, outra de panteras convulsivas ultrapassando em um momento púrpuro as barreiras que as separam da selva e do bem-estar. Um exemplo inverso e também convincente poderia em uma única fórmula resumir o que precede: Fellini se casou com Giulietta Masina, logo seus filmes são grotescos. O que seria preciso demonstrar.
O Mal-entendido.
Georges Sadoul, recentemente, provocou-me querela a propósito de algumas frases sobre Preminger onde eu tinha exprimido a idéia de uma identidade entre filmes em aparência tão diversos quanto Angel Face, Saint Joan ou Bonjour Tristesse. Se nessas linhas eu me faço entender, tais reprovações derivam manifestamente de uma concepção do “autor de filmes” inadmissível e sem cabimento, no nível do roteiro e das idéias gerais, a partir da qual se pode dizer que René Clair ou Chaplin são autores malgrado o caráter débil, sumário e mecânico de sua apreensão concreta da realidade. Crer que basta a um cineasta escrever seu roteiro e seus diálogos, e orientar segundo temas definidos e repetidos os atos de seus personagens, para ser “autor de filmes” é um dos erros de base que forjam autoridade ainda hoje em uma crítica enevoada pela literatura e cega à luz lancinante da tela[12]. A derrota dos intelectuais diante dos filmes que não propõem à incerteza de seu julgamento a armadura de uma temática preexistente se verifica graças ao cinema de aventura. Essas obras arejadas, sedutoras, amparadas de todos os prestígios da cor, do espaço e dos sentimentos fortes, das quais Walsh permanece o mestre incontestável (muito mais solar que Hawks), das quais o único tema é o herói, seus amores, suas vitórias ou sua morte, por sua ausência de justificação, sua gratuidade dionisíaca[13], seu classicismo cósmico, fazem eles perderem o chão e chegarem ao cúmulo de se desculpar pelo prazer que sentiram. São cegueiras desse tipo que permitem a René Clair, ainda ele, afirmar que as “obras-primas” da tela grande estão saindo de moda; acrescentemos: precisamente porque elas foram consagradas por uma crítica e um público onde reina a confusão dos valores! Mas Griffith, mas Murnau, mas Stroheim – todas as reservas feitas à insuficiência de sua técnica – não saem de moda, e O Ladrão de Bagdá, filme mudo de Walsh com Douglas Fairbanks, permanece visível, enquanto ao redor dele tudo caiu. Da mesma forma podemos predizer sem grande perigo de ser desmentidos que Welles, Kazan, Visconti, Antonioni e outros senhores atuais se tornarão intoleráveis em vinte anos (eles o são desde sempre aos mais sensíveis); quanto a Bergman, antes mesmo de rodar seu primeiro filme ele já era démodé.
O que torna idênticos e quase intercambiáveis – senão no grau da beleza, ao menos no caminho de aproximação da beleza – filmes tão diferentes pela fonte, pela anedota e pelo “clima” quanto aqueles que pontuam a carreira de Preminger é um certo modo de olhar os atores e os objetos, idéia certamente intraduzível para inúmeros amantes de filmes, que não compreendem primeiramente por que o fato mesmo, o fato bruto, de mencionar – algum conceito que aí se re-acopla – o nome de Bernard Shaw ao falar de Saint Joan é a cegueira de uma ignorância, poderíamos dizer ontológica, do cinema enquanto tal.
A noção de autor de filmes se define, portanto, pelo império que o cineasta exerce ou não exerce sobre a matéria mesma de sua arte, sobre aquilo que a tela nos oferece, sobre a luz, o espaço, o tempo, a presença insistente dos objetos, o brilho do suor, a espessura de um cabelo, a elegância de um gesto, o abismo de um olhar. Enquanto isso, a quase-totalidade da crítica se dedica ainda ao roteiro, o que equivale a comentar Le Radeau de la Méduse e a definir Géricault citando as peripécias do naufrágio e a idade do capitão. Assim, a pesquisa e a síntese das equivalências de roteiros em Hitchcock (as transferências de culpabilidade, por exemplo) não interessam em nada ao que vemos sobre a tela e que somente conta. O tema da transferência dá lugar a situações que em si mesmas engendram uma mise en scène cujas próprias constantes são o que retêm nossa atenção. Analisar a obra de um cineasta é mostrar em que seu acesso aos temas fundamentais da mise en scène, ordenados em torno da presença corporal dos atores em um cenário, é ou não é capaz de nos fascinar. Como ele desvela o desejo, o ódio, a violência, o medo, a ternura, como olha a cidade, as árvores ou o mar. Essas noções requerem o uso da metáfora e um caminho que torce a linguagem para dar conta de seres estéticos novos.
É preciso concluir, se comparamos esses princípios elementares à sua aplicação, que o cinema é tão desconhecido hoje quanto era a pintura no fim do último século. Reprovamos a nossos pais terem colocado Meissonnier antes de Cézanne, mas não vemos nosso século de luzes preferir as Noites Brancas de Visconti às Aventuras de Hadji de Don Weis? Surpreende-se que as obras levadas num dia aos píncaros sejam insuportáveis ou ignoradas no dia seguinte, sem compreender que isso não ocorre por uma fatalidade misteriosa, mas simplesmente porque a maior parte dos espectadores não aprendeu ainda a olhar, e filtra as imagens através de uma consciência inadaptada às realidades da tela.

Michel Mourlet
Traduzido por Luiz Carlos Oliveira Jr.



[1] Não se tratam evidentemente dos critérios de finalidade, transcendentes à obra e comuns a toda forma de arte.
[2] Esse parágrafo que eu acreditava dever defender da imprecisão foi escrito quando eu tinha achado sua melhor justificação em um artigo de André Bazin, compilado em Qu’est-ce que le cinéma? e intitulado “O Mito do Cinema Total”. Citemos: “Tudo me parece ocorrer como se devêssemos inverter aqui a causalidade histórica que vai da infraestrutura econômica às superestruturas ideológicas e considerar as descobertas técnicas fundamentais como acidentes felizes e favoráveis, mas essencialmente secundários em relação à idéia preliminar dos inventores. O cinema é um fenômeno idealista. A idéia a partir da qual os homens o fizeram existia toda pronta em seu cérebro, como no céu platoniano, e o que nos atinge é bem mais a resistência tenaz da matéria à idéia do que as sugestões da técnica à imaginação do explorador”. E mais adiante: “Se as origens de uma arte deixam perceber alguma coisa de sua essência, podemos considerar os cinemas mudo e sonoro como as etapas de um desenvolvimento técnico que realiza pouco a pouco o mito original dos exploradores. Compreende-se, nessa perspectiva, que seja absurdo tomar o cinema mudo por uma espécie de perfeição primitiva da qual o realismo do som e da cor progressivamente se distanciaria”.
[3] Cf. a definição de Valéry, contemporânea dessa época: “O cinema é a arte de fazer o falso com o verdadeiro”.
[4] Importância da fotografia: de sua qualidade depende em parte a sensação do volume espacial, o grão da luz, os jogos tênues da epiderme.
[5] “Fazer o verdadeiro” não é um fim mas um meio, o meio de fazer aceitar o fim que é a beleza. Uma beleza que não é verdadeira não é mais tolerável do que uma verdade que não é bela. O cinema cristaliza e realiza toda a vontade de verdade difusa nas outras artes, ele é, nesse sentido, seu epítome. Mas ele se torna sua derrisão caso estacione nesse degrau e fabrique, por exemplo, “reportagem vivida”...
[6] Trata-se apenas de uma simples operação de colagem, à exceção – totalmente material – das cenas rodadas fora de sua ordem cronológica.
[7] Grifos meus.
[8] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 66.
[9] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 69.
[10] Haveria lugar sem dúvida para citar também Ida Lupino e Edgar Ulmer, ainda que muito pouco conhecidos, La Déesse des Incas de Frantz Eichtorm, sem esquecer Allan Dwan e alguns clarões em Douglas Sirk e Richard Fleischer.
[11] Reconheçamos nossa dívida perante a crítica “hitchcocko-hawksiana”, que sobretudo com Éric Rohmer, Jacques Rivette e Philippe Demonsablon foi a primeira a preparar o terreno, ainda que ela pareça hesitar em tirar as conseqüências de suas premissas.
[12] Isso não significa que o roteiro não tenha importância. A mise en scène se funda sobre as situações e depende de cada um que todas as situações não engendrem uma mesma revelação do ator. É por isso que falo de trampolim. Somente importa a altura do salto, mas ela depende da elasticidade do ponto de apoio tanto quanto das pernas.
[13] Distingamos essa gratuidade sobre o plano dos temas e da mise en situation, que pode ir justo a uma grande independência face às exigências de roteiro, e se confunde com a simples alegria de filmar um momento raro do universo, e a gratuidade que eu reprovava em Welles por exemplo, gratuidade esta de mise en scène; assim os contra-plongées sistemáticos e inúteis, ou a utilização, segundo seus próprios dizeres, de tal objetivo porque seus colegas não o empregam.