quinta-feira, 25 de dezembro de 2008
O cinema e a memória da água [Le Grand Bleu (Imensidão Azul) de Luc Besson e Palombella Rossa de Nanni Moretti]
Bom dia tristeza, Preminger
Jacques Lourcelles Dicionário de Filmes. Tradução: Luiz Soares Júnior.
Objective Burma!, Raoul Walsh
Nota: O filme, em seus diversos relançamentos, foi frequentemente amputado. O vídeo comercial Warner Home vídeo apresenta a duração original do filme em v. original legendada ( sob o título Objective burma!). Excelente restituição da foto de James Wong Howe.
À beira do mar azul, Barnet 1935
Soberbo pedaço de poesia do mais inspirado e “artista” dos cineastas russos. Primeiro filme falado do realizador, À beira do mar azul guarda ainda um pé no mudo e permite aos personagens se exprimir ora pelo silêncio, ora pela palavra ( poucas palavras), ora pelo canto. Obra dionisíaca, tudo nela jorra e se transforma alegremente em seu contrário. A intriga é composta por eventos minúsculos, imponderáveis, aliás com freqüência improvisados no estúdio; e, no entanto, os personagens dão-nos a impressão de viverem uma grande aventura. A maioria das sequências utiliza uma montagem curta, entrecortada, mas que ao fim possui uma grande amplidão lírica, devido ao interesse equilibrado que o autor dispensa às paisagens e aos personagens.
Estes últimos são pobres diabos desprovidos de tudo, espécies de clowns próximos dos heróis de Gosho ou de Jacques Rozier, e no entanto dão verdadeiras lições de vida. Desprovido de mensagemn política, o filme transmite uma mensagem de alegria, felicidade e reconhecimento para com a vida. A crítica russa da época foi violenta ( vide os documentos reunidos na excelente publicação do Festival de Locarno, Boris Barnet, 1985). Reprovou-se sobretudo seu vazio, seu formalismo, falta de imaginação, ingenuidade, seu artifício. Um dos críticos ( Herrman Khokholov) lamenta que o mar constitua de qualquer maneira o personagem principal do filme”, o que em certo sentido não é falso, mas ele lamenta que “este personagem não possua nenhuma simpatia particular”. A quem se interessasse por abordar o imenso continente cinematográfico russo, não haveria melhor conselho a dar que o de começar por À beira do mar azul. Pois não há obra mais original, mais livre de todos os cânones estéticos e ideológicos, mais intimamente próxima do seu autor e mais de acordo com esta infinita vitalidade cósmica do universo que os melhores filmes russos sempre tentaram restituir.
Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
As aventuras de Hadji, Don Weiss 1954
No cinema hollywoodiano do pós-guerra, a corrente do filme de aventuras orientais, adaptadas menos ou mais das Mil e uma noites, foi quantitativamente pouco importante, mas se ilustra por tendências variadas.
Na Universal dos anos 40, esta corrente deu lugar por exemplo a todo tipo de narrativas espetaculares para a apreciação das crianças, onde a inovação recente da cor foi particularmente valorizada ( Arabian nights, John Rawlins, 1942, ou Ali Baba e os quarenta ladrões, Arthur Lubin, 1944). No fim dos anos 50, o conto oriental reencontra seu caráter fantástico, favorecido por efeitos especiais especialmente atraentes ( A sétima viagem de Sinbad, Nathan Juran, 1958). Situado entre estes dois períodos, As aventuras de Hadji representa uma tentativa de certa forma única- ao menos por sua qualidade- de valorizar, em uma narrativa não-fantástica, a dimensão adulta, elegante e discretamente erótica do conto oriental. Don Weis, no que é sem dúvida o melhor filme de sua carreira, demonstra um refinamento plástico- um refinamento simplesmente, na verdade ( tout court)- absolutamente extraordinário, onde a contribuição do “color consultant”, o célebre fotógrafo George Hoyningen-Huene ( colaborador de Cukor em todos os seus filmes em cores, de A star is born a The Chapman Report) foi realmente determinante.
O filme manifesta, com efeito, uma soberba qualidade em todos os seus níveis: na natureza luxuriante dos cenários, sabiamente abstratos ; nos figurinos, fantasistas e coloridos, de uma perfeita unidade de estilo; na beleza elegante de seus intérpretes: soberbas Elaine Stewart e Rosemarie Bowe. John Derek não está mal também, um distante primo de Fabrício Del Dongo. Com muita arte e leveza, Don Weis permite ao espectador respirar o ar da grande aventura, purificada tanto de toda grandiloqüência quanto destas facilidades burlescas que são frequentemente pecados do gênero. O leve sorriso do contador de histórias também acrescenta constantemente a nota irônica sem a qual uma obra deste gênero seria incompleta; uma certa insolência é aqui necessária , tanto àquele que conta a história quanto ao que a escuta.
Nota: A Crítica americana, tão raramente lúcida, ignora como sempre este filme, que ela deveria incensar. Bosley Crowther, o crítico do The New York Times, revela seu obsceno mau gosto ao declarar que preferia Bob Hope no papel de John Derek. O filme deveu sua reputação apenas à clarividência de certos cinéfilos franceses , em particular dos Mac-Mahonistas.
Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Eric Rohmer, por Serge Daney
Primeira qualidade do cinema de Rohmer: a paciência. Não somente no caso de um homem seguro de si o suficiente para se impor- ao termo de um longa-metragem e de alguns filmes pedagógicos- como um dos “grandes” do jovem cinema francês. Mas também em uma obra onde tudo nos leva a esta virtude primordial: saber esperar, aprender a ver; ambas as atitudes são, graças ao cinema, uma única e mesma coisa. Como se o mundo não passasse de um imenso repertório de lições de coisas, repertório este do qual nunca se fez realmente o inventário.
O primeiro olhar não ensina nada. Mas há por detrás da neutralidade das aparências – em Rohmer, nada é sublinhado, e ainda menos privilegiado- uma lição a merecer, uma ordem a descobrir, uma verdade a pôr em evidência. Esta lenta maturação constituirá o próprio tempo do filme, ou seja: ela, longe de excluir os tempos mortos e os detalhes, apenas será possível por meio destes.
O princípio é simples então: catapultar idéias contra experiências, observar escrupulosamente e ver o que resulta daí. A experiência é para Rohmer um pouco o que foi para Hawks: a única realidade, que nos informa onde estão o possível e o impossível, recusando o segundo, buscando esgotar o primeiro. Toda idéia que não foi experimentada- ou seja: encarnada, filmada- não existe. A mesma coisa com os personagens: para que lhes seja consentido “ver” alguma coisa, é-lhes necessário um périplo, uma iniciação, uma prova ao termo da qual eles terão merecido o que já possuíam, mas que deveria tornar-se mais interior ( devenir plus intérieur), melhor assimilado por eles. No Signo do leão, é preciso merecer a riqueza por meio de um teste de pobreza que o obriga a redescobrir tudo; logo, a ver melhor. A mesma situação, só que num registro menos grave em La Boulangère de Monceau.
A experiência exige a maior honestidade possível, muitos escrúpulos e meticulosidade. Mas Rohmer é o cineasta assombrado pela geografia, as cidades, os mapas, as pedras, tudo o que pode oferecer esta resistência impessoal que torna as aventuras humanas mais exemplares.
A ficção, contudo, é sempre uma fraude; é preciso dissimular, gerir seus efeitos. É justamente o contrário que ocorre com os filmes pedagógicos, onde Rohmer reencontra a paixão da precisão, o ódio do “flou” e da entropia, a beleza de um raciocínio e o caráter inelutável de toda experiência. Nos Cabinets de physique au XVIII siècle, que é talvez sua obra-prima, é-lhe suficiente filmar uma experiência de Física, passo a passo, para que nasça a emoção mais simples. E a mais estranha também, pois nascida unicamente da exatidão.
Dictionnaire du cinema, Éditions universitaires, 1966
Os carrascos também morrem, Fritz Lang
Marc C. Bernard Présence du Cinéma n° 10, janeiro de 1962
Tradução: Bruno Andrade.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
The Gipsy and the Gentleman, Joseph Losey 1957
Terceiro longa-metragem de Losey em seu exílio londrino. Este filme extravagante e barroco- na linha das produções Gainsborough, tipo The man in grey e The Wicket lady, ambos de Leslie Arliss, 1943 e 45-, é um pontos altos de sua obra menos conhecidos e mal amados. Mal amado em primeiro lugar pelo próprio Losey, em razão das péssimas condições de filmagem (desentendimento com o produtor Maurice Cowan; abandono do filme antes do mixagem e a montagem final; cortes prejudiciais praticados pela produção após este abandono). Em seguida, mal amado pelo público inglês, que se entediou com o filme. No entanto, o projeto não havia começado mal: foi na época o maior orçamento de Losey que, segundo disse, desejava fazer de seu primeiro filme de época uma narrativa de caráter walshiano (veine walshienne). Gipsy não consegue evitar certos defeitos de ritmo. Construído desde o princípio, e sem dúvida precipitadamente, em curtas seqüências secas e incisivas, no seu desenrolar a narrativa não consegue acelerar o ritmo, tal como exigido pela intriga. A partir da segunda parte, ele arrefece um pouco para readquirir vigor ao final, que constitui um dos mais belos finais da história do cinema. Mas em seu conjunto, Gipsy tem tantas qualidades que pode-se mesmo chegar a considerar que é o último “verdadeiro” filme de Losey, aquele em todo caso onde se exprime, sem dúvida pela última vez, seu talento mais autêntico e precioso. Em particular, todas as seqüências caracterizadas pela irrupção de um elemento violento na ação e pela valorização deste elemento na dimensão plástica do filme atingem o gênio: a atmosfera do filme eleva-se em grau na tensão, elegância e fascinação trágicas. (Ver por exemplo a cena, no entanto pouco importante na economia geral da história, da vandalização da propriedade pelo cigano selvagem).
O tema da decadência aparece pela primeira vez claramente na obra de Losey (encontraremos as premissas em Time without pity) e se inscreve concretamente nos aspectos visuais e dramáticos do filme. A decadência não é um tema de discurso, um pretexto para arabescos e figuras de retórica mais ou menos vãs, como será o caso frequentemente nas obras ulteriores de Losey. A decadência, resultado ao mesmo tempo da situação de uma classe na sociedade e da evolução individual de um personagem pertencente a esta classe (aqui, Paul Deverill), é designada por Losey como o momento a partir do qual os fortes tornam-se fracos e são incapazes neste estado de sobrepujar influências que em outros tempos eles teriam rejeitado ou digerido sem nenhuma dificuldade. A partir deste ponto, o equilíbrio psicológico e moral de um indivíduo, seu gosto do risco, sua vontade de viver vão se abismar com ele em uma vertigem, uma atração mórbida pela destruição, pelo naufrágio e pela morte.
Jacques Lourcelles. Tradução: Luiz Soares Júnior.
Sedução da Carne, Luchino Visconti 1954
Vejam a descrição dada por ele nos Cahiers du Cinema (número 93) a respeito da seqüência que ele havia filmado para terminar o filme, ao invés da execução do tenente: “ Vemos Lívia passar por entre grupos de soldados bêbados, e o fim mostrava um pequeno soldado austríaco, muito jovem, no máximo 16 anos, completamente bêbado, apoiado contra o muro, cantando uma canção de vitória como as que se ouve na cidade.Depois ele parava, chorava e gritava: Viva a Áustria!” Não podemos, evidentemente, julgar a respeito da qualidade deste final, mas o que conhecemos é perfeitamente lógico e admirável. Ele acresceu ao filme alguns dos planos mais significativos do estilo de Visconti. Nos vinte anos que se seguiram a Senso, Visconti foi sem dúvida mais livre, mas não reencontrou jamais o gênio que manifesta aqui. Ele se embrenhou pouco a pouco no academicismo e, comparado ao rigor e à plenitude estética deste filme, seu tão elogiado Leopardo, onde ele tentou vulgarizar sua temática e seu universo, é apenas um “pensum” extremamente cansativo.
Nota: o diretor de fotografia G. R. Aldo morreu em um acidente de automóvel no decorrer das filmagens.
Jacques Lourcelles. Tradução: Luiz Soares Júnior.
O segredo da Porta Fechada, Fritz Lang 1948
Uma das particularidades do filme (que engendra aliás seu poder poético) é sua construção profundamente subjetiva, que nos permite penetrar nos pensamentos e sentimentos da heroína, especialmente graças a um dos mais belos comentários off jamais ouvidos em um filme. No interior da visão da heroína (que existe no filme enquanto “sujeito”), o personagem masculino é considerado sucessivamente como objeto de fascinação, amor, por fim de estupor e terror, os quais serão sempre mesclados intimamente à presença do amor. A extrema liberdade da dramaturgia permite a este “objeto” tornar-se, por seu turno, “sujeito”, na única e célebre seqüência do processo imaginário que o herói intenta contra si mesmo. A foto, os cenários, o découpage, minuciosamente pensados préviamente por Lang com a ajuda de Stanley Cortez, dão ao menor interior uma intensidade expressiva próxima do fantástico. O plano típico do filme é o da heroína atravessando algum corredor ou vestíbulo, transformado pelas zonas de sombra e de luz em um lugar perigoso, ao mesmo tempo ameaçador e fascinante. Ela deve percorrê-lo integralmente, com o propósito de atingir aos limites de seu medo, do obstáculo, do enigma e do segredo que ainda a separam de sua felicidade. Pois O segredo da porta fechada é, na cronologia da obra de Lang, o último filme onde o autor ainda deixa a seus personagens uma chance - mínima que seja - de felicidade.
Jacques Lourcelles. Tradução: Luiz Soares Júnior.
A Carruagem de Ouro, Jean Renoir 1953
Certo, Renoir presta uma homenagem ao teatro, mas seria um erro reduzir o sentido do filme à esta homenagem. O teatro aparece aqui, evidentemente, como realidade concreta (Renoir não exprime nada que não passe em primeiro lugar pelo concreto), mas sobretudo como metáfora. Ele é o receptáculo de todas as aspirações humanas à totalidade, à plenitude; é o espelho da alma sensível e ávida da heroína e de seu autor. O teatro representa uma ultrapassagem, embora real, da realidade: o teatro ou a metafísica preferida do Ocidental. Síntese de arte plástica e de arte dramática, música e confissão íntima, A carruagem de ouro é um desses filmes que permitem crer na superioridade do cinema sobre todas as outras artes.
Nota: O filme existe em três versões: italiano, francês e inglês. A versão inglesa deve ser considerada a oficial, já que nela se ouve o som direto da filmagem. No entanto -pois tudo é paradoxo em Renoir-, a versão dublada em francês nos parece muito superior. As vozes são mais variadas, mais pitorescas, mais engraçadas e, se pudermos falar assim, mais concretas. Elas acrescentam à elegância e ironia medidas do diálogo um elemento picaresco do qual não se consegue abrir mão, uma vez provado.Os atores que dublam a si mesmos (Magnani, Odoardo Spadaro) estão ainda melhores na dublagem que no idioma original. Por outro lado, Jean Debucourt, na versão inglesa, é horrivelmente mal dublado. Quanto à versão italiana, ela apresenta o mérito de fazer na Magnani falar em sua língua original. No entanto, enquanto versão dublada, ela parece menos colorida e variada que a francesa.
Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes. Tradução: Luiz Soares Júnior.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
Tamanho foi o impacto de Cidadão Kane em seu lançamento e no imediato pós-guerra que desde então ele foi sempre citado- e ainda o é- entre os 10 melhores filmes da história do cinema em listas feitas pelos historiadores, críticos e cinéfilos. Ainda muito recentemente, no “The top 100 movies” de John Kobal, Londres, Pavilion Books, 1989, que reúne quatrocentas listas de filmes de todos os países, Cidadão Kane chega em primeiro lugar.
Uma grande parte- e sem dúvida parte essencial- da originalidade do filme já existia “no papel”, antes mesmo do primeiro dia de filmagem. Ela diz respeito à construção do filme, que compreende ao menos três elementos novos. Em primeiro lugar uma espécie de sumário, de lista de temas do filme aparece no cine jornal que resume no começo o filme da vida e a carreira de Kane. Esta indica os principais pontos a serem desenvolvidos pela intriga. Aqui, originalidade absoluta: em nosso conhecimento, nenhum outro filme comportou até então este tipo de introdução. Segundo elemento novo: a utilização sistemática e múltipla de flashbacks confere a Cidadão Kane a estrutura de conjunto de um filme-investigação (enquéte).
Embora não fosse o primeiro filme a utilizar o flashback - longe disso, aliás, pois este procedimento aparece com força na história do cinema com The Power and the glory , Thomas Garner, de 1933, de William K. Howard sobre um roteiro de Preston Sturges, filme que apresenta analogias de estrutura e conteúdo com Cidadão Kane; além disso, o flashback também fora usado em Trágico amanhecer, 1939, de Carné-, o filme de Welles marca uma data muito importante na utilização deste meio.
Esta construção extremamente inovadora de Kane, no entanto, apresenta falhas, tanto no plano da coerência quanto em relação ao equilíbrio das partes. Depois de ter mostrado seus personagens unicamente através de testemunhos, escritos, cine jornais, o próprio Welles renega este procedimento e torna-se novamente um verdadeiro “narrador-deus”, com o propósito de revelar ao espectador, na última sequência e por meio de uma narração direta, o significado de “Rosebud”.
De outro lado, a importância acordada à descrição de Kane como um Pigmaleão fracassado ( em suas relações com sua segunda esposa) parece muito excessiva, em relação a todos os outros aspectos da vida de Kane. De qualquer modo, esta construção impressionou muito tanto o público quanto a crítica.
É aí que o filme parece muito inferior à sua reputação. Kane, o personagem, é sem dúvida o mais belo “albergue espanhol” da história do cinema, no sentido mais negativo da expressão: um verdadeiro balão inflado, um envelope vazio de onde a principal realidade provém de dois elementos exteriores. O primeiro é a relação que mantém com sua “figura chave” ( William Randolph Hearst), e que lhe dá, já que Hearst é um magnata da imprensa e manipulador da opinião pública americana, um certo valor sociológico. Mesmo que Hearst não seja a única inspiração para Kane- cita-se também Basil Zaharoff, Howard Hughes, etc,-, a sua biografia e a de Kane são suficientemente próximas e ricas em similitudes para que Kane possa ser considerado uma tradução cinematográfica de Hearst.
O segundo elemento exterior é a semelhança que Kane entretém com o próprio Welles: megalomania, vontade constante de se afirmar diante de si mesmo ou do mundo, tentação e fascinação do inacabado, etc. No plano dramático, o mais belo acerto de Welles foi suscitar para este vencedor a compaixão que o público habitualmente experimenta diante dos perdedores ( loosers). (A notar que o próprio filme, à imagem de Kane, perdeu muito dinheiro em seu lançamento, apesar do sucesso, e só tornou-se lucrativo ao longo dos relançamentos).
A revolução wellesiana só tem sentido, então, em relação a certos hábitos hollywoodianos. Resta a questão da profundidade de campo e do emprego do plano-sequência, figuras que Welles utiliza e que são as bases do cinema moderno. Mas nele a profundidade de campo é empregada de maneira tão demonstrativa, tão “visionária”( voyante) que ela chama a atenção mais para si do que para a sucessão de planos do découpage tradicional ( sem ser por isso mais rica de sentido).
Sartre escrevia: “Tudo é analisado, dissecado, apresentado na ordem intelectual, em uma falsa desordem que é apenas a subordinação da ordem dos eventos à ordem das causas: tudo é morto. As invenções técnicas do filme não são feitas para restituir a vida. Há admiráveis fotos (...). No entanto, tem-se a impressão freqüente de que a imagem “prefere a ela mesma” ( se prèfere); somos constantemente atropelados por essas imagens excessivamente rígidas, mascaradas por excesso de cálculo (grimaçantes à force d’être travaillées). Como um romance no qual o estilo foi radicalizado e levado para o primeiro plano, enquanto os personagens foram esquecidos “ ( Este texto figura na excelente obra de Olivier Barrot: “L’écran français Reunis, 1979).
Contrariamente aos que pensam que Welles modificou profundamente com este filme o status do realizador em Hollywood, excetuando-se Ford, Hitchcock e 2 ou 3 diretores, a maioria dos grandes metteurs-em-scéne hollywoodianos ( Lang, Walsh, Tourneur, Sirk) permaneceu relativamente na sombra. Assim como Welles, aliás, antes e depois de Kane. E para a maioria deles, esta discrição lhes era conveniente. Por que necessitariam eles de Welles para se afirmar?
Dicionário de Filmes, Jacques Lourcelles.
Traduzido por Luiz Soares Júnior.
Insucesso comercial notório quando de seu lançamento e de seu primeiro relançamento em 1945, é sem dúvida o filme de Renoir que foi sucessivamente mais atacado e louvado. Não apenas o público não o compreendeu e amou durante anos, mas até os anos 50 os principais historiadores , em seus comentários sobre o filme, mesclaram aos elogios gerais o seu veneno. Bardèche fala de “estranha miscelânia”, Sadoul de “incoerência”, “obra desigual”, Charles Ford de “glória um pouco usurpada”. Em 1945, quando o filme foi relançado, alguns, como Charles Charensol, ainda não tinham se desarmado de suas invectivas de antes da guerra, e até lamentavam a reaparição do filme: “A regra do jogo foi realizado às vésperas da guerra e hoje em dia estaria esquecido se não tivessem a infeliz iniciativa de ressuscitá-lo”, escreve Charensol, unindo a indignação pública do censor ao truísmo de um La Palice.
A partir dos anos 70, este cinema é redescoberto, re-estimado e, desde então, apercebemo-nos de que A regra do jogo, longe de ser uma exceção na produção da época, pertence, pelo contrário, a uma longa e rica linha de filmes que descrevem a sociedade do tempo segundo uma visão crítica e panorâmica, apoiando-se sobre uma série de personagens, pertencentes a todas as classes.
Em seguida, há esta distribuição de atores , variada mas muito insólita e às vezes discordante. A melancolia desfalecente, indecisa de Nora Gregor,- princesa austríaca que havia interpretado no Michael de Dreyer e em numerosos filmes alemães e austríacos , antes de aparecer pela primeira vez aqui em um filme francês- certamente decepcionou o público, assim como a volubilidade desajeitada e estranha de Renoir no papel de Octave, personagem que contém em filigrana fantasmas de ordem autobiográfica. Será que foi esta discordância que impediu o público de aplaudir as interpretações mais clássicas de um Carette ou de uma Paulette Dubost?
Mas certamente o fator de maior rejeição do público foi esta gravidade de tom que progressivamente se instala na intriga e pouco a pouco recobre suas peripécias burlescas e “guignolesques”. Com os personagens incongruentes, inocentes, vulneráveis, sinceros de Jurieu e Octave, tão deslocados na universal mentira social que estigmatiza o filme, Renoir abolia, em um só movimento, o cinismo, a distância e o recuo que o público apreciava nos afrescos irônicos de Mirande. Distância e cinismo que, para o espectador da época, eram parte integrante do seu prazer. Privado desta distância, insensível à sábia construção da intriga, às suas referências permanentes a uma tradição literária, o público aderiu ainda menos ao filme ao perceber neste a atmosfera de uma confissão íntima, sobretudo quando esta exprime a impotência de certos seres ( Octave, Jurieu) para se inserir no jogo do mundo.
Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
La Punition, Jean Rouch
Dos espectadores da televisão francesa aos especialistas em cinema verdade, quase todo mundo tem condenado La Punition como um tipo de cinema mentira. Sua atitude é injustificada, uma vez que confundem três elementos bastante diferentes: filme, verdade, e cinema verdade. Por exemplo, não teríamos o direito de dizer que La Punition é ruim por ser inexato (os documentários de Rossif são verdadeiros, mas vejam só o resultado), ou por não ser um real exemplar do cinema verdade (The Rules of the Game também não o é), ou por seu diretor ou, mais precisamente, seu produtor (e a quem nós poderíamos dar crédito mediante um desacordo?) pudessem incorretamente associá-lo a tal. A verdade de La Punition não se torna aparente sem a participação ativa do espectador, que em conversações paralelas ou diante de seus pratos, enquanto tentam assistir ao filme, negligenciam sua correspondência. Não é este tipo de passividade que um ataque de nervos dramático estimula em você. O público tem de interpretar o filme ativamente para compreender a que nível de verdade ele se situa. Se a nossa atenção for lassa, perdemos o sentido do filme. É possível ver La Punition três ou quatro vezes sem que uma única vez aparente ser o mesmo filme. Mesmo que tivesse oito horas de duração, seria igualmente atrativo. Aqui temos um filme excitante, isento de erotismo e acessível a todos, que faria quebrar todos os recordes de bilheteria, caso o Francês não preferisse, ao invés de um cinema simples, direto (La Punition, Adieu Philippine, Procès de Jeanne), o maneirismo do cinema indireto (Melodie en sous-sol, La Grande Evasion, La Guerre des boutons), cujas inúteis digressões, aridez e repetição, no final das contas, refletem valores puramente comerciais.
Luc Moullet. Traduzido por Felipe Medeiros.
Luc Moullet
Sorrisos de uma Noite de Amor, Ingmar Bergman
Nota: Poucos roteiros originais suscitaram da parte da crítica a identificação de tantas referências literárias. Foram claramente citados: Anouilh, Beaumarchais, Feydeau, Kafka, Laclos, Marivaux, Musset, Pirandello,Shakespeare, Strindberg, etc. Jacques Lourcelles
Texto contido nas páginas 1390-1391 do Dictionnaire du Cinema – Les Films (Aut.: Jacques Lourcelles). Tradução feita por José Roberto Rocha.
Husbands, John Cassavetes
quinta-feira, 27 de novembro de 2008
Sobre uma arte ignorada
O princípio do cinema como modo de apreensão é fundado sobre o registro passivo das deformações do espaço. Uma idéia que teve curso outrora queria que o cinema puro fosse mudo, que somente o jogo das imagens pudesse dar conta dessa arte que se tomava por uma espécie de pintura móvel. Isso era não enxergar duas coisas: a primeira, que o som é uma implicação necessária das premissas visuais do cinema; a segunda, que a linguagem metafórica das imagens mudas correspondia à obrigação de falar na ausência do som, e não a uma finalidade interna. Que, muito pelo contrário, uma tal deformação das aparências traía a vocação original da câmera, eis o que experimentamos hoje no espetáculo das caretas e da gesticulação desses fantasmas, e das sobre-impressões, das trucagens que conduziam a sétima arte sobre as vias de um onirismo de camelô, sem medida comum com a revelação cortante de que ele tem o poder.
Pretender que o som seja uma conseqüência previsível de A chegada de um trem à estação Ciotat não é um paradoxo[2]. O registro das aparências visuais devia criar a necessidade de uma apreensão completa do real, pelo movimento de sua dialética com o mundo: indo rumo às formas sensíveis, ele era sentido em sua separação do universo sonoro como algo obstruído no caminho, incompleto, em devir rumo a uma plenitude que se apoderaria de todas as formas. Enquanto os técnicos buscavam o procedimento que faria do cinema o que ele tendia a ser, os cineastas tentavam suplantar seu mutismo de duas maneiras bem diferentes. A primeira, ao orientar a imagem rumo à significação puramente plástica, o que levava ao monstruoso híbrido de uma arte da apreensão objetiva da aparência dedicada ao registro do falso[3] (híbrido do qual o “caligarismo” é a manifestação mais típica e mais insuportável): ao fazê-lo, o cinema perdia sua extraordinária originalidade para se pôr na esteira das artes cuja matéria não é o mundo, mas a metáfora do mundo. A segunda, ao fatiar o escoamento das imagens com intertítulos, como Griffith ou Stroheim. Notemos que essa última solução preservava a franqueza essencial de nossa arte: um filme de Griffith não é um cinema que traiu o cinema, é um cinema ao qual falta a palavra, um cinema atento a seu ser e localizado sobre a via central de seu porvir. Dessa via que passa por Griffith, Stroheim, Murnau, divergem, conforme vimos, múltiplos vieses de garagem – plástico, pictórico, trucagens surrealistas, expressionismo alemão, e todos esses filmes sofríveis, ditos de “vanguarda” ou “experimentais”, que são o último sobressalto de uma estética minada por sua contradição interna.
Recriar um mundo que ao mesmo tempo exorciza o artista e gratifica o espectador, por uma coincidência da vontade de potência do primeiro e do desejo de ordem do segundo no seio de assombrações comuns, reconciliar, tal parece o fim da arte enquanto ato destinado por sua essência de ato a preencher um vazio. À questão “Por que existe arte?” sucede a questão “Como existe arte?”. Como esse fim pode ser atingido e o espectador se sentir preenchido? É preciso, evidentemente, que haja a substituição mais total possível do imaginário pelo real presente, uma absorção da consciência pelo espetáculo, uma proximidade à beira do idêntico, antítese do distanciamento brechtiano que arruína o poder do espetáculo para restaurar o vazio no coração do espectador.
O artista faz obra de arte para se livrar, para apaziguar suas contradições, para se agradar e se seduzir, para se esquecer em um mundo onde ele cessa de “não estar no mundo”, para “sair do inferno”. Seja por uma descida a esse inferno para conhecer-lhe o fundo, se fascinar de seus excessos ao adorná-los dos prestígios da angústia e do medo, prestígios naquilo que os seres que lá mergulham nos propõem do homem uma imagem incandescente que nos projeta para fora de nossa banalidade cotidiana, em um universo onde a alma se dilata, se rasga e ganha a medida de seus possíveis. Apertado por um nó de angústia e de exaltação, o ser é revelado a si mesmo, projetado fora de si rumo a um eu mais autêntico cuja paixão o preenche e o justifica, o seqüestra em uma vertigem onde ele se reconquista em sua totalidade. A contradição levada a seu ponto extremo se resolve em sua tomada de consciência e sua contemplação, que a alça ao sagrado de uma necessidade, portanto de um aquiescimento, de um equilíbrio, de uma paz. É toda a vocação do trágico na arte. O afrontamento, a “crise” visa a uma torção do ser sobre si mesmo, onde tendo sido percorrido o círculo completo, o ser se reencontra no início em sua nudez luminosa e apaziguada. – Seja por uma negação do inferno, uma emergência simultânea na alegria, na luz, na calma, ou pelo movimento do prazer. Que tudo aquilo que não deriva dessa ordem do sublime seja nulo, inútil e sem interesse, que toda arte que não é exclusivamente íntima e passional, dedicada ao excesso, preciosa, aristocrática, seja frívola e derrisória, é ao mesmo tempo a evidência de nosso desejo e uma conseqüência lógica da função existencial da arte.
Mas inversamente, toda imagem que escapa à realidade não responde de partida ao papel definido por sua existência mesma, enquanto essa existência é suscitada por uma falta na realidade, que não pode, portanto, ser remediada senão por objetos aferentes a ela e se lhe integrando – encarada, nem em sua proliferação casual e banal, nem em um direcionamento rumo ao impossível ou ao falso, mas em suas possibilidades de equilíbrio entre o mundo e o homem. Desse modo os pleonasmos do realismo, assim como os sonhos dos falsos poetas formam ambos fossos-limites entre os quais toda atividade estética deve estar contida sob o risco de escurecer na estupidez ou na inutilidade.
A essência do cinema como arte não é ser mais documentário ou mais feérie, se o documentário se limita a restituir as aparências incontroladas e se a Feérie autoriza a mentira, a trucagem e os artifícios de estetas; mas sim, ao mesmo tempo, o documentário e a feérie, tratando-se da beleza imposta pela evidência do olho irrecusável.
Porquanto o cinema é um olhar e um ouvido mediadores entre o espectador e as aparências, porquanto a organização das aparências e sua apreensão mais eficaz constituem a mise en scène, como esta será em si beleza, isto é, exorcismo de malefícios e canto? A resposta é: pela seleção das aparências, a narrativa sobre um retângulo branco de certos movimentos privilegiados do universo. Dito de outro modo, sobretudo naquilo que elas têm de mais íntimo, as ações e reações de um homem em um cenário. A proximidade mais aguda do corpo do ator veiculará as assombrações e a vontade de sedução, engendrando uma direção de gestos raros, uma arte da epiderme e das entonações de voz, um universo carnal – noturno ou ensolarado. Não uma demonstração, uma sentença, o suporte sacrificado de uma operação superficial do intelecto, mas a linha melódica, com seus crescendos, suas pausas, suas irrupções, movimentos secretos do ser, nos concernindo ao mais vivo de nós mesmos pelas vias do perigo e da exaltação. O ponto de chegada do cinema, atingido em raros instantes pelos grandes dentre os grandes – Losey, Lang, Preminger e Cottafavi –, consiste em despir o espectador de toda distância consciente para precipitá-lo em um estado de hipnose mantido por um encantamento de gestos, de olhares, de ínfimos movimentos do rosto e do corpo, de inflexões vocais, no seio de um universo de objetos radiantes, injuriantes ou benéficos, onde alguém se perde para se reencontrar engrandecido, lúcido e apaziguado. A paixão exclui a indulgência. O acesso a essa mise en scène de vertigens e de cintilações, que se abre a uma liturgia ou à contemplação de uma ordem cósmica reencontrada, pode explicar por que noventa e cinco por cento da produção cinematográfica nos parece inexistente, miserável e sem relação com o cinema. Que, após conhecer tais transportes, venhamos a recusar todos os filmes que não visam a esse sublime, que se limitam a colocar sórdidos problemas ou a contar histórias “com imagens” numa confusão dos meios e do fim, abandonando ao acaso ou a uma repetição de procedimentos mecânicos o que deve ser dominado por uma intuição do coração e uma precisão cuja menor falha rompe a curva de febre, não surpreenderia senão aqueles que se satisfazem com pouco e que, crendo defender uma arte, sugerem-lhe a idéia mais baixa.
Agora que o prazer do jogo novo desapareceu, como suportar esses choques de planos, ou essas metáforas intercaladas, como as ovelhas de Chaplin após um plano de multidão? A própria montagem paralela toma velocidades insistentes demais para ser ainda admissível. A única montagem (ou decupagem, se consideramos a operação em sua origem) adequada ao modo de apreensão cinematográfica da realidade é aquela que adere, justo à identidade completa, ao desenvolvimento de uma série dramática dada, por seleção e justaposição de planos essenciais, como um olhar que iria sempre direto ao que importa na marcha de um evento. Assim, o espectador não é posto em face de vários espetáculos ao mesmo tempo, ou de uma análise do espetáculo por um olho absurdo que transgride as leis da atenção, situações que o distanciam brutalmente do espetáculo ao defini-lo por contradição com este último; ele está diante do espetáculo, diante do mundo, o mais próximo do mundo, graças à docilidade, à ductilidade de um olhar que o seu desposa de tal modo que o esquece. Esse olhar não tem a ubiqüidade de que conscientemente ou não o espectador se separa, ele não salta, não desliza como uma serpente, ignora as curvas, as quedas, as provocações, tudo isso que os cinéfilos um pouco retardados chamam de “movimentos de câmera fantásticos”. Ele é clássico ao extremo, ou seja, exato, motivado, equilibrado, uma transparência perfeita através da qual a expressão nua encontra sua mais eficaz intensidade.
Se agora damos a palavra ao inocente da cidadezinha, Cecil B. DeMille, o que ouvimos? “Eu devo conhecer a fundo cada ator, enquanto pessoa, assim como seus métodos, e adaptar minha própria concepção do filme a essa personalidade. Eu devo lhes oferecer minha ajuda, meus conselhos, devo guiá-los quando eles me solicitam e lhes oferecer também simpatia e compreensão...”[9]. Essa linguagem nos tira das brutalidades precedentes, e explica o prazer que podemos ainda experimentar em Sansão e Dalila, enquanto Eisenstein, Hitchcock ou Welles se distanciam cada vez mais, na noite de um cinema bárbaro que é apenas a convulsão de um olhar sobre objetos medíocres, ao passo que o cinema deve ser uma contemplação de objetos raros e sem preço.
Essa revelação não é obtida pela câmera a partir do acaso e do vazio, como espera a maior parte dos cineastas, ela se faz merecer por um trabalho preciso sobre os atores em função de suas virtualidades. A escolha dos atores é portanto capital, e no fim das contas um filme nulo e completamente desprovido de ambição, se ele comporta um ator essencial (exemplo: O Egípcio, em que Bella Darvi está sublime), é mais atraente que um filme ambicioso cujos atores são mal escolhidos. (Exemplo: Renoir utilizando Valentine Tessier em Madame Bovary, portanto seu melhor filme). Um ator essencial é aquele cujo rosto, voz e corpo são profundamente tingidos de uma capacidade passional e de uma sedução. A arte do metteur en scène consiste então em provocar essa natureza para que ela exploda ou radie, por uma espécie de simpatia direta e fulgurante, donde deriva que cada metteur en scène possui seus atores benéficos, como cada escritor é apegado a certos seres da linguagem mais que a outros, como cada pintor é atraído por uma cor. Face ao azar e aos motivos grosseiros que engendram as escolhas da maioria dos cineastas, que se colocam diante dos atores como a anta de Buridan, ponhamos a fidelidade de Preminger a um tipo de mulheres, Jean Simmons, Gene Tierney, Maggie McNamara (sobre um mínimo gesto), reencontrada ulteriormente através de Kim Novak e Jean Seberg, mulheres feridas, secretas e refugiadas em um mundo de infância, de onde elas lançam através da fixidez de seu rosto apelos apaixonantes que absorvem o abismo de seus olhos. Ou aquela de Losey em duas linhas contrárias que se juntam em uma busca comum da felicidade, uma de mulheres iluminadas docemente de uma luz de calma e de pudor, de razão e de ternura, outra de panteras convulsivas ultrapassando em um momento púrpuro as barreiras que as separam da selva e do bem-estar. Um exemplo inverso e também convincente poderia em uma única fórmula resumir o que precede: Fellini se casou com Giulietta Masina, logo seus filmes são grotescos. O que seria preciso demonstrar.
O que torna idênticos e quase intercambiáveis – senão no grau da beleza, ao menos no caminho de aproximação da beleza – filmes tão diferentes pela fonte, pela anedota e pelo “clima” quanto aqueles que pontuam a carreira de Preminger é um certo modo de olhar os atores e os objetos, idéia certamente intraduzível para inúmeros amantes de filmes, que não compreendem primeiramente por que o fato mesmo, o fato bruto, de mencionar – algum conceito que aí se re-acopla – o nome de Bernard Shaw ao falar de Saint Joan é a cegueira de uma ignorância, poderíamos dizer ontológica, do cinema enquanto tal.
A noção de autor de filmes se define, portanto, pelo império que o cineasta exerce ou não exerce sobre a matéria mesma de sua arte, sobre aquilo que a tela nos oferece, sobre a luz, o espaço, o tempo, a presença insistente dos objetos, o brilho do suor, a espessura de um cabelo, a elegância de um gesto, o abismo de um olhar. Enquanto isso, a quase-totalidade da crítica se dedica ainda ao roteiro, o que equivale a comentar Le Radeau de la Méduse e a definir Géricault citando as peripécias do naufrágio e a idade do capitão. Assim, a pesquisa e a síntese das equivalências de roteiros em Hitchcock (as transferências de culpabilidade, por exemplo) não interessam em nada ao que vemos sobre a tela e que somente conta. O tema da transferência dá lugar a situações que em si mesmas engendram uma mise en scène cujas próprias constantes são o que retêm nossa atenção. Analisar a obra de um cineasta é mostrar em que seu acesso aos temas fundamentais da mise en scène, ordenados em torno da presença corporal dos atores em um cenário, é ou não é capaz de nos fascinar. Como ele desvela o desejo, o ódio, a violência, o medo, a ternura, como olha a cidade, as árvores ou o mar. Essas noções requerem o uso da metáfora e um caminho que torce a linguagem para dar conta de seres estéticos novos.
É preciso concluir, se comparamos esses princípios elementares à sua aplicação, que o cinema é tão desconhecido hoje quanto era a pintura no fim do último século. Reprovamos a nossos pais terem colocado Meissonnier antes de Cézanne, mas não vemos nosso século de luzes preferir as Noites Brancas de Visconti às Aventuras de Hadji de Don Weis? Surpreende-se que as obras levadas num dia aos píncaros sejam insuportáveis ou ignoradas no dia seguinte, sem compreender que isso não ocorre por uma fatalidade misteriosa, mas simplesmente porque a maior parte dos espectadores não aprendeu ainda a olhar, e filtra as imagens através de uma consciência inadaptada às realidades da tela.
Michel Mourlet
[1] Não se tratam evidentemente dos critérios de finalidade, transcendentes à obra e comuns a toda forma de arte.
[2] Esse parágrafo que eu acreditava dever defender da imprecisão foi escrito quando eu tinha achado sua melhor justificação em um artigo de André Bazin, compilado em Qu’est-ce que le cinéma? e intitulado “O Mito do Cinema Total”. Citemos: “Tudo me parece ocorrer como se devêssemos inverter aqui a causalidade histórica que vai da infraestrutura econômica às superestruturas ideológicas e considerar as descobertas técnicas fundamentais como acidentes felizes e favoráveis, mas essencialmente secundários em relação à idéia preliminar dos inventores. O cinema é um fenômeno idealista. A idéia a partir da qual os homens o fizeram existia toda pronta em seu cérebro, como no céu platoniano, e o que nos atinge é bem mais a resistência tenaz da matéria à idéia do que as sugestões da técnica à imaginação do explorador”. E mais adiante: “Se as origens de uma arte deixam perceber alguma coisa de sua essência, podemos considerar os cinemas mudo e sonoro como as etapas de um desenvolvimento técnico que realiza pouco a pouco o mito original dos exploradores. Compreende-se, nessa perspectiva, que seja absurdo tomar o cinema mudo por uma espécie de perfeição primitiva da qual o realismo do som e da cor progressivamente se distanciaria”.
[3] Cf. a definição de Valéry, contemporânea dessa época: “O cinema é a arte de fazer o falso com o verdadeiro”.
[4] Importância da fotografia: de sua qualidade depende em parte a sensação do volume espacial, o grão da luz, os jogos tênues da epiderme.
[5] “Fazer o verdadeiro” não é um fim mas um meio, o meio de fazer aceitar o fim que é a beleza. Uma beleza que não é verdadeira não é mais tolerável do que uma verdade que não é bela. O cinema cristaliza e realiza toda a vontade de verdade difusa nas outras artes, ele é, nesse sentido, seu epítome. Mas ele se torna sua derrisão caso estacione nesse degrau e fabrique, por exemplo, “reportagem vivida”...
[6] Trata-se apenas de uma simples operação de colagem, à exceção – totalmente material – das cenas rodadas fora de sua ordem cronológica.
[7] Grifos meus.
[8] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 66.
[9] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 69.
[10] Haveria lugar sem dúvida para citar também Ida Lupino e Edgar Ulmer, ainda que muito pouco conhecidos, La Déesse des Incas de Frantz Eichtorm, sem esquecer Allan Dwan e alguns clarões em Douglas Sirk e Richard Fleischer.
[11] Reconheçamos nossa dívida perante a crítica “hitchcocko-hawksiana”, que sobretudo com Éric Rohmer, Jacques Rivette e Philippe Demonsablon foi a primeira a preparar o terreno, ainda que ela pareça hesitar em tirar as conseqüências de suas premissas.
[12] Isso não significa que o roteiro não tenha importância. A mise en scène se funda sobre as situações e depende de cada um que todas as situações não engendrem uma mesma revelação do ator. É por isso que falo de trampolim. Somente importa a altura do salto, mas ela depende da elasticidade do ponto de apoio tanto quanto das pernas.
[13] Distingamos essa gratuidade sobre o plano dos temas e da mise en situation, que pode ir justo a uma grande independência face às exigências de roteiro, e se confunde com a simples alegria de filmar um momento raro do universo, e a gratuidade que eu reprovava em Welles por exemplo, gratuidade esta de mise en scène; assim os contra-plongées sistemáticos e inúteis, ou a utilização, segundo seus próprios dizeres, de tal objetivo porque seus colegas não o empregam.