terça-feira, 12 de julho de 2016

Eva, por Michel Mourlet


O criminoso, que ontem foi acolhido pela crítica parisiense como o melhor filme de seu autor, não era um bom filme, mas Eva nos convida hoje a considerá-lo como um filme importante, em relação à evolução geral da obra de Losey. Esta evolução vai no sentido de uma proximidade crescente da epiderme e do grão dos objetos, aliada aos mais definitivo conhecimento de si. Mas enquanto que um método era experimentado em The criminal – e apenas um método, para a descrição dos personagens e a expressão do conteúdo dramático do cenário, método que desenvolvia uma violência muito artificial que captava os momentos descontínuos de um homem surgido e retornando ao nada, sem nenhum eixo que viesse ordenar e imprimir um peso a seus gestos esparsos-, passa-se em Eva uma sedimentação desta forma nova, que encontra sua matéria e seu peso.
Podemos abordar este filme de três principais maneiras, que o caracterizam forçosamente: pelo movimento de sua dramaturgia, pelo método de descrição, pela natureza e elevação de tom do debate. Estando entendido que estas explicitações da análise, que recortam de forma relativamente arbitrária um élan único de inspiração e de trabalho, só pretendem indicar um certo número de referências sobre um terreno vasto e vário.

I Movimento da dramaturgia. É preciso compreender por estas palavras a operação que consiste em Losey em escolher, no curso dos eventos, os atos ou estados privilegiados, orientados diretamente no sentido do drama, as ramagens mais avizinhadas da raiz do mal e ainda vibrantes pelo efeito do abalo central. É  a dramaturgia natural do relevo, comum a todos os filmes de Losey, e que oporemos à dramaturgia em cavidade onde, por coquetismo intelectual, aquilo que é inútil ou acessório é sublinhado, os tempos fracos cultivados e a expressão voluntariamente não significativa. Em Eva, pelo contrário, e com ainda maior determinação, não há um único elemento, por mínimo que em aparência seja, que não concorra ao crescimento da tensão, nenhum grão de areia que não extirpe um pouco mais da pele. O tratamento do tempo se inscreve logicamente nesta escolha: esposa da forma mais íntima aquilo que Bergson chamava de duração: não o tempo abstrato dos relógios mas aquele real dos batimentos do coração.Tal cena passa, breve como o agudo do prazer; esta outra se estira ao longo da angústia: jamais sair do concreto, depositado nesta espessura da vida e das coisas.

II Método de descrição. Este evoluiu muito desde The boy with Green hair, tanto no que concerne aos personagens como ao cenário. Os personagens, muito classicamente pintados durante o período americano- explicados, justificados, sob os ângulos psicológico e moral-, são pouco a pouco extirpados destas explicações até se tornarem em Eva puros momentos de surgimento do ser, imediatos e fechados sobre si mesmos, salvo durante as evasões de reflexos, de palavras e de paixão que unicamente na vida nos permitem descobrir um desconhecido. Reencontramos aqui a vontade de se dirigir ao mais concreto, e o mais brutalmente possível, sem nenhuma das mediações habituais da narrativa. Esta mesma vontade conduz a câmera quase a tocar a superfície opaca da água, a rugosidade de uma escultura, o polido de um crânio calvo, a valorizar os detalhes sem no entanto perder de vista o conjunto, que permanece sempre presente. É aliás este poder de fazer pesar a totalidade sobre cada fração em si mesma que se constitui em um dos traços essenciais do gênio de Losey.

III. Natureza e elevação do debate. As características precedentes, nós já havíamos visto, encontravam-se já, mais ou menos afirmadas, em The criminal e em menor grau em Blind date. No entanto, Criminal havia aparecido a alguns dentre nós como um exercício de estilo excessivamente gratuito, distanciado das fontes profundas; talvez fosse necessário revê-lo novamente, à luz de Eva? Trata-se sempre de que este último filme, nisto fiel às preocupações fundamentais do metteur en scène- e explicitando-as até uma evidência jamais atingida até então- manifeste a ambição de expor o conflito entre o puro e o impuro, ou seja entre a a natureza e a não-natureza, em termos literalmente bíblicos: não é por acaso que as palavras do profeta abrem e fecham o filme. Um plano admirável do início já encontra o tom de tudo, onde vemos Stanley Baker, ereto sobre seus esquis, penetrando os flocos de neve em meio a feixes de espuma, enquanto comenta: “Eu entrava na Babilônia, montado sobre uma biga de fogo”. É estranho que se tenha podido pensar, diante de uma denunciação perpétua do artifício, em alguma complacência de sua parte. Retratar Babilônia implicava a análise e a exposição metódicas de seu caráter barroco; a acumulação, em torno de Jeanne Moreau, dos objetos e dos gestos que se relacionam com ela não possui outra função nem sentido. Sobre um tema banal, eterno e que bem vale por outros, Losey construiu uma obra onde a carne se mostra vivamente ( à vif) , profundamente moral na acepção verdadeira e nobre- eu quero dizer: não determinada pelo curso dos eventos, mas pelo olhar que portamos sobre eles.

Michel Mourlet ( Defesa do Ocidente, novembro 1962) Présence du cinéma, março/abril de 1964, Joseph Losey e Samuel Fuller

Tradução: Luiz Soares Júnior



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