quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Melville e seus discípulos, Nicolas Saada


Desde os anos 60, o interesse de Holywood e do mundo pelo cinema francês parecia ter se fixado principalmente sobre Godard e Truffaut: Godard era o moderno, Truffaut o sensível, ambos tendo se tornado o ponto de referência último de certos grandes cineastas americanos, que não cessaram de citá-los em seus filmes. Com Melville, redescobriu-se um elo perdido que, com Becker, Franju e Bresson, marcava uma transição histórica no cinema francês entre a tradição de antes da guerra e a Nouvelle Vague.

Melville é talvez o mais americano dos cineastas franceses: do cinema noir, ele reteve o fetichismo das armas e das roupas, a lógica quase fratricida da guerra de gangs e da lei do meio. Seus personagens parecem evoluir em um mundo paralelo, indiferentes ao tempo que passa e à sociedade, que acaba por aprisioná-los e matá-los. Por sempre ter feito referência quase direta aos mitos do grande cinema americano, Melville foi confundido, de forma equivocada, com uma figura nostálgica, presa ao passado, enquanto seu projeto tendia na verdade a deslocar os signos do filme noir no contexto depressivo do cinema de gênero à francesa

Nos filmes policiais de Melville, tudo a priori é clarividente: jazz, impermeáveis e stetsons. Mas por trás destas referências imediatas, dissimula-se uma relação muito particular ao cenário, ao quadro ( cadre) e à encenação. Os percursos de Melville sempre o encaminharam em direção a um crescente perfeccionismo, uma precisão de todos os instantes na progressão narrativa, de sua geografia e de seus personagens. Seu estilo com o tempo tornou-se cada vez mais misterioso, impalpável, e sua influência mais surda, distante. É por isso que pálidos imitadores focalizaram-se essencialmente sobre detalhes menores, tais como as roupas, a música e sobretudo uma certa “pose”, elementos que substituíam de forma desajeitada a essência de seu cinema, profundamente insolente e melancólico.
Melville manifestava a impossibilidade da existência do gênero através de personagens isolados e perdidos, ligados a ideais absolutamente ultrapassados.Esta idéia de errância, de perdição se reencontra nas cenas filmadas na floresta em Os profissionais do Crime ( Le deuxième souffle) ou O círculo vermelho: sequências de fuga para frente ( dianteira, “fuite em avant”) dos personagens. Estes últimos só parecem encontrar seu lugar num mundo desértico ou mental, do qual o quarto-caverna de Jeff em O samurai é uma imagem marcante.

Não é por acaso que o cinema de Hong-Kong foi um dos raros a integrar de forma excelente o universo dos filmes de Melville. Espremidos entre a tradição sufocante de uma China que os rejeita e o absurdo de uma megalópole que reproduz freneticamente o funcionamento das grandes capitais ocidentais, os heróis de John Woo são feitos da mesma matéria dos desenraizados de Melville.
Eles não pertencem a nenhuma verdadeira História, e se isolam em uma visão romântica do mundo que os conduz à sua perdição. É o caso do Assassino, personagem tão excepcional quanto ultrapassado, consciente de seu isolamento. John Woo também reteve de Melville a extrema inteligência de seus dispositivos geográficos: em uma das mais belas seqüências de Os profissionais do Crime, um personagem inspeciona cuidadosamente a situação de um cômodo onde perigosos gângsters, entre eles Denis Manuel, marcaram um encontro com ele. Minuciosamente, ele busca um lugar onde poderia dissimular uma arma sem que eles saibam. Em seguida, Denis Manuel fará o mesmo e descobrirá o revólver escondido. Em John Woo, o espaço é cuidadosamente esquadrinhado pelos personagens, a fim de ser utilizado em caso de confronto. O território é marcado, assinalado, e possibilita uma espécie de cumplicidade com o espectador, como em Better tomorrow, onde Chow-Yun Fat esconde um revólver em um corredor que o conduz diretamente para um covil de gângsters.

Mas se Melville colcoava seus heróis em paisagens urbanas, vazias e desencarnadas, verdadeiros lençóis se estendendo a perder de vista ( imóveis com corredores infinitos, avenidas desérticas filmadas na aurora, os recintos das escadarias abandonadas), John Woo abole o espaço através da montagem, único meio de quebrar os estreitos limites desta cidade-mundo que é Hong Kong. Esta ligação radical à forma parte de uma mesma constatação de fracasso, aquele da impossibilidade de inscrever no tecido social a presença de silhuetas quase anacrônicas.

No Estados Unidos, a influência de Melville permaneceu muito parcial, mais visível em cineastas cinéfilos como Scorsese que, com Travis Bickle em Táxi driver, oferece uma variação em torno do personagem abandonado e solitário do Samurai. Bickle e Jeff Costelo ( Alain Delon) possuem em comum o desejo de não deixar nada nas mãos do acaso: vejamos como Bickle esconde cuidadosamente nas mangas de sua roupa revólveres e punhais.
A sombra de Melville está mais presente nas seqüências rodadas no apartamento de Bickle: como Jeff Costello, ele se isola numa espécie de covil separado do mundo.

Esta idéia está presente quase 15 anos mais tarde, em Ajuste final (Miller’s Crossing), dos Irmãos Coen, filme profundamente mellviliano, tanto pelo tema quanto pela forma, extremamente contida. O herói do filme, interpretado por Gabriel Byrne, é um cruzamento entre o Delon do Samurai e o Belmondo de Técnica de um delator. Como Jeff, ele se fecha em um apartamento deserto, que se torna pura projeção de seu espírito. Assim como em Técnica de um delator, ele nos faz acreditar em sua traição, com o propósito de desvelar a identidade dos traidores que gravitam em torno de seu melhor amigo. Ajuste final retoma uma das imagens preferidas de Melville, a da imensa floresta, indiferente à violência dos homens. Uma das mais belas sequências do filme é aquela em que Gabriel Byrne deixa John Turturro viver: os Coen o filmam correndo freneticamente no meio das árvores, repetindo o plano fulgurante da fuga de Gian Maria Volonté no início de Círculo vermelho.

Foi um dos aspectos mais decorativos do cinema de Melville, transmitido sem dúvida à sua geração pelo intermédio de John Woo, que inspirou Tarantino. Com Cães de aluguel, Tarantino parece ter se concentrado sobre os detalhes mais imediatos do cinema de Melville, principalmente a roupa preta, verdadeiro uniforme de gângester. Tarantino certamente deve ter se lembrado do belíssimo plano da autoestrada, filmado em pleno dia por Melville nos Profissionais do crime: vemos, no quadro, os quatro cúmplices marchando lado a lado em direção à caminhonete blindada.

Le Bernin, à vista dos quadros de Nicolas Poussin, dizia, designando com o dedo a testa, que este pintava “ dali, daquele ponto ali” ( de là). Da mesma forma, em Melville, a visão do gênero torna-se uma espécie de meditação. Talvez por este motivo muitos tenham confundido em seu cinema a melancolia com a nostalgia. Ele se inscreveu em uma tradição profundamente francesa, e tentou reinterpretar uma idade de ouro ( âge d’or) desaparecida.
Tradução de Luiz Soares Júnior.

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