Paris nos pertence é um filme suma. Uma totalidade onde a aventura interior e exterior, moral individual e coletiva são indissociáveis; uma obra total onde um homem por completo se entregou, arriscando-se inteiramente. Ele pôs no filme também Nossa época e tudo o que respiramos no ar de esperanças e inquietudes, e tudo ainda aquilo que amamos na arte como na vida.
Consiste
numa destas “sumas” estranhas e demenciais- diria quase: obra de místico- tais
quais raramente aparecem na história do cinema, e de forma nenhuma no cinema
francês. Uma suma como Cidadão Kane um dia o foi.
Contar a
história? Inútil. Em primeiro lugar, esta é incontável, em sequência porque
existem várias, e depois tudo se situa “em um outro plano”. Podemos apenas
dizer que se trata talvez de uma aventura real vivida por mitômanos, ou talvez
de uma aventura mítica tornando-se pouco a pouco real, ao menos que as duas
versões não sejam verdadeiras. Mistérios de Paris.
É em todo
caso um filme inquietante, perturbador, como conheço poucos; um filme que exala
uma angústia indefinível e de qualidade rara, angústia que só encontramos até
aqui em Poe e Borges.
É um
filme simples, rodado com a fé e a convicção dos antigos seriados. Rivette
encontra-lhes o tom até nesta extraordinária foto que nos provoca uma espécie
de exílio, uma nostalgia cujo nome não podemos dizer até o momento em que
fazemos a ligação com esta foto fulgurante e rude dos filmes de outro tempo,
com estes céus brancos que dominavam os tetos aventureiros da Paris de Vampires.
Obra
total onde tudo aquilo que não é dito permanece mesmo assim presente pela magia
de uma linguagem que sabe constantemente nos conduzir para outros planos que
não aqueles onde crêramos estar. Tudo aquilo que empresta cor a nossa vida está
lá: a traição e a pureza, a paixão de chegar e de se realizar, o risco e a
segurança, a arte e a vida, a fé e as montanhas, a perda e o ganho.
Mas quem
perde, e quem ganha?
De
Rivette diríamos talvez que ele perdeu. Bela homenagem. Não nos contradizemos:
isto seria tombarmos em uma armadilha, seria perder-se, seria atentar contra o
filme tentando paralisá-lo , enquanto que neste plano também ele é
essencialmente o filme do risco, que ele deve e quer permanecer uma aventura.
Seria
preciso que este filme, de tanto inquietar, deixasse alguns perturbados em
relação ao seu próprio valor. Que os outros se tranqüilizem: aquilo que
quiserem achar encontrarão; o que devem ganhar, ganharão.
Quem
perde e quem ganha? A resposta é conhecida desde muito tempo. Aquele que
conquista é o que não aspira à conquista e Paris sem dúvida pertence àquele que
antes de tudo persuadiu-se de que “Paris não pertence a ninguém”.
Michel
Delahaye, Présence du cinéma, 6/7, dezembro de 1960. Sadismo e libertinagem
Tradução:
Luiz Soares Júnior
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