terça-feira, 25 de agosto de 2015

O retorno do filme pródigo



Se Two Lane blacktop se demarca não apenas de alguns filmes precedentes, mas também da corrente onde flutuam- se revoca, por exemplo, a condição humana de Fat city não é porque ao esquematismo do filme de Houston ele oporia uma espessura mais generosa e melhor estratificada do vivido, mas porque recusa radicalmente a economia de acumulação destes filmes. Ele dilapida sua narrativa. Warren Oates de um lado, James Taylor e Denis Wilson de outra apostam em quem, no volante de um Pontiac novo ou de um funny car, antigo Chevrolet modificado pelas corridas de dragsters, vai chegar primeiro pelas rotas de corrida a Washington. Mas o fio da corrida é rapidamente perdido, e o duelo reduzido ao preâmbulo do desafio. Só permanecem a trama dos encontros, das expectativas e dos esquecimentos: uma cena submergida pelo acidental e pelo fortuito. A referência embaraçosa da finalidade cede espaço a um real que se desenrola infatigavelmente, cambiante, pródigo de si mesmo, a um filme sem fim. A ausência de toda fricção episódica conserva para o filme uma aceleração implacável que apenas pode ser interrompida pela destruição conjuratória da película, a abolição simulada do suporte.

Esta densidade vem também de uma abundância estritamente técnica. A competição automobilística parece ser aqui assunto de iniciantes, os únicos capazes de apreciar o ritual do topfuel, a água de Javel desperdiçada para limpar os pneus, as referências estroboscópicas sobre os volantes airados; os sinais, improvisados ou não, dos protocolos de partida, onde os carros avançam ou recuam por sobressaltos bruscos. Mas estes detalhes evitam tanto a preguiça dramática quanto o folclore; eles não são os motivos ou os acessórios de um encadeamento aristotélico, mas uma estranha moeda. O seu esoterismo relativo leva-os a aceder a uma autoridade significante, onde a satisfação do conhecedor e o ressentimento do profano lutam com armas iguais. Em um filme onde não circulam apenas automóveis, mas as opiniões, os amores, as armadilhas e os encontros, eles favorizam um comércio desregrado onde a multiplicação dos signos não é o objeto de uma troca, mas de um tráfico. A enumeração não compra a cumplicidade do espectador, mas lhe sublinha a estranheza da Verfremdung ( Alienação). O espetáculo elide seus resultados. Estas peças, ao ocultar tão cuidadosamente seus golpes, seriam peças falsas? O diálogo cruza duas linguagens semelhantemente pletóricas e semelhantemente aberrantes. Taylor e Wilson abusam de um vocabulário , de uma sintaxe e de um estilo, no sentido próprio: mecânicos, e que são a equivalência verbal da insistência técnica das peripécias, tão intolerável que se deixa absorver em uma paródia de silêncio. Warren Oates, este papagueia como um perfeito mitômano. Ele só pega os passageiros para reconduzi-los ao espanto, seduzi-los ou desfazer-se deles à força de um bluff. Soldados, velhas senhoras e pederastas, cada um tem seu direito a um refrão de cabotinagem, de hipocrisia ou de vexatório desprezo, de que o imaginário só livra uma boa vontade veemente e frustrada. Aqui também o “pleno” imita o vazio: ele provoca, mas desencoraja a resposta. Este discurso reproduz as rotas do cenário. Ele constitui-se na via de uma circulação alucinada e obstinada. A palavra é deteriorada  pelo significado; ela se anula, na busca obstinada de sua própria transparência. Two Lane blacktop é um drama do anonimato. Os personagens se designam, mas sem se interpelar. Eles se chamam pelos sobrenomes, mas não possuem um nome.


Um irreparável estilhaçamento

Esta estranheza, onde colaboram o fracasso das peripécias e a morte do diálogo, é muito próxima do patético. Uma carta do Tendre 1 lunaire se fende, sob a força de tensões, em um irreparável estilhaçamento. A história de amor é de forma clássica: Laurie Bird, a caronista, passa de um carro a outro, antes de abreviar toda esta divagação e fugir, livre. Ora, este classicismo não é contrariado por uma subversão temática, e também não explode sob a pressão interior do sentimento. Ele não se rasura porque instala-se na própria cratera da narrativa, ali onde os eventos perdem seu sentido e onde a palavra gira sobre o vazio e se fissura. O amor se constrói, e portanto se desfaz, no seio desta recusa. Quando Taylor, para se declarar, conta à jovem impossíveis histórias de termitas ( cupins) ou então a ensina a conduzir em vão; quando Oates, por seu lado, desempenha seu papel de protetor e lhe oferece férias quiméricas, eles não colidem contra a sua indiferença, mas escutam, amplificado, o eco de seu próprio silêncio. A emoção não é o fruto da identidade e da presença, mas igualmente o contrário da dessemelhança e da Distância. Ela se confunde com uma nostalgia discreta, como neste último plano onde passa, solitário, o cavalo do western.


Louis Seguin, A crítica dispersiva; A lei, a utopia

Tradução: Luiz Soares Júnior



 Nota:

1 https://en.wikipedia.org/wiki/Map_of_Tendre




quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Os dois rostos de Faces



1. Em torno do vazio.


O tema de Faces são os rostos, portanto a inquisição de uma câmera mais que atenta perscruta sem parar os menores declives. Rostos que se transformam em “caretas”( a palavra ‘faces’ em inglês tem os dois sentidos) , quando a mobilidade dos traços se fixa em expressão ridícula ou dolorosa. Dos personagens destes rostos não se sabe grande coisa, pois nada mais é interrogado senão aquilo que se pode ler justamente inscrito neles: excitação, desejo, fadiga. Não se trata de forma alguma aqui  de estados de alma intensos, nem de psicologia em filigrana ( desta razão advenha talvez que não se possa conceber o filme senão como 16mm inflado).
Daí venha também a impressão suscitada pelo filme de ser uma enquete meticulosa, e que no entanto não capta nada; que gera o aparecimento , em vários momentos súbitos, de efeitos violentos ( divórcio, suicídio), sem que de forma alguma a sutileza dispensada pelo filme permita que estes momentos sejam explicados. O escândalo é tal que o espectador tem a impressão de que faltam cenas, em particular a do suicídio- como? por que?
A nossos olhos, a beleza do filme de Cassavetes consiste em nos fazer sentir este mal do cinema- a impotência que lhe cabe de direito de explicar a interioridade, uma vez que não captura literalmente senão signos exteriores; esta incapacidade talvez não seja isenta de parentesco com os próprios males que se urdem secretamente na interioridade. Como se o próprio silêncio que lhe foi relegado por todo cinema honesto fosse o lugar propício de onde emana qualquer grito, silencioso pelo eco de seu próprio vazio.

Como os filmes de Godard, Straub, de Lefèbvre, Faces é um grande filme do vazio, dilacerante por ser ao mesmo tempo vertiginosamente exterior e bordejado pelos mais doentios domínios do “Dentro”. A saber, aqui o estado completamente “abandonado” ( paumé) do indivíduo americano. As diferentes vertigens, depressões, náuseas, delírios, preparatórios ou consecutivos à ebriedade que vemos no filme poderiam facilmente ser considerados como pudicas metáforas desta doença. Mas nada autoriza de forma literal semelhante generalização simbólica. Para nós, a grande beleza do filme vem antes de ter sabido servir-se dos efeitos do álcool- hipersensibilidade e hiperlucidez, enternecimentos e epifanias- a própria forma, titubeante e rigorosa, de sua poesia.

Sylvie Pierre, Cahiers du cinéma, número 205, outubro de 1968

Tradução: Luiz Soares Júnior