segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A superfície vídeo, por Pascal Bonitzer


O sucesso do cinema é ligado desde as suas origens ao fato de que este reproduz o movimento da vida, ou antes: ao fato de que ele é feito para isto. Nevoeiros, tremores de folhagens, nuvens, águas correntes, todos estes temas de interlúdios que são como o núcleo do cinema, sua besteira também se quiserem, mas sobretudo seu “grão” próprio. O grão da imagem cinematográfica é um grão fino, atmosférico, expondo em sua coexistência à luz as diferentes texturas da pele, dos tecidos, da pedra, das peles dos animais, das cascas, do polido dos metais e os fluidos, a fumaça, etc Esta coexistência imediata de matérias e essências diversas é a raiz do poder do cinema, o que se chama a impressão de realidade. A imagem é transparente, a película registra o jogo das luzes e das sombra; o trabalho não se faz na câmera enregistradora, mas antes ou diante ( a luz) e depois ( o laboratório). A realidade pode ser trucada a posteriori, mas ela está lá a priori, e é ela que se imprime e suscita impressão.

Já o vídeo funciona de uma forma totalmente diferente. A fita magnética opaca não tem nada a ver com a película transparente e sensível. O vídeo não truca a realidade ótica; esta opera em um outro domínio, é desde logo manual, ou antes “digital”. A imagem é de antemão suscetível de se decompor ao infinito; ela abrange quase que naturalmente um tratamento não figurativo. A imagem não possui grão uniforme; ela se compõe de pontos a partir de cada qual é possível, graças ao tratamento numérico, ao efeito Squeeze Zoom ou Quantel, desfazê-la, anamorfizá-la e metamorfoseá-la.

A metamorfose é o regime natural do vídeo; ela não tem portanto nenhuma ligação natural a uma qualquer realidade; as noções de plano e de campo não lhe são pertinentes, já que estas ( do vídeo) possuem uma significação puramente ótica. O espaço do vídeo é pura superfície; é por isso que se fala da imagem eletrônica não de “mise en scène”, mas de “mise en pages”. Não há profundidade estratificada em uma escala de planos, nem coexistência mais ou menos conflituosa- e portanto, propícia à narrativa, ao conto, ao drama- de corpos, mas uma incrustação sem conflito, um jogo de papéis recortados ( découpés), como se todos os corpos estivessem liberados da profundidade e do peso, e se distendessem sobre a superfície como cartas.

O cinema é uma arte do próximo e do distante, e de todos os sentimentos que os implicam: amizade, amor, ódio, inquietude, angústia, fobia, terror, horror, desejo, excitação, nojo... No vídeo, não há nem o próximo nem o distante, tudo é ao mesmo tempo próximo e incomensurável; Averty pode fazer Tino Rossi dançar umas 33 voltas sobre o fundo do oceano, mas podemos falar, em um jogo de tal ordem, em superfície e fundo? A imagem é liberada da perspectiva. Os corpos são liberados de todas as emoções, de todas as inibições. O espaço é de antemão jogo colorido ( o vídeo em preto e branco não possui nenhum sentido, a não ser como truque especial de cinema), eufórica, leveza ou indiferença, doce psicodelia.

No cinema, um buraco é sempre dramático. É um poço, uma ferida, uma fechadura onde se imiscui o olho do voyeur ( e onde o paranóico, como em El, insere uma longa agulha vingadora), é o buraco da banheira para onde converge o sangue, que desaparece em turbilhão ( Psicose); é uma boca que se abre sobre um grito, é a caixa do elevador onde a vítima é empurrada, é o impacto da bala entre os olhos, as órbitas sanguinolentas do cadáver; é a boca do aspirador que aspira todo um magazine ( Um chef de rayon explosif), é um buraco negro, um ânus, um sexo exposto, um ventre entreaberto, um abismo. Não há um buraco em vídeo, ou antes: só há buracos, superfícies rasuradas, incrustaáveis ao infinito. Todos os buracos são sempre tapados pelo que vem aflorar à superfície; não há buraco, só há incrustações, flores que vem eclodir no lugar dos olhos, um nariz que emerge sob a boca, um coelho no pavilhão da orelha, e o todo em música, música e musak. Não há vazio em vídeo, a imagem é um formigamento de pontos animados- pela incessante vibração eletrônica-, um espaço de incessante pulsação.

Não há atores em vídeo. O ator é a própria imagem, a imagem que faz a histérica ou a esquizo, que se metamorfoseia e que pulula. O cinema leva a sério a metamorfose mas também o que Elias Canetti chama “enantiomorfose”; a ação de desmascarar, de reconduzir a uma identidade primeira toda a série das figuras enganadoras. Lang, Hitchcock: pastiches, glacês sans tain1, identidades falsas, “invraisemblables verités” 2, máscaras diversas.

No cinema, os eventos são sempre no fundo irreversíveis, e mesmo os efeitos de “retour em arrière”3 se encarregam de prová-lo. Nada é irreversível em vídeo, pois tudo é circular e sem conseqüência, os corpos incorporais plastificados se desfazem e se reconstituem ao sabor da “mise en pages”. O vídeo é Alice, que corre sobre o espaço, se desdobra, se alonga, cresce e diminue. Alice não é um personagem de cinema, porque no cinema os truques devem ser realistas, e o realismo não tem nada a fazer na história. O vídeo não possui maquinário, nada de mundo-aquém, nada de realidade enganadora ou falsa, porque não possui realidade, ou infimamente.

Não há sombras em vídeo. A mise en pages faz-se obrigatoriamente com luz direta, o plano dianteiro sempre iluminado da mesma forma ( um pouco mais sombria) em relação ao segundo plano ( arrière-plan) azul e brilhante, que é o suporte das incrustações. O vídeo conhece as diferenças entre as cores, mas ignora as variações de iluminação.

O vídeo não conta uma história; ele desenvolve um pequeno poema visual, um haïku ( ou antes, filosofa sobre o visível, como em Godard). Poemas, haïkaï: as metamorfoses sintéticas do admirável Sunstone, de Ed Emshwiller ( mas se trata de um caso particular, as imagens informáticas). Um deslumbrante vídeo filme sobre Grace Jones. Grace Jones é um corpo ideal para o vídeo, um corpo artificial, brilhante, leve, improvável, de clown andrógina glacial, de Pierrot negro. É uma paródia de star e o contrário de uma star, pois ela não sugere nenhum drama, nenhum perigo, nenhum terror ou frisson.

Os vídeo filmes só são suportáveis quando curtos; rapidamente, eles saturam a atenção. O suporte película talvez não seja, como diz George Lucas, “apenas um estúpido material, típico do século 19”; o suporte magnético é sem dúvida um material sofisticado, fiável, digno do século 20.

Pobre século 20.


Notas:


1 Espelhos cuja superfície refletora permite que qualquer pessoa postada atrás dele veja sem ser vista. Como na cena do hotel, no Mil olhos do doutor Mabuse ( 1960).

2. Título francês do penúltimo filme americano de Fritz Lang, Beyon a reasonable doubt (Suplício de uma alma).

3. Retomar/retornar ao princípio.


Pascal Bonitzer, Le champ aveugle. Essais sur le réalisme au cinéma.

Tradução: Luiz Soares Júnior.

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