terça-feira, 9 de março de 2010

Jaime, Antonio Reis. Por Jean Louis Schefer

Em 1973, Antonio Reis consagra um filme à obra de desenhista de um camponês, Jaime Fernandes, rodado nos locais de seu isolamento psiquiátrico. Em primeiro lugar, sou atraído pela sutileza do propos, enfim distanciado desta odiosa apologia da loucura como fonte ou causa do talento, cujo modelo tem conhecido, de Artaud a Rodez, irresponsáveis e desastrosos elogios. Talvez consista nisto toda a dureza poética do filme: é um poema do sofrimento, da nitidez ( netteté) da solidão.

Trata-se de um filme sobre uma obra, sobre suas condições, sua incompreensível solidão? Sobre um mundo distante, a alma exilada que ronda em torno de um hospital construído como uma arena de touros; o detalhe da água, da pedra, da vegetação, as linhas das colinas que fecham este circo, onde todas as coisas forjam uma fortaleza de solidão?

Documento extremamente singular, catálogo, comentário da obra de desenho de Jaime. Mas do que exatamente se trata, e porque chamar isto de um filme? Como se desde o jato de água animado da fonte arredondada, centro extraordinariamente deslocado, como um signo de luxo ou de piedade neste hospital rude, pobre, expondo brutalmente a falta de dinheiro, a ausência de linguagem, de intimidade, de comunidade; como se todas as coisas fossem postas à distância deste espelho de água e do balbucio desta fonte. Se refletirmos bem, esta que jorra, recortada, retomando desesperadamente sua coluna de influxo é aqui a única imagem da vida, e a única palavra que jorra de um corpo. Aprisionada em seu espelho redondo, não está ao alcance da mão, frágil, intocável, perpétua e dura; ela fala, mas é como a haste líquida postada no centro desta arena trágica.
Trágica? Por que este rigor, esta inteligência sensível e implacável do que é uma coisa e do que é um homem feito coisa, ou seja, privado de todo uso de si mesmo e dos outros - dos homens ancorados, por exemplo, como galinhas sobre um poleiro de madeira, ao longo dos muros-? Por que Antonio Reis, que maneja como nenhum outro pintor hoje ao próximo e ao distante, a sombra e a luz ( e até mesmo num quarto de hospital, o encontro casual de um guarda-chuva e de uma máquina de costura), por que e em nome de que signo de desesperança e de vaidade do movimento e das aparências, por que ele nos mostra a água? Trata-se de uma coisa que, tal como este coração gélido e este centro líquido através do qual o Sigismundo de Calderón, aprisionado em sua torre, transforma na metáfora de seu sofrimento e de seu desespero por não ser adorável?

O que significa então este mundo percorrido em compasso, este passeio dos olhos sobre a linha das colinas, a vegetação espessa, a água do riacho que corre sobre as pedras, o refeitório camponês, o dormitório silencioso e que se retrai sobre uma série de desenhos de Jaime? Cabeças vagamente aparentadas a perfis de Brauner, gatos ou animais, arredondados, dorsos musculosos, pêlos serrados como bolotas de lã, cuja silhueta faz aparecer sobre suas cabeças a imobilidade e a fixidez de um olho egípcio.

Um filme de Antonio Reis? Admirável poema, feito de deslocamentos de imagens e de coisas, deslocamentos efetuados sobre o que resta. O que resta não é a causa do que parece concluir a obra desenhada de Jaime. Todas as coisas mostradas são como pedras semeadas por uma criança perdida, não os marcos de seu caminho de retorno mas os signos traçados, semeados de seu abandono. E até mesmo o olho vívido, móvel, úmido da cabra, enclausurada numa espécie de tricot feito da lã de seus pêlos. Extraordinária inteligência do desespero e do quimérico que presidem aos jogos das crianças. É o que Paracelsus nomeava a prima matéria: “Ela é visível e invisível, e as crianças jogam com ela na rua”.
O que constitui este filme é coisa muito distinta de uma memória ou progressão de imagens, ou mesmo este perpétuo desenvolvimento de encadeamentos fatais de ações humanas que conduzem ao túmulo, às bordas de um abismo ou aos limites de uma terra habitada onde cessam ( em todo filme) as ações, as palavras e até mesmo a possibilidade de sugestão das imagens.
O que este filme mostra com força ( a força das coisas conjuntas, como paisagem, interior, décor) não é nem um processo, nem uma explicação ou denunciação do sistema carcerário do hospital; as coisas que se sucedem como imagens ( o plano vazio, a fonte, a taça e sua colher, a máquina de costura, o guarda-chuva, os homens e suas sombras,a pobreza do hospital e da paisagem) são encadeadas sem causa. Todas constituem coisas sem ação; isoladas como objetos encontrados ao acaso; se os filme as encadeia ou enumera, elas se adicionam em uma soma misteriosa da qual não resultam estes corpos negros, cerrados, duros, compactos, e no entanto de uma armação tecida sem falhas, os estranhos animais de Jaime, ou gatos advindos de um outro mundo, cujas fronteiras eles parecem guardar.
Pois é preciso velar por. O que faz aqui Antonio Reis? Ele não explica uma obra; ele ilumina um pouco mais, por uma extraordinária contenção de seu tema ( algo assim como um deserto) a magia e ambigüidade do cinema. Capto rapidamente que esta câmera que estreita o real possui, no próprio movimento de seu cadre, na mobilidade flutuante de seus travellings em diagonal ( os corpos das pedras, o fluxo da água, o roçar das ervas), neste círculo insensível que limita este mundo a um curto horizonte, delineando-se sinuoso sobre o dorso das colinas, integrado ao jato de água tremulante da fonte como à ponta de um compasso; compreendo que esta câmera se apossa dos corpos das coisas em seu abandono de objetos; a espécie de planalto desértico, de que estes corpos constituem a paisagem e a população, é um mundo do qual cada parte perdeu seu corpo; um mundo de metáforas errantes.
Não concordo que Antonio Reis filme ou fotografe naturezas-mortas (e, no entanto, ele o faz melhor que ninguém), mas que todas as partes deste mundo estão ao mesmo tempo isoladas e solidárias: que estes extraordinários portraits de gatos foram também passagens de silhuetas estendidas sobre os lençóis do hospital lançados ao vento, que estes animais ou estes homens, guardiões de um mundo desconhecido- e desconhecido deles mesmos- eram também estes dois ou três homens em pé, dançando num pé apoiado sobre o outro, alinhados sobre um banco de madeira como galinhas sobre um poleiro, e cujas sombras dançavam, balouçavam, se imprimiam apenas por um instante como um afresco provisório sobre a superfície côncava do árido branco do muro do hospital. O poleiro das sombras, a única galeria desta arena no centro da qual apenas um jorro de água se eleva perpetuamente, se estira para o céu e vacila indefinidamente, como o único relógio no coração deste mundo feito de círculos acumulados e sobre os muros sobre os quais estes se aninham, como as sombras dos homens arqueados ou suas figuras imóveis, os magníficos guardiões do Desconhecido a céu aberto.
Também não faço idéia de como esta pura obra-prima perpassa pelos objetos como um sopro desenfreado de viração; o que sabemos desde a infância: as coisas, os objetos, as distâncias que os separam não são feitos para nós. Estes corpos abandonados são metáforas vagabundas: foram o corpo de nossa solidão.


Jean Louis Schefer, Revista Cinémathèque, número 13, páginas 4-7. Primavera de 1998.
Tradução: Luiz Soares Júnior

Um comentário:

Duarte Albuquerque disse...

O edifício onde o filme foi rodado (assim como dois filmes de César Monteiro), então muito degradado, é hoje, depois de restaurado, um MUSEU,
O PAVILHÃO DE SEGURANÇA, um dos raríssimos edifícios panópticos do mundo, e vanguardista quanto aos arredondamentos sistemáticos.

Está aberto ao público todos os sábados à tarde, em Lisboa, no Hospital Miguel Bombarda, Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa.

É surpreendente, e acolhe diverso material clínico, fotografias do princípio do séc XX e uma excelente colecção de Outsider Art de doentes.