sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Os quatro reinos, Jean Douchet

Já que se trata do assunto profundo de Two weeks in another town, falemos de cinema. "Todo grande filme é um documentário", escrevia Éric Rohmer. Ao dizer isso, ele entendia que uma obra só haure sua força na verdade da descrição dos personagens e do meio: que esta deve nos informar perfeitamente sobre o funcionamento do meio, com o fito de nos permitir aprender tudo sobre os personagens. O último filme de Minnelli responde a esta exigência; ele pinta fielmente a perplexidade da fauna hollywoodiana, arrancada a seu meio natural, que deve se dobrar às duras leis da evolução econômica e manter , em um cenário ( décor) totalmente distinto ( "in another town") uma forma de viver, de sentir, de sonhar, assim como de conceber e realizar estes filmes, dos quais esta não pode, para sua infelicidade e sua alienação, se desligar. Two weeks é ao mesmo tempo um testemunho sobre um fenômeno bem atual do cinema americano ( vide nosso recente número), e sua crítica. Mas há ainda mais. O termo documentário evoca imediatamente estes filmes que registram objetivamente o processo da vida: vida inorgânica dos minerais, orgânica dos vegetais, animais, homens; e também esta "vida"mecânica das máquinas, fabricações humanas. O que importa aqui é a idéia de transformação da passagem de um estado A a um estado B, em uma palavra: de evolução. A noção de evolução ( bem mais adequada que a de movimento, muito vaga, nada específica- a dança- e causa de inúmeras aberrações: cinema "puro", cinema-montagem) me parece responder à questão da natureza fundamental do cinema. Pois, de qualquer forma que visemos a este, vemos neste um único objeto: a vida. Captá-la em sua fonte, exprimir seus frêmitos, seguir seu curso, captá-la no momento de sua expiração, tal é a única e nobre missão do documentário. Esta exige o respeito, a humildade, a compreensão íntima e quase amorosa da coisa olhada. Ela condena todas as especulações da "coisa que olha"- o homem que manipula a câmera e a película, e opõe uma tela à tela- , que nega o Outro para melhor se afirmar às suas custas.
Resta-nos concluir, portanto, que documentário e cinema são uma única coisa.Onde chegamos com isso? A esta constatação: um grande filme, seja ele do domínio da mais pura ficção, não pode prescindir deste aspecto documentário inerente à arte cinematográfica. Digo inerente, pois a solidez documentária ( verificada de forma diversa pelas ciências) de obras como A Odisséia, a Bíblia, os romances da Távola Redonda, ou mesmo As Mil e uma noites e Don Quixote- e é intencional que eu só cite obras com heróis e ações míticas- é a mais segura garantia de sua repercussão universal, portanto de sua verdade, se a universalidade pode ser considerada como o melhor critério do valor estético. Mas, no entanto, quem não vê a diferença? A literatura, que deve descrever o real, transpõe para melhor restituir, e força o artista a inventar a metáfora ( vide O celulóide e o mármore, de Rohmer). O cinema registra o real que lhe é oferecido a olhar, mas então ele obriga o artista a se submeter inteiramente à própria coisa ( la chose elle-même) e a seu devir: dele, ela simplesmente exige que o artista reencontre, de uma forma imediata e intuitiva, a seiva que lhe forjou a casca. O milagre do cinema é que a câmera filma esta corrente misteriosa, este movimento interior que conduziu a coisa à sua aparência, a sua casca, ao mesmo tempo em que esta casca parecia constituir um limite intransponível à investigação. Consequência: filmar o homem objetivamente implica que o cineasta capte simultaneamente todas as etapas da evolução que conduziram até o homem. Todo grande filme é igualmente um documentário na medida em que ele constitui, em conjunto, todos os documentários possíveis.
Two weeks o prova. Antes de tudo, um documentário sobre o homem. Ao mesmo tempo sobre a vida de uma sociedade ( que se reflete na vida de um grupo particular, pintado justamente em suas particularidades), e sobre a vida da máquina social, seu funcionamento, sua mecânica, e sobre a obra que, pelo trabalho, esta máquina constrange o homem , em luta com ela, a produzir. Mas também um documentário animal, de tal forma é verdadeiro que tudo, no comportamento físico do homem, este animal superior ( e esta espécie de documentário só pode ser concernida por este comportamento físico), remete ao animal. ( E isto de tal maneira que não há grande filme, em nosso conhecimento, que não possa ser totalmente transposto para o reino animal). Vejamos Two weeks: desde o velho leão decaído que é Edward G. Robinson, ou a leoa furiosa, sua mulher, passando pela flexível beleza da pantera que tem prazer em "despedaçar" ( déchirer), Cyd Charisse, todos, nesta selva, lutam para conservar intacta sua parcela de poder, de território. Trata-se, com efeito, nos olhares, atitudes, gestos, nos impulsos e nos ardis dos personagens, de reações animais. Que a noção de território se revele, ao final das contas, quimérica e ilusória, isso faz parte da dimensão superior do homem: é seu drama. O homem, por intermédio aqui do herói, deve aprender a aceitar sua evolução ( e a evolução), portanto se libertar de todas as etapas anteriores, a mais próxima em particular, a animal, caracterizada pela vontade de conquista e de possessão. Transposição também no domínio vegetal: os fenômenos da vida das plantas encontram sua correspondência no homem ( fora do que chamamos vida "vegetativa"): no domínio da afetividade. Uma afetividade que, em Minnelli, depende do meio e se nutre deste: vejamos simplesmente todos estes seres desenraizados de Hollywood buscando permanecer enraizados no meio do cinema. Enfim, parece-me até inútil mostrar, de tal forma o cenário como projeção dos personagens tem importância aqui, como o documentário também incidirá sobre o lado mineral do homem, chumbo ou ouro, ferro ou madeira apodrecida. Que os personagens de Two weeks prefiram a "inconsistência" de seu décor "de cinema", telas pintadas e cartolina, à pedra suntuosamente barroca da Cidade Eterna ( este barroco mostrado por Minnelli como o último estágio de evolução desta pedra: seu estilhaçamento, a própria imagem do violento movimento interior que agita os personagens), manifesta em demasia a fraqueza destes personagens, aparentemente mascarada por sua crueldade: eles só se apóiam de forma tão desesperada sobre um mundo imaginário, sem arrimos. Disso advém necessariamente que, atingido o topo de sua evolução, o artista cessa de condensar temporalmente estas diversas etapas da evolução, para dispô-las no espaço. Os quatro reinos se avizinham então, o homem evoluindo ( Tabu, Hatari!, O rio sagrado), ou aprendendo a evoluir ( O tigre de Bengala, Intendente Sansho, Herança da carne) harmoniosamente, assumindo enfim esta superioridade que lhe é tão difícil demonstrar no início. Assim, se encontra abordado o problema temporal da evolução: um passado surgido em um presente, um presente que se impõe ao passado ( é o caso de Two weeks). De sua luta, depende um futuro que seja ou não liberto de entraves, e que permita ao homem desabrochar.
Este conflito, no nível de um roteiro, de um indivíduo, engaja o destino da humanidade. Se se trata, para o herói, de se libertar de tudo aquilo que bloqueia a sua plena realização, trata-se em paralelo para a sociedade de denunciar uma mentalidade rígida que entrava o seu progresso; e, para a espécie, de se desligar de etapas anteriores, das quais ela emergiu. Assim, Kirk Douglas, ao mesmo tempo em que exorciza seu passado, denuncia uma sociedade ( tanto aquela que fabrica o produto cinematográfico quanto aquela que o consome) ligada a uma concepção apodrecida do homem e da arte, e assim oferece uma espécie, por seu "sacrifício", de abertura à humanidade. Evidentemente, é necessária uma solução espacial a este problema temporal da evolução. O movimento que, no cinema,por intermédio do trajeto e do itinerário, permite que o processo de transformação dos seres e das coisas "evolua" diante de nossos olhos, estaca sempre na fixidez. Não basta que Kirk Douglas reintroduza o movimento ( um movimento barroco acordado a Roma, que ele é o único que soube penetrar) na mise-en-scéne do filme, que ele retoma no meio da filmagem, para resolver seu próprio problema. Isto constitui apenas um paliativo. É preciso ainda que ele "reflua" ( remonte) completamente para dentro de si mesmo, que vá aos confins desta fixidez que o obceca ( e da qual sua esposa é menos o objeto que o pretexto, a fixação); é-lhe necessário redescobrir sua verdadeira aspiração: a recusa em viver, a morte. Ele atinge este limite quando sua mulher, no decurso da reunião de drogados, se deixando "levar" para melhor "levar", o abandona. Nada pode liberá-lo agora de seu passado e da tentação da imobilidade que sua louca corrida de carro, movimento excessivo, fluxo de vida através do qual o sonho pernicioso será conduzido e destruído. De agora em diante mestre do movimento, ele completa seu itinerário de Hollywood a Hollywood e funde seu devir- em sua trilha própria- com o devir dos outros ( o jovem ator), que é o nosso. A ninguém mais surpreenderá que este cinema documentário ( o único que amamos) entoe, para além de seus tormentos, o elogio da loucura. Este é o destino do homem hoje: se libertar das aquisições do indivíduo, da sociedade, da própria espécie, a fim de afrontar um futuro que só nos parece de tal maneira angustiante por conter ( talvez) as mais espantosas promessas quanto à evolução do homem. Todo grande filme é este documentário sobre a coragem e a grandeza da loucura, da sabedoria humana.


Jean Douchet, Cahiers du Cinéma 154, abril 1964.

Tradução: Luiz Soares Júnior.

Um comentário:

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Muito legal o seu blog, Júnior! Cheguei nele procurando umas informações sobre o Festim Diabólico, que eu adoro! Eu amo cinema, mas sou mais diletante do que propriamente crítica - me formei em Letras. dá uma olhada no meu blog:
http://www.ofilmequeviontem.blogspot.com/
Até mais!
Dani