Preminger brada a todos os ventos: sou um cineasta realista. Piada? Não. Se ele roda um filme inteiro numa pequena cidade do Michigan, se filma em Chicago, Londres, no Canadá, em Saint-Tropé, em Israel, é para gozar de uma maior liberdade que em Hollywood? Pra encontrar um novo meio de publicidade, que vai desbancar todos os records atingidos até então? Creio que as razões essenciais são outras: em primeiro lugar,a redução do orçamento. Anatomy, aliás, foi filmado à incrível velocidade de quatro minutos de filme por dia. Depois, Preminger, móvel como sua câmera, adora as viagens. Ele tem necessidade de mudar de cenários, de abandonar os sunlights, outrora essenciais à sua arte, a fim de poder se renovar. A arte evidente mas indizível de Preminger necessita de um contato direto com a ordem da razão, um “botar os pés no chão”, um tema, um cadre bem precisos. Tanto melhor se as coerções realistas se opõem ao estilo clássico de Preminger , provocando de parte a parte algumas rupturas de tom. Há dez anos, entregue a si mesmo, Preminger não teria rodado cenas crepusculares sem iluminação nenhuma, não teria sublinhado os detalhes de nossa vida cotidiana, ele teria orientado a interpretação de Lee Remick para uma fascinação bem artificial, como a de Gene Tierney, e não em função de uma ótica realista. Aqui, em Anatomia de um crime, ganhamos nós, pois temos ao mesmo tempo a fascinação e o realismo mais cru.
Admirável é o realismo da interpretação dos atores secundários. Critica-se com freqüência aos Cahiers não falar dos atores. Pois bem, falemos! Dos vinte e cinco que figuram nos créditos, não há um ao qual se possa fazer a menor crítica. Eu falo de realismo. Mas, me refutem vocês, quase todos os comparsas do filme são estereotipados, inclusive James Stewart. Alguns gestos inclusive são frequentemente recorrentes nele; nunca tem fósforos, etc. É que a composição não exclui o realismo, este se situa ao nível do resultado, não da abordagem. Ela acentua a verossimilhança: a maioria dos personagens que se exprimem em público se incumbem de inventar uma atitude particular. É interessante notar as forçosas repetições destas atitudes e suas diferenças de um personagem a outro. A passagem detrás da barra de testemunhas evidencia estas diferenças: Paquette, empregado do bistrô que tem o hábito de enxugar os copos toda noite e que não quer falar, não sabe o que fazer com as mãos. Ao contrário do psiquiatra, o doutor Smith, muito descontraído, que enxuga seus óculos com este gesto largo e contínuo, tão típico em intelectuais americanos. Notemos aliás, em relação a estes personagens, a importância das aparências, do figurino em Preminger. O’Connel se decepciona ao ver um psiquiatra jovem e imberbe, portando um nome americano ao invés de um germânico ou sei lá o que, que foi imposto ao júri. Esta filosofia do figurino, a que devemos os mais belos toques humorísticos do filme, é a mesma de Carlyle, a quem a firma Preminger presta uma discreta homenagem. Preminger, como Carlyle sugeria que todo escritor fizesse, “looks through the shows of things, into things themselves». Mencionemos igualmente a espantosa complexidade de relações entre o advogado e seu ajudante Dancer, no papel do qual George C. Scott nos oferece uma composição de primeiro nível.
O personagem do velho bêbado que rouba e bebe uma centena de litros de uísque nos mostra que todos estes cúmplices se definem mais ou menos como personagens negativos. Sobre eles, gentil mas firmemente, Otto crítico, Otto zombador. Enquanto que, com o personagem de Paul Biegler ( James Stewart), Preminger “propõe”. É o herói positivo do filme. James Stewart, sublime, encontra aqui o papel da sua carreira. Apenas ele é o tema do filme; possui a idade, os modos, o humor de Preminger. E creio que devamos considerar Anatomy of a Murder como uma obra autobiográfica. De Preminger, encontramos a alternância entre a sisudez e o diletantismo, alternância que acaba por tornar-se identidade. Se o nosso cineasta, (ops! Perdão), nosso advogado é mais forte que os outros, se ele ganha o jogo, não é porque ele não leva a sério sua profissão, já que passa a maior parte do tempo pescando, tocando jazz. Ele ama a boa cozinha, tem por auxiliar um velho alcoólatra que toma iniciativas descabidas mas bem frutíferas. Por seu jogo, por sua forma de agir, Stewart-Preminger nos mostra bem esta confusão de valores. Ele é o mais forte porque está mergulhado na vida mais concreta possível.
Admirável é o realismo da interpretação dos atores secundários. Critica-se com freqüência aos Cahiers não falar dos atores. Pois bem, falemos! Dos vinte e cinco que figuram nos créditos, não há um ao qual se possa fazer a menor crítica. Eu falo de realismo. Mas, me refutem vocês, quase todos os comparsas do filme são estereotipados, inclusive James Stewart. Alguns gestos inclusive são frequentemente recorrentes nele; nunca tem fósforos, etc. É que a composição não exclui o realismo, este se situa ao nível do resultado, não da abordagem. Ela acentua a verossimilhança: a maioria dos personagens que se exprimem em público se incumbem de inventar uma atitude particular. É interessante notar as forçosas repetições destas atitudes e suas diferenças de um personagem a outro. A passagem detrás da barra de testemunhas evidencia estas diferenças: Paquette, empregado do bistrô que tem o hábito de enxugar os copos toda noite e que não quer falar, não sabe o que fazer com as mãos. Ao contrário do psiquiatra, o doutor Smith, muito descontraído, que enxuga seus óculos com este gesto largo e contínuo, tão típico em intelectuais americanos. Notemos aliás, em relação a estes personagens, a importância das aparências, do figurino em Preminger. O’Connel se decepciona ao ver um psiquiatra jovem e imberbe, portando um nome americano ao invés de um germânico ou sei lá o que, que foi imposto ao júri. Esta filosofia do figurino, a que devemos os mais belos toques humorísticos do filme, é a mesma de Carlyle, a quem a firma Preminger presta uma discreta homenagem. Preminger, como Carlyle sugeria que todo escritor fizesse, “looks through the shows of things, into things themselves». Mencionemos igualmente a espantosa complexidade de relações entre o advogado e seu ajudante Dancer, no papel do qual George C. Scott nos oferece uma composição de primeiro nível.
O personagem do velho bêbado que rouba e bebe uma centena de litros de uísque nos mostra que todos estes cúmplices se definem mais ou menos como personagens negativos. Sobre eles, gentil mas firmemente, Otto crítico, Otto zombador. Enquanto que, com o personagem de Paul Biegler ( James Stewart), Preminger “propõe”. É o herói positivo do filme. James Stewart, sublime, encontra aqui o papel da sua carreira. Apenas ele é o tema do filme; possui a idade, os modos, o humor de Preminger. E creio que devamos considerar Anatomy of a Murder como uma obra autobiográfica. De Preminger, encontramos a alternância entre a sisudez e o diletantismo, alternância que acaba por tornar-se identidade. Se o nosso cineasta, (ops! Perdão), nosso advogado é mais forte que os outros, se ele ganha o jogo, não é porque ele não leva a sério sua profissão, já que passa a maior parte do tempo pescando, tocando jazz. Ele ama a boa cozinha, tem por auxiliar um velho alcoólatra que toma iniciativas descabidas mas bem frutíferas. Por seu jogo, por sua forma de agir, Stewart-Preminger nos mostra bem esta confusão de valores. Ele é o mais forte porque está mergulhado na vida mais concreta possível.
É de qualquer maneira uma definição do honnête homme1 do século 20 que Preminger nos propõe. Alguns a poderiam qualificar de cínica. O maquiavélico Biegler não nos mostra um brio inacreditável na astúcia? Tão mais inacreditável por não ser especialmente enfatizado; brio que temos a surpresa de descobrir em seu estado natural, sem comentário, ao mesmo tempo que o espectador do processo. É preciso vê-lo interromper o interrogatório de Laura Manion sob falacioso pretexto de que Dancer se interpõe fisicamente entre a testemunha e ele para nos darmos conta de sua esperteza. Mas a astúcia levada a tal ponto denota uma inteligência muito grande para não ignorar a sensibilidade. De todos os grandes cineastas, Preminger é talvez um dos mais cruéis, dos mais lúcidos, mas certamente um dos menos malvados. Os cínicos são pessoas necessárias. “Sobre um tema sério reencontramos aqui a mesma vontade de mesclar o divertido ao trágico que em A Grande Guerra, e a mesma ambigüidade sobre a significação do filme, que parece afeito antes de tudo para divertir e seduzir. Sem falar das insolências verbais que valeram, ao que parece, alguns incômodos ao realizador, e que se limitam a detalhes escabrosos e de mau-gosto, tais como as que se encontram em todos os processos, mas que não nos parecia indispensável reproduzir in-extenso em um filme de ficção. A menos de que se trate, neste caso, de habilidade e intenções publicitárias duvidosas”. Confesso não compreender esta crítica, expressa por Jean-Louis Tallenay no Radio-Télevision Cinema. Estas intenções publicitárias, evidentes, são ao mesmo tempo parte integrante do filme e absolutamente estranhas a ele: elas zombam daqueles que se chocam de escutar vinte vezes as palavras espermatogênese, slip, etc Estas diversas ambigüidades, que encontramos também em Hawks e Hitchcock, testemunham um humor superior. No momento em que o espectador pretende julgar um filme em função de critérios superficiais e extra-cinematográficos, é ele que passa a ser julgado pelo filme. O que é realmente cômico é igualmente profundo e sério. Não precisamos criticar em Preminger seu hábito do jogo duplo. É o público que cria a baixeza e enobrece o filme. Preminger é um verdadeiro idealista, que se opõe a estes falsos idealistas demagogos, marxistas ou puritanos, insinceros ao ponto de alijar da matéria de suas obras tudo o que lhes parece estranho a elas. Face a esta hipocrisia que bem rapidamente se revelou estéril, já que se funda sobre uma condenação da realidade em nome de um suposto “bom-gosto” que nosso tempo teve o mérito de sacrificar a valores superiores, Preminger nos propõe a inocência sob as aparências da culpabilidade. Ao puro, tudo é puro. Luc Moullet, Cahiers du Cinéma, número 101, Novembro 1959
Nota: 1. Gentleman, cultivo simples e moderado da sensibilidade, oposto, na tradição literária e cultural francesa, ao homme précieux ( Préciosité), artificial e pedante. Tradução: Luiz Soares Júnior.
Nota: 1. Gentleman, cultivo simples e moderado da sensibilidade, oposto, na tradição literária e cultural francesa, ao homme précieux ( Préciosité), artificial e pedante. Tradução: Luiz Soares Júnior.
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