quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Nascimento de uma nação, David Griffith




Primeira epopéia americana, primeiro filme longa-metragem “ realmente longo” rodado nos Estados Unidos, Nascimento de uma nação é considerado pela maioria dos historiadores como uma data capital para a evolução do espetáculo cinematográfico, ao qual ele conferiu um status de nobreza.Tudo isto graças à originalidade e riqueza de seus procedimentos narrativos, ao controle estético que o metteur-em-scéne exerceu pessoalmente sobre uma vastíssima matéria, graças também- elemento não negligenciável- ao sucesso colossal que o filme teve. Como fator determinante para o reconhecimento mundial dos méritos do longa-metragem, pensamos que Cabiria, filmado um ano antes de Nascimento de uma nação, teve um papel mais decisivo. Mas é enquanto obra artística que a contribuição e preeminência de Nascimento são incontestáveis e incontestados.
No plano material, apesar do filme contar com um bom orçamento, foi grande a habilidade de Griffith em dar a ilusão de que se tratava de uma superprodução. Depois de numerosas semanas de ensaios, a filmagem propriamente dita dura nove semanas ( a partir de 4-7-1914) , e sabe-se hoje que o número de figurantes não ultrapassou 500 ( Griffith falara, à época do lançamento, em 30 000 a 35 000 figurantes).O orçamento passou de 40 000 a 110 000 dólares numa atmosfera regada a jogos de poker e ceticismo exterior. Artesanal em sua concepção, financiamento e realização, o projeto de Nascimento de uma nação será, no entanto, altamente profissional em seu lançamento e publicidade. Lembremos que o filme faturou dezenas de milhões de dólares, e que o escândalo (absolutamente compreensível) causado por ele foi muito útil à sua “carreira”.
Sua principal originalidade estética consiste na tentativa de imbricação permanente da história individual e da História coletiva. Todos os colaboradores de Griffith mencionaram até que ponto ele estava literalmente absorvido por obras históricas, documentos, fotos concernentes a esta época da História americana. Mostrando personagens representativos e significativos criados pelo roteiro ( Austin Stoneman, equivalente de Thaddeus Stevens) ou verdadeiros personagens históricos ( Lincoln, Lee, Grant, etc), interpretados em um espírito de fidelidade absoluta, entrecortando a ação propriamente dita de “tableaux d’histoire”, reconstituídos com o máximo de veracidade ( assinatura por Lincoln da libertação de 75 000 voluntários, rendição de Lee a Grant, assassinato de Lincoln no Teatro Ford, etc), Griffith consegue perfeitamente o que pretendia, durante a primeira parte do filme ( que termina com a temporada de Ben Cameron no hospital). Até aí, a solenidade dos “tableaux” se alia admiravelmente ao ritmo extremamente vívido e “bem sustentado “ ( très nourri) que os eventos impõem ao desenvolvimento dos destinos individuais, em particular através do entrecruzamento dos membros, civis e militares, das duas famílias Cameron e Stoneman.
Depois, na segunda parte, que trata da reconstrução e dos conflitos raciais no Sul, a própria substância do filme se transforma: não se trata mais de história, individual ou coletiva, mas de uma espécie de devaneio ( rêverie) paranóico e idílico, sobre a unidade da América, devaneio desenvolvido visualmente a partir do núcleo privilegiado e adorado constituído pelo próprio Sul, a Carolina do Sul, a cidade de Piemont, a rua onde se encontra a casa dos Cameron, a própria casa e enfim o hall desta casa, que possuem na imagem uma importância quantitativamente desmesurada, devido ao número de repetições de planos passados nestes lugares, repetições estas que os valorizam como nichos de um leitmotiv cada vez mais obsessivo. A união do Norte e do Sul é selada pela rejeição de elementos considerados como estrangeiros à identidade americana, no caso os Negros. Os Negros, representados em sua maioria por Brancos pintados, representam, na economia ideológica do filme ( retirando-se aqui do termo ideologia todo valor científico ou histórico), sua própria raça, mas também- e mais amplamente- todos os elementos suscetíveis de perverter do exterior a identidade e unidade Americanas. O conteúdo político desta parte será considerado, conforme o encaremos com maior ou menor seriedade, como prejudicial ou nulo, até mesmo como absurdo, em relação à evolução real da História americana. Mas é também nesta segunda parte que o artista Griffith se revela de forma mais brilhante e pessoal. Especialmente nesta impetuosidade, neste “açodamento” da ação ao longo do último terço do filme, embasado por um lado na montagem estritamente paralela das ações e na separação triangular de sequências situadas em locais diferentes, e por outro lado na exploração lírica e máxima de certas convenções do melodrama, Nascimento de uma nação triunfa enquanto espetáculo dramático e obra de arte. Ao fim, quando a cavalgada, plásticamente sublime, do Klan venceu o perigo dos aventureiros negros disseminados pela cidade, acabou com o cerco sofrido pelos Cameron em sua cabana, libertou Elsie das mãos de seus carrascos, a narração desemboca em uma admirável fusão espaço-temporal de todos os seus componentes, até então triste e dramaticamente separados. Atinge igualmente uma apoteose lírica onde o público, por sua participação emocional, tornou-se parte integrante da obra. É o triunfo do suspense ( na narrativa), do “fôlego cortado” ( no espectador), das boas causas ( na moral). Uma moral idealizante e sentimental, angelical por assim dizer, mas à qual ninguém, nesta etapa da ação, tem a coragem de renegar, uma vez que o amor, a paz e a unidade reinam sobre tudo. Todas estas figuras “positivas”, no plano dramático e visual do espetáculo cinematográfico, serão utilizadas durante mais de cinqüenta anos pelos cineastas do mundo inteiro. Elas existiam num estado embrionário nos inumeráveis curtas-metragens de Griffith ( os quais muitos evocam a Guerra de Secessão). Testemunham, em Nascimento de uma nação, uma amplitude, uma capacidade de síntese e adesão sem iguais para a época.
Jacques Lourcelles, Dicionário de Filmes
Tradução: Luiz Soares Júnior.

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