quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Pocilga, Pier Paolo Pasolini




Esta nova “máquina de sentido” é o pôr em obra de um jogo de palavras muito simples: as palavras corpos e porcos entretém uma ligação anagramática , duas distribuições diferentes das mesmas letras, de uma mesma Letra ( veremos qual é), assim como Pocilga se coloca como a dupla narrativa de um mesmo evento.
1. O que há de comum – tirando as letras- entre Porcos e Corpos? São objetos de prazer: os corpos são feitos para serem amados e os porcos devorados. Mas sob uma condição: que eles sejam, por esta razão, desprezados. Sobretudo se são - como é o caso aqui- inteiramente votados ao prazer, “prostituídos”: nenhuma parte do corpo que não seja (mais ou menos) erógena, nenhuma parte do corpo que não seja ( mais ou menos) comestível. Reconhecemos aí a moral cristã, que faz do ressentimento a condição do prazer, tela de fundo de toda obra pasoliniana. Corpos e porcos serão, portanto, objetos de uma mesma ocultação, de uma única depreciação: escondidos, negados, humilhados, censurados. Refrão conhecido demais para que nos demoremos nele.

2. Oras, em Pocilga, um jovem, ao invés de amar um corpo, devora-os; um outro, ao invés de devorar os porcos, ama-os. A razão disso é que eles se enganaram de palavra; logo, de filme. Sua transgressão é em primeiro lugar o resultado fortuito de uma inversão dos termos, de uma má leitura, de um erro de distribuição, dos quais Pasolini assume todas as conseqüências, atento ao nascimento obrigatório de ( ao menos) um sentido. O escândalo não está tanto na gravidade ou no horror dos temas abordados, mas em que eles(o canibalismo, a zoofilia, ) tenham sido suscitados sem necessidade , por jogo.

3. “ Eu disse: Deus, se soubesse, seria um porco. Aquele que ( suponho que, no momento, ele estivesse mal lavado, despenteado) se imbuísse desta idéia até os seus limites , o que teria de humano? Para além de tudo, distante e ainda mais distante, o próprio sujeito em êxtase, à beira de um vazio. E agora? Tremo."( Georges Battaille).

4. Condenado e prestes a morrer, Clementi, em um momento magnífico, diz: “Matei meu pai, comi carne humana; tremo de alegria”. Aliás, o pai de Léaud voluntariamente se compara a um porco. Se aceitarmos ver por detrás dos Corpos e dos Porcos a imagem única do Pai, os dois lados da alegoria se iluminam um pouco, mas em sentido inverso. No primeiro, não é interdito a ninguém ver no personagem de Clementi o Cristo se recusando a ser o filho de Deus: ao invés de se oferecer em repasto aos fiéis ( eucaristia), é ele quem come os outros ( inclusive alguns discípulos). Estranha reconciliação entre o Crucificado e Dionísius. À morte do Pai corresponde a morte do Logos, daí o silêncio de um filme sem Palavra. O logos, os discursos, a logorréia triunfam, ao contrário, no filme de Léaud; é que, por seu amor aos porcos, Léaud afirma sua submissão ao pai ( nazista). Também ele será devorado.

Serge Daney
Cahiers du Cinema 217, novembro 1969.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

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