Nouvelle vague ou o retorno de Godard sobre os espaços de uma história. Delon e seu duplo em busca de sua identidade. Eu sou um Outro. Em Cannes e em qualquer outro lugar, a natureza, o amor, o dinheiro, o encontro, o poder. Elle est retrouvée- Quoi?- L’éternité.
Nouvelle vague. A ambição de Godard, confessada desde a primeira frase de Nouvelle vague ( ou Vague Nouvelle) pela voz-off de Alain Delon, consiste hoje em escrever uma narrativa. O que pressupõe uma história, uma trajetória, um modo de narração. Diz-se repetidamente que Godard era incapaz de contar uma história, de manter a distância da narrativa para se dar ao luxo de maravilhar-se. No entanto, talvez pela primeira vez, ele consegue ganhar a aposta da história. O enunciado é aliás bastante simples, límpido como a água do lago que Godard sente prazer em filmar. Basta reportarmo-nos ao texto de apresentação que Godard se deu ao trabalho de escrever ( Cahiers, 431-432). Ao termo de uma dupla prova, um homem e uma mulher se reconhecem. É uma história de duplos, de amor, de dinheiro, de ressurreição.
A verdadeira novidade de Nouvelle vague está no tempo. Tradicionalmente, o tempo de um filme de Godard é de natureza intensiva, ou seja, jamais está ligado ao desenrolar da fita da película durante a duração da projeção. É uma espécie de presente perpétuo que não acumula uma energia cronológica, que é indivisível em passado, presente e futuro. Pra usar uma metáfora matemática, trata-se de um tempo expresso “compreensivamente” ( en compréhenson), ou seja, de um único jorro, em uma única vez, e não em extensão, como o exigem as leis da narrativa; um tempo puramente espacial, que não remete à “curva” ( courbe) , à parábola de uma história preexistente ao filme. A inverso disto ou quase, Nouvelle vague nos dá a sensação de ser o primeiro filme de Godard escrito, narrado no passado simples, o tempo da narrativa. Faulkner e Chandler, abundantemente citados, são espécies de arquétipos ou modelos, os últimos grandes escritores do esplendor romanesco. Chandler nos chama a atenção, por sua presença virtual, para o fato de que toda história é policial, e que ela contém um mistério em si mesma. Quanto às frases de Faulkner, com freqüência fazem alusões ao ritmo das estações: “o versão estava desgovernado”, e sobretudo “Todos eles perfilados sobre o fundo do verde luxuriante do verão,e o abrasamento real do outono e a ruína do inverno, antes que a primavera florisse novamente” ( frase já citada em Grandeza e decadência de um pequeno comércio de cinema). É sem dúvida inspirado por esta referência que depois do primeiro afogamento, a primeira cisão da narrativa, Godard filma o desenrolar das estações, a pura e simples passagem do tempo. Alguns planos da Natureza- o sol, a chuva, o vento- bastam-lhe amplamente. Mas estes breves instantes de suspensão criam um verdadeiro corte na narrativa. E, ainda à maneira de Faulkner, Godard pode retomar a segunda onda ( vague) em curso ( Delon/Lennox já retornou, dois dias depois), e entrar por refração no segundo tempo da narrativa para melhor acompanhar a sua história. Em suma, reina em Nouvelle vague uma espécie de fatalidade trágica que não havíamos sentido desde, digamos, Pierrot le fou. Não é por nada. De onde vem esta história de um homem que retorna? Difícil de dizer. Sem dúvida, não diretamente da literatura, como a de Prénom Carmen, mesmo se pensarmos nas grande narrativas mitológicas de retorno à pátria, como a de Ulisses; da Bíblia tampouco, como em Je vous salue Marie, mesmo se evidentemente trata-se aqui de ressurreição e que não possamos nos impedir de entrever no personagem de Delon/Lennox uma figura crística. Mais simplesmente, creio que esta história vem do passado. Ela remonta lentamente à superfície para chegar até nós. Do passado do próprio Godard, que não hesita a se referir diretamente ao mundo de sua infância, mundo onde, como aqui, o dinheiro reinava sem divisões; mas também de um passado mais indefinível, atravessado por memórias do cinema.
A imagem se encontra no passado, portanto. É este mesmo o tema do filme. É a história de uma repetição, de uma imagem que volta, de uma imagem enterrada sob uma outra. A escolha de Delon é aliás intimamente ligada às reminiscências, às harmonias que ele contém e sugere. Durante o afogamento, é O sol por testemunha que ressurge e, face ao personagem de Roger Lennox ( o do primeiro tempo), não podemos deixar de pensar no garagista atordoado de Notre histoire ( Bertrand Blier), um filme que Godard confessa amar bastante. O sentimento ambivalente do já-vivido domina Nouvelle vague. “A lembrança é o único paraíso do qual não podemos ser expulsos. A lembrança é o único inferno ao qual estamos condenados”, diz uma voz um tanto fúnebre. Tudo é duplo como Delon e seu fantasma, que assombram a tela. A imagem é forçosamente virtual e alojada em uma outra imagem. Aliás, a idéia de uma segunda chance, da “onda” ( vague) que retorna e que seleciona não nos deixa de lembrar do roteiro de Vertigo. Um pouco à maneira de Scottie/Stewart, Alain Delon/Lennox busca fazer reviver uma imagem atualizando-a, tentando modificar-lhe o fim e a destinação. Mas em Hitchcock, o eterno retorno conduzia à morte, enquanto que em Godard, ele atinge, pelo contrágio, o renascimento. Os dados são relançados. O tempo sai de sua garagem para partir novamente, sobre novos trilhos. Foi dito aqui e ali que Nouvelle vague era um filme que exalava a tristeza e a melancolia. Se há um poeta elegíaco em Godard, em particular no simples sentimento da fuga do tempo, eu creio no entanto que Nouvelle vague é o filme do renascimento, da ressurreição da imagem.
Como todo filme de Godard, Nouvelle vague propõe uma interrogação sobre a imagem. Qual o seu status? Sua natureza? Qual o seu lugar? Em uma curta seqüência, Godard, pedagógico, nos propõe um exemplo. Uma imagem: A neve sobre a água= o silêncio sobre o silêncio. Este instantâneo joga ao menos sobre dois níveis. Primeiro enquanto definição da imagem e de sua manifestação. A imagem é, em Nouvelle vague, o que quer escapar à palavra, o que se situa para aquém do ato de nomeação, o que advém em um movimento de suspensão que precede ao nome ( era já este o sentido de Prénom Carmen). Res non verba, nos diz um intertítulo latino do filme- as coisas, não as palavras. “A imagem é autista. Eu quero dizer que ela não fala. A imagem não diz nada”, dizia Fernand Deligny ( Cahiers, número 428). Estas palavras do psiquiatra-filósofo, Godard poderia fazer suas. Pois a imagem em Nouvelle vague luta para existir mineral ou vegetativamente, como em um movimento de retorno às origens. Salvo que a origem aqui não se situa no antes, mas no depois, reconquistada pelo cinema hoje. Os planos de árvores ou cavalos, assim como os de Delon ou Domiziana Giordano, estão lá ontologicamente. Não significam, eles se impõem.
O segundo nível é aquele da metáfora, ou mais exatamente da alegoria. Mas Godard opera uma inversão da alegoria, enquanto figura literária. Não se trata da viagem do abstrato em direção ao concreto, para a encarnação, o sentido tradicional da imagem de que restavam, sem dúvida, traços nos equivalentes corpos-natureza de Je vous salue Marie; aqui, trata-se do contrário, de ir do concreto para o abstrato. A neve sobre a água produz o silêncio sobre o silêncio. A força de Nouvelle vague consiste em exprimir, através da imagem de existências, puras essências. O amor, o dinheiro, o encontro, a natureza, o poder. A imagem, seu segredo, é o segredo da própria essência. A árvore, diante da qual se encontram a condessa Torlato-Favrini e Roger Lennox, torna-se imediatamente a árvore do conhecimento (aquele diante do qual adquirimos conhecimento, dixit Godard em um raccourci cujo segredo ele detém).
Quanto à esfera do dinheiro, é a que detém o papel mais explícito. Todos estes personagens que gravitam em volutas e arabescos em torno do núcleo central do casal e da natureza não exprimem nada além da natureza abstrata do poder econômico. Este mundo das altas finanças, este concentrado da grande burguesia européia desempenha provavelmente aí um papel duplo. Não podemos nos impedir de ver, uma vez mais, a figuração literal do dinheiro que foi usado para fazer o filme. Contraditoriamente, pode-se dizer que o filme existe ao mesmo tempo graças ao dinheiro e contra o dinheiro, em um movimento simultâneo de corrupção e de construção. Mas a economia que preside à história tornou-se puramente abstrata. O dinheiro tornou-se invisível, não é nada além de um signo, e a economia nada além de linguagem. Não há mais valor de uso, mas apenas valor de troca em um movimento de pura circulação não figurativa.
A alegoria invertida é um deslocamento. E o deslocamento, sob a forma de um travelling lateral ou horizontal recorrentes, é a figura-mãe de Nouvelle vague, a que estrutura o filme à maneira de um leitmotiv ou de um refrão. Para parafrasear a frase de Rivarol, citada no filme, “Pois as paixões nos dilaceram, mas a sintaxe de Godard ( e do cinema) é incorruptível”. O que nos garante este instante de pura felicidade onde, em um duplo travelling invertido, Godard nos dá novamente uma definição instantânea do cinema. Luzes que se apagam e que se acendem. Positivo e negativo. O cinema como Noite Transfigurada. E é ainda o travelling que transmite o sentimento aquático da fluidez, o movimento do fluxo e do refluxo, da onda que vai e retorna. É provavelmente o que dá a Nouvelle vague seu caráter apaziguado, quase clássico, em todos os casos profundamente decantado, ao contrário de Soigne ta droite, filme em crise que expõe sobre a tela a profunda derrisão da imagem e sua incapacidade a existir ainda nos dias de hoje. Parece-me que Nouvelle vague inaugura um período de verdadeira maturidade, ao mesmo tempo em que assinala um novo começo na obra de Godard. Eis aí a segunda chance.
Thierry JousseCahiers du Cinéma, número 433, junho 1990.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Thierry JousseCahiers du Cinéma, número 433, junho 1990.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário