sábado, 17 de abril de 2010

Feuillade e seu duplo


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Vemos imediatamente o que liga Judex- que se inscreve naturalmente no mundo excessivamente reservado de Franju- à continuidade de uma obra de que começamos a conhecer as referências e os pontos de apoio, como este bestiário favorito de pombas e cães, estes malefícios noturnos e calmarias diurnas ( depois, o contrário), ou ainda esta criatura mediúnica assumida por Edith Scob desde La téte contre les murs, de filme em filme. Estabeleçamos antes que se trata em Judex do primeiro Franju “em repouso”( passado este Pleins feux, irrealizado), digamos, de reconciliação. É fácil constatar que toda sua obra gravita e se organiza a partir de duas linhas de força essenciais, igualmente líricas, mas uma corresponde a um impulso de insurreição, denunciador( Le Sang, Hotel, La tête, Thérèse), a outra a um movimento de nostalgia e de apaziguamento ( Le Grand Méliès), a primeira veia ligando-se à representação de um trágico-documentário ou transposto- mas presente, a outra procedendo antes de um olhar menos crispado que tenta unificar , por intermédio assumido da arte ou de uma reflexão sobre a arte, o passado ao presente. Em comum, uma atenção segura no sentido de preservar e enriquecer uma eficácia didática de observação pela contribuição de uma poética pessoal que refere, ao fim das contas, o lirismo da criação ao próprio movimento desta criação.
Nesta ordem de idéias, Judex parece uma variação nova do fundador da Cinemateca Francesa sobre o nascimento do cinema, uma meditação “romanceada” sobre Feuillade, completando a meditação documentária sobre Méliès; seja porque, em ambos os criadores, face a uma avant-garde que deve sua sobrevivência unicamente à História, se conciliavam as aspirações da arte popular e os germes do cinema moderno, “Le Grand Feuillade”, depois de “Le Grand Méliès”, constituíam ao mesmo tempo homenagem, análise e crítica que são apenas três formas de amor: a exaltação do realismo onírico do primeiro “prova” o cinema contra o onirismo realista do segundo ( e vice-versa), como a ficção persegue a realidade, como as atualidades reconstituídas do mágico Méliès julgavam e fundavam os marcos da autenticidade.
A atividade desacreditada do “remake” encontra portanto aqui uma justificação pouco comum. “É preciso recompensar os plagiadores”, repete Jean Renoir, sempre razoável; não que esta arte possa ser reduzida aos parâmetros da cópia e da imitação, pois nos encontramos justamente nos antípodas da fraude e da facilidade. Mas seria divertido imaginar o elogio sistemático da retomada ( reprise) , do elogio ou, segundo o caso, da traição, da apropriação, da contradição. Que um Logan “desvie” Pagnol em proveito próprio só depende de uma substituição, de qualquer forma legítima, de folclore. Mas entre A cadela e Scarlet Street, ou A besta humana e Human desire ( ou ainda entre The diary of a chambermaid e Le journal d’une femme de chambre), é com o decalque impossível, com o confronto entre dois universos inassimiláveis ( e que, no entanto, se roçam pela graça de um tema em comum, de um sub-reptício “a partir de”) que temos de lidar, cada um dando a mais justa medida , à sua maneira, da irredutível do outro; o jogo da restrição e da liberdade exposto à pureza mais imediatamente visível, mais reconhecível de seu próprio mecanismo. Mas Franju-Feuillade é ainda outra coisa. Seríamos tentados a dizer: como Picasso impondo a Courbet ou a Velásquez um imperioso renascimento, soberbo ( mesmo que às custas de uma violação), renascimento que os destina a uma modernidade conquistada pela segunda vez.
Violação e renascimento, mas também luta singular entre dois saberes totalitários, um jogo de “quem perde ganha” invertido sem cessar que confirma uma certeza: os grandes pintores foram ( são ainda) os primeiros depositários de suas construções teóricas. Eles são raramente inocentes- ou o são em demasia, mas então se distanciam da pintura para reencontrá-la em seu além ( Van Gogh) ou em seu aquém ( Rousseau). A fusão contemporânea entre o saber e a inocência que assombra o artista se oculta em algum lugar no secreto território das origens. Em Giotto, em Monteverdi. Com Feuillade também.
Retorno às fontes, mas também através daquilo pelo qual as fontes permanecem vivas: presentes. Compreende-se que um único espírito está em julgamento aqui ( un esprit seul est en cause), e que Franju tenha sonhado com o Fantômas, e que a Judex seja apenas reservado o anedótico. O essencial, e o que intensifica a dimensão da “peregrinação” em direção às origens é a posição privilegiada de Feuillade, que François Lacassin chama “o terceiro homem” ( depois de Lumière e Méliès), ao mesmo tempo o último dos primitivos e o primeiro dos modernos. Judex, em oposição a tantos filmes com referências ancoradas na vida ou na literatura, opõe um cinema referenciado a si mesmo: às suas origens, a seus segredos ( nós o vimos), mas origens e segredos que podem ser redescobertos menos através de hipotéticos mistérios de fabricação que pela superposição, como que por surpresa, procurando esta inocência tão dificilmente capturável, pois sempre comprometida pelos desvios impostos pela astúcia ou pelo saber. Unicamente neste estágio encontra seu sentido esta reconciliação de que falamos mais acima, já que a démarche de Franju não conseguiria ter evitado as armadilhas da retórica se este não tivesse imposto à busca pelo cinema perdido a uma outra, menos espetacular, mais apagada: o reencontro de uma infância que pressentimos ligada aos sortilégios deste cinema. E da mesma forma com que Breton pode afirmar que é preciso abandonar sua “infância” para saborear a de Rimbaud, foi preciso que o homem-Franju se desse conta com precisão de emoções distantes no tempo para oferecer-lhes uma outra espécie de metamorfoses.
Pois o que separa o Judex de 1916 do Judex de 1963 é, evidentemente, a distância de uma mitologia “atual” e de seu reflexo historicizado, ou aquilo pelo qual a segunda se esforça de reproduzir a primeira em seu duplo movimento de convenção e de convicção: aqui emerge uma forma ( nostálgica) de crítica, e em primeiro lugar nas inevitáveis modificações do roteiro inicial, desnudado de suas motivações psicológicas e de um grande número de meandros explicativos. Retomando o velho mestre à sua conta e risco, Franju vai se sobrepor ao espetáculo , e se abandonar a uma ironia de bom grado solene. À simples cópia do estilo, ele reserva o destino de um “como se” cúmplice mas um pouco distante, as entidades morais sendo abolidas sob um olhar poético, unitário, em uma celebração plástica das aparências, espionadas, negadas, ressuscitadas, ou seja, em um Parecer que não é mais da ordem do embelezamento, mas a própria estrutura do filme; a redução da narrativa se efetua ao nível do signo ( o plano como aquilo que o habita), mas fora de todo simbolismo, de toda metafísica; o signo existe unicamente em razão de si, mas totalmente.

Primeiro nível: a constatação, o apelo ao resgate. Com Feuillade na cabeça, evidentemente. No entanto, ainda mais Les vampires que Judex, realizado por questões de comodidade. Vampires, serial altamente estimulante, evocado por blusas negras ou pelo ritmo de uma certa java. Também temos Fantômes, que nos é engenhosamente transferido aqui na figura de vizinhos cúmplices ( Diana Monti-Francine Bergé). Temos ainda, para além de Feuillade, o acolhimento de todos os ancestrais; de Gasnier, para irritar os fantasmas de Monsieur Gaumont, e de outros seriais esquecidos, além de Lang: vejamos Judex, sua organização diabólica, seus homens de negro e seus mil olhos que nos perseguem, embora as razões sejam diferentes, a partir de Mabuse ( ele tinha direito, segundo Franju, “como precursor de uma moral autêntica, à estima revolucionária”). Ou mesmo- por que não?-, de Griffith: em filigrana da candura de Edith Scob, sempre ofertada à violência, aflora às vezes a vulnerabilidade dos sorrisos constrangidos de Lillian Gish.

Desde a abertura da íris- primeira referência- sobre a inquietude do banqueiro Favraux, este olho mágico que prefigura outros olhos, este olhar indiscreto e tenaz que vai encadear a narrativa na mais ínfima de suas articulações estabelece seu poder sobre a célula dramática originária, o plano, que tem aqui todas as suas virtudes restabelecidas. O plano que, para Franju, já sabemos, é um vidro que se deve preencher- herança expressionista, enquanto que, para nós”veristas”, ele se preenche muito bem sozinho: se este aparente anacronismo confessa desde logo um pertencimento a um cinema dos tempos fortes e da exuberância imagética, é porque o tema assim o exigia. Que importa então ( ou antes: tanto melhor!) que Chaning Pollock seja um ator “inexpressivo”?, já que é à sua capa negra de justiceiro, à sua destreza ou imobilidade no cadre que são confiadas a função de exprimir o que sua máscara impassível recusa. Mas se as silhuetas que assombram o filme participam de um mundo de sentimentos imediatamente inteligíveis, as motivações convencionais dos personagens se prolongam numa espécie de “profundidade de campo”sugerida que é a matéria de seus próprios sonhos: seria injusto que o imaginário permanecesse unicamente reservado ao autor e não fosse, vez ou outra, corromper a docilidade de suas criaturas. É paradoxalmente por este estratagema ( ruse) que Franju, em um segundo estágio, recupera sua criação e restitui a Judex, depois de tê-lo reconciliado com o cinema de seus pares- de onde este veio-, um lugar no horizonte de suas obras. Eu quero falar aqui de Edith Scob, cujo papel consiste justamente em relacionar a sucessão casual das partes a uma coerência lateral, a um totalmente outro. Tão necessária quanto o fora Marlene para Sternberg ( embora mais discretamente), ela tem por missão, desde sua entrada furtiva na igreja em La téte contre les murs, criar unicamente por sua presença um frisson que não tem nada de cênico, e estabelecer uma continuidade irreal que nenhuma anedota conseguiria perturbar: a própria essência da poética de Franju ( seu emblema), reconduzida de ressurreição em ressurreição, morta improvável, vivente incerta, móvel ideal a diferir os enigmas sempre até a próxima vez.
A nudez final do plano da praia absorve o barroquismo dos décors anteriores em uma nova expectativa: a última pomba se desgarra da mão do mágico, sem dúvida em direção a uma outra noite, onde ela encontrará sua confidente favorita, prometida aos ultrajes dos próximos malefícios.
Jean-André Fieschi.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

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