Ao longo de filmes que se sucedem em uma cadência cada vez mais desenfreada, Abel Ferrara acabou por traçar um território quase autônomo, uma sorte de primado no interior do qual ele parece ter encontrado hoje uma liberdade e uma flexibilidade absolutas. Se este caminho aponta para a Europa, único território onde seus filmes são realmente vistos e levados em consideração, este não é menos solidamente ligado ao cinema americano. Com The funeral, Ferra assina um grande filme crepuscular em torno da Máfia, cujas peças chaes já nos foram dadas por obras maiores como as de Coppola ( O poderoso chefão), Leone ( Era uma vez na América) e De Palma ( Os intocáveis). O que de saída singulariza The funeral em relação a seus ilustres predecessores é sua secura, sua brevidade ( 1h39), ali onde Leone, Coppola e De Palma tinham optado por uma forma bem mais ampla e sinfônica. O funeral é antes uma sonata; a narrativa se concentra sobre uma única noite ( o tempo de um velório), a forma é de uma grande concisão ( planos médios, muito próximos aos corpos, curtas focais e muito pouca profundidade). O filme não restitui um mundo, mas antes o movimento de uma ação, captada de forma bem concentrada, o mais próximo possível de seu centro energético. Este movimento é o que conduzirá ao apocalipse de uma família, da primeira morte ao genocídio coletivo, durante os anos 30, no meio da Máfia.
A grande força de Ferra como cineasta consiste em saber controlar as “pequenas formas” e de manter uma vivacidade própria ao filme B. De fato, podemos distinguir hoje dois Ferrara: o cineasta americano saído do cinema de gênero, de um grande rigor formal, que trata sua matéria de forma sempre frontal e incisiva, e um Ferrara-autor, cuja tendência autorista apareceu de forma cada vez mais clara deste O rei de Nova York, culminou com Olhos de serpente e parece bem precisamente ligada ao autor ( de seus roteiros): Nicholas St. John. Este Ferrara, metafísico de uma religiosidade atormentada, cujas narrativas se aparentam a alegorias, é cada vez mais identificável, como se os últimos filmes do cineasta explicassem mais claramente o conteúdo mais informal e iconoclasta dos primeiros ( rever o incrível Mrs. 45, anjo da vingança). Mas esta inflação do significado é sempre suportada por uma mise en scéne concreta, uma energia de cineasta que filma tudo como se pertencesse à matéria viva, incendiária, inclusive a palavra, em seus transbordamentos “logorréicos” ( The addiction, onde longas digressões filosóficas não valem por seu sentido, mas por sua capacidade em se propagar, como em um dripping). O que interessa em O funeral é, portanto, menos seu conteúdo explícito- o esboço de uma reflexão sobre o bem e o mal, sobre a responsabilidade ( o personagem de Christopher Walken é confrontado a uma série de “casos de consciência”), o retrato de uma América tomada entre o poder subterrâneo da América e o contra-poder em expansão do comunismo ( paralelo que, é preciso dizer, logo cai por terra)- que a forma pela qual tudo isto se encarna na tela. Pois mesmo se se fala cada vez mais nos filmes de Ferrara, seu cinema no fundo permanece muito pouco discursivo. As demonstrações são sempre incoerentes, inacabadas, transbordadas por uma energia insensata, a dos fluxos de violência e dos processos de destruição, único verdadeiro centro palpitante de seus filmes.
O filme é verdadeiramente fundado sobre o princípio da cena. Cada cena é quase tratada como uma totalidade, e reproduz um mesmo tema: o do crescendo. Os personagens aparecem, começam a se falar de forma bem civilizada, depois a interlocução se degenera e chega a um confronto quase físico. Repetindo este princípio ao longo de todo o filme, Ferrara demonstra muita invenção. A briga entre os dois irmãos ( Chris Penn e Vincent Gallo) em plena noite, parasitada pela intervenção da esposa, que se mistura ao bate-boca ( Isabela Rossellini), impressiona pela virtuosidade de que faz prova Ferrara ao fazer circular seus atores em um plano-sequência, a fazê-los entrar e sair do campo, que evoca a filmagem de um match de boxe filmado ao vivo, no qual o árbitro também levaria socos. Mais adiante, uma outra cena de conflito impressiona, ao contrário, pelo minimalismo de sua filmagem. Chez ( Chris Penn) entra em casa, ordena a sua mulher ( sempre la Rossellini, bem maltratada pelo filme) que ela tire a roupa para transar com ele, mas finalmente explode em soluços e se desalinha em palavras de expiação. Toda a seqüência é filmada sobre o rosto de Isabela Rossellini, primeiro captada em sua expressão de terror, face contrita de vítima sacrificial que pouco a pouco se torna o rosto de uma mãe consoladora, que dispensa apaziguamento ( uma espécie de Virgem com a criança). O melhor do filme está na forma em produzir clímax, e os clímax coincidem sempre com a emergência de uma força primitiva que ultrapassa os personagens, uma força quase animal. Já era o caso em The addiction, quando os convidados de um encontro universitário se metamorfoseavam em uma horda de bichos ululantes, avançando sobre os outros convivas para os sangrar, ou em Body snatchers, quando a aparência humana dos extra-terrestres era destruída sob o impulso de um grito monstruoso que lhes deformava o rosto. Este grito é aquele lançado pelo irmão mais bruto (sempre Chris Penn, absolutamente formidável), quando descobre o cadáver de seu irmão e urra de dor, um grito inumano, que entra em discórdia com a ordenação cuidadosamente ritualizada do funeral ( as flores dispostas, o irmão mais velho, que organiza tudo como um metteur en scéne, as lágrimas bem teatrais das mulheres, postas em cena como um coro de carpideiras). Este grito, ou quase o mesmo grito, nós ouviremos de novo mais tarde, quando Ghouly dorme com uma prostituta. No momento do orgasmo, ele lança um grito amplamente mais violento do que estamos acostumados a ouvir nas cenas de sexo no cinema ( inclusive o cinema pornô, onde o orgasmo é com freqüência sussurrado), o que leva sua amiga a comentar “Realmente, tu não passas de um porco”. Nestes momentos, quando o homem torna-se novamente, em uma fulminação, um animal, tocamos no nervo central do cinema de Ferrara. Aí também o filme lança a descarga de uma energia bruta, espasmódica, irredutível a todo discurso, e cujas chamas de glosa religioso-metafísica que vicejam aqui e ali não conseguem esgotar.
O perigo de um cinema fundado sobre a fulguração e o clímax é, evidentemente, ter dificuldade em manter uma narrativa. De fato, Ferrara não é um grande contador de histórias. As articulações de suas narrativas são sempre frágeis. Este “relaxamento” narrativo já produziu formas fortes ( a indolência errática de Bad lieutenant). Aqui, o classicismo formal do filme, sua referência esmagadora ao teatro trágico ( todas as ações se voltam para um único lugar- o quarto do morto, todos os flash-backs se articulam em torno de uma unidade de tempo- a duração do velório) nos faz lamentar certas fraquezas da narrativa ( Christopher Walken desmascarando o assassino de seu irmão é certamente algo “feito nas coxas”, certas pistas narrativas são deixadas no meio do caminho...). Mas em seus momentos mais inspirados, O funeral consegue “contar” de forma freqüentemente a não se apoiar nas muletas da narração clássica. As cenas finais, por exemplo, se encadeiam como que ao apelo da inspiração, um plano suscitando outro segundo uma lógica puramente poética. Tiros circulam de um flash-back a outro; passamos de forma abrupta da execução do criminoso por Ray ao seu enterro por Chez, sem nenhuma ligação. Em duas panorâmicas, passamos da terra onde é enterrada sumariamente a vítima de Ray ao céu, depois do céu à casa da família. Aberto em uma sala obscura ( de cinema) onde se projeta um filme noir ( com Humphrey Bogart), o filme trama uma tessitura de trevas que conduz à tela negra final, onde o espectador compartilha o ponto de vista do cadáver sobre o qual se fecha o túmulo. A fotografia de Ken Kelsch ( a quem se deve o belo preto e branco de The addiction) nos dá admiravelmente esta sensação de um mundo encoberto pela noite e pelas sombras, como se o filme inteiro portasse luto. Nesta evocação das forças invisíveis que circulam de forma subterrânea, a energia do cinema de Ferrara encontra seu regime de expressão ideal. Se a cena de violência final é tão impressionante, é justamente por advir como uma erupção, sem ter sido preparada de antemão, como se tomasse o filme de assalto. É esta tendência ao happening que dá todo o valor ao cinema de Ferrara, e particularmente a O funeral. Então, mesmo que sua temática pessoal se torne quase identificável em demasia, Ferra consegue sempre surpreender seu espectador, lançando-lhe upercuts que o deixam KO.1
Jean-Marc Lalanne, Cahiers 508
Tradução: Luiz Soares Júnior
1. KO: Em artes marciais, seria o nocaute.
Jean-Marc Lalanne, Cahiers 508
Tradução: Luiz Soares Júnior
1. KO: Em artes marciais, seria o nocaute.
Nenhum comentário:
Postar um comentário