Para analisar o cinema de Blain, é preciso partir do que, deixando sempre o espectador em seu lugar, se impõem à primeira vista em seu cinema as grandes oposições que estruturam uma obra de uma coerência extrema de estilo e tema: amigo/inimigo, proprietário/possuído, aquele que olha/aquele que é olhado, marginalidade/norma. É preciso falarmos antes de tudo do signo distintivo fundamental deste cinema, a frontalidade, imperativo estilístico herdado por Blain de seu mestre Robert Bresson, e ao qual todos os seus filmes se curvam: Les amis ( 1971), Le Pélican ( 1973), Um enfant dans la foule ( 1976), Um second souffle ( 1977), Le rebelle ( 1980), Pierre et Djemila ( 1986), Jusqu’au bout de la nuit ( 1995). A frontalidade exprime simultaneamente um duplo movimento, de ataque e de retração face ao mundo. Por um lado a vontade, raramente dita mas claramente mostrada, de atacar ( de olhar face a face, de lhe penetrar), e por outro o cuidado prudente de impor a si mesmo uma distância de segurança, um limiar a não ser ultrapassado. O mundo se deixa apreender antes de tudo pelo olhar, este às vezes fazendo-se contemplativo, na justa medida da distância que nos separa do mundo. Quer seja um revoltado ( Le rebelle, Jusqu’au bout), ou que, ao contrário, tente se deixar passar desapercebido ( Pierre et Djemila, Um enfant dans la foule), trata-se sempre para o herói ( a palavra é mal colocada, mas é a única a nossa disposição) de Blain de sobreviver- sempre mantendo a instável esperança de um repouso por-vir. Sobreviver, pois a frontalidade ( e, simultaneamente, o recurso a uma focal única) exclui absolutamente toda profundidade, ou seja, toda possibilidade de penetrar o mundo e de nele se fundir. Nenhuma profundidade de campo ( e, consequentemente, nenhum travelling- advindo com o fito de atravessar e explorar esta profundidade), nenhuma profundidade dos seres no cinema de Blain: tudo se dá tal como é, em sua opacidade nativa e acompanhado de uma espécie de “tomar ou largar” que interdita de pronto toda réplica. É preciso escutarmos a confissão, informulada e fundadora de toda obra, de que o mundo é um monolito postado contra o indivíduo e que lhe é impossível abrir a menor brecha.
Pode-se dizer isso de uma outra maneira: o indivíduo está engajado em uma relação de não-reciprocidade absoluta com tudo o que o circunda. Ele exige ( Le Pélican: viver com seu filho; Le Rebelle: manter junto a si sua irmã pequenina), mas a sociedade permanece surda; daí, em Blain, uma política inflexível do campo, do contracampo e do fora de campo. Um olhar, aquele que um pai dirige a um filho por exemplo, é uma solicitação; ora, salvo em ocasiões bem raras, e sempre em uma relação direta ao cinema de Bresson, este olhar só atinge seu fito para além dos “remendos” que separam dois planos. Apenas indiretamente este obtém a resposta solicitada. Neste sentido, o início de Jusqu’au bout de la nuit é exemplar: François ( o próprio Blain), há pouco saído da prisão, contempla através da janela do apartamento de sua mãe e só vê um muro cinzento e opaco. Todo O pelicano, sem dúvida o mais belo filme de Blain, é aliás construído sobre este mesmo princípio de não-reciprocidade e sobre esta impossibilidade de criar um espaço ( um plano) onde os olhares possam coabitar. Um pai ( sempre Blain), ao qual foi recusada a guarda de um filho, observa cada dia, dissimulado atrás de um muro, este brincar no jardim de uma luxuosa casa suíça. Podemos mensurar evidentemente o quanto esta concepção de um cinema bidimensional- bloco contra bloco- pode ser esquemática: é verdade que a obra de Blain, organizada em torno de imperativos ( a frontalidade é um destes, a elipse outro) e de recusas, é com freqüência paralisada por sua obstinação em aplicar de forma estrita os ensinamentos de Bresson e que, por exemplo, a interpretação dos atores ( mais desajeitada que bressoniana) possa ressentir-se dolorosamente disto, em particular nos últimos filmes. Os olhos sempre colocados no mesmo objetivo, Blain esposa de forma tão total o olhar de seus heróis, e se lixa tão majestosamente para o ponto de vista adverso, que finalmente ele acaba por estabelecer a seguinte equação: o inimigo é tudo aquilo que está no fora de campo, este tornando-se a ameaça absoluta. É um fato que um tal cinema obedece a uma lógica paranóica e que é demasiado limitado ( em todos os sentidos do termo) para possuir uma verdadeira amplidão. Por este motivo, teríamos todas as razões para nos desinteressarmos.
Nós somos contemporâneos de uma derrota essencial, um mundo onde os papéis estão definitivamente distribuídos, onde os campos estão fixados- possuidores contra possuídos, norma contra margem. Uma expressão, aliás, volta com freqüência na boca de um personagem: é tarde demais. Neste caso, tratar-se-ia de complacência ou pessimismo convencional da parte de Blain se alguma coisa, em seus filmes, não tivesse a função de indicar a existência de uma cena primitiva que vai estabelecer esta ordem de coisas. Esta cena- a partida do pai-, nós a encontramos em Um enfant dans la foule. A história pessoal de Blain, que serve de matéria primeira a seus quatro primeiros filmes, deve ser posta em relação com o cadre mais amplo no qual esta encontra um lugar. Nesta perspectiva, podemos pensar que esta não-reciprocidade da relação ao mundo encontra sua origem na relação de Blain com sua mãe, tal como ela nos é mostrada em Un enfant, onde é frequentemente filmada de costas. O pai ausente, a mãe que vira as costas, estes são os grandes pilares deste cinema, eis o porque dos personagens procurarem um pai substituto ( Les amis, Um enfant dans la foule), eis o porque das mulheres serem tão maltratadas ( Um second souffle, Um enfant dans la foule). Não se trata aqui de julgar ou extrapolar o sentido de sua obra a partir da biografia de Blain, mas simplesmente de ver a partir de que seus filmes, pouco ricos em matéria de explicações, procedem, qual o seu ponto de partida.
Posto isto, o ódio ao espetáculo, sob todas as suas formas, é um dos principais motores da obra de Blain. Para irmos direto ao ponto, digamos que encontramos três objetos prioritários de ódio, três faces diferentes da obscenidade do sistema capitalista: o corpo burguês, o dinheiro, o discurso. Robert Stack em Um second souffle, Michel Subor em Le Rebelle, o patrão de Jusqu’au bout de la nuit: Blain adora os anjos mas contempla o corpo burguês como uma máquina gélida, friamente alimentada, polida, acariciada e oferecida aos olhares que a consomem. Sobre Le second souffle, um filme inteiramente consagrado ao corpo ( o corpo de um médico de 60 anos, interpretado por Stack), ao corpo que se contempla envelhecer e antecipando o luto de sua boa saúde, Bernard Boland (Cahiers número 294) notava justamente em Blain esta “aderência do social e do sexual, instituída em uma norma”. Basta vermos o próprio cineasta, observar em Jusqu’au bout este rosto que dir-se-ia pintado por Bacon para compreender o quanto ele tem horror a esta ilusão do corpo-máquina, orgulhosamente adestrado e oposto como uma fortaleza contra o tempo. Da mesma forma, o dinheiro é obrigatoriamente espetáculo: está em sua natureza determinar àqueles que não o possuem um único lugar, o lugar do espectador impotente. O jardim onde se diverte o rapazinho de Le pélican ( o magnífico César Chauveau, anjo e ator fetiche de Blain, cujo sorriso chega a esgarçar o “envelope” bressoniano que lhe é imposto) é um teatro, uma cena onde se exibe, ao longo do dia, sobretudo através dos ritornellos 1 lançados incansavelmente pela mãe- A vida é bela, bela, bela- a vulgaridade auto-satisfeita do mundo do dinheiro, onde de agora em diante vive a criança. Jusqu’au bout de la nuit: preso como refém, um grande industrial de Lyon, filmado por um camescope empunhado por Paul Blain, deve tentar convencer seu filho a pagar o resgate: nenhuma indicação lhe foi dada, mas o pai, em grandes frases elegantemente torneadas, com uma sutil tremedeira na voz, declara que será assassinado se seu filho não pagar, o que é falso. Temos aí um dos momentos mais miraculosos do cinema de Blain. Com uma inultrapassável simplicidade, tudo é dito, e em primeiro lugar a tendência natural do capitalismo a dar, em matéria de espetáculo, sempre mais do que lhe é pedido. Quando entra no riquíssimo apartamento do novo marido de sua esposa, Blain, em Le pélicain, não tem outra possibilidade além de querer destruir tudo, de se esgotar , ao querer fazer cessar o eterno e insuportável espetáculo da riqueza. O que constitui um grande problema é a condenação prévia de toda forma de discurso, mesmo que pouco articulado. Há em Blain a idéia de um homem originário, que viveria para aquém de toda tomada de palavra, ou mesmo para aquém de toda consciência( como a criança na multidão), na silenciosa harmonia de uma relação aos outros jamais explicitada. Seu cinema não aceita nem a negociação nem o “concerto” dos discursos ou vozes, e se define inteiramente contra, através da consciência, com um sentido reconfortante, de que um indestrutível inimigo o acossa. Escutar o inimigo seria torná-lo mais próximo, fazê-lo penetrar em nós, e isto, no interior do sistema formal monolítico de Blain, é simplesmente impossível.
Na rota deste caminho que conduz irresistivelmente ao fracasso- a idéia de um destino trágico é bem presente aqui-, restam, apesar de tudo, alguns instantes de consolação, a possibilidade efêmera de tornar palpável sua presença no mundo. O que é notável é que esta possibilidade passa antes de tudo pelo som e pela seleção dos ruídos, que estão em ligação direta com o fluxo do tempo. O som vale antes de tudo como pegada carnal do presente, o que explica o grande número de ruídos com um caráter rítmico- passos, ondas, sinos, cavalos... Nestes momentos, trata-se de fazer sua a respiração do mundo- da natureza, não da sociedade. Apenas os deslocamentos laterais e horizontais, que figuram fluxos ( estes abundam na obra de Blain) permitem ao homem deslizar contra o mundo e deixam entrever a eventualidade de um futuro reconciliado. Então, por alguns instantes, parece possível, tanto para os personagens quanto para os espectadores, de se deixar carregar pelo apaziguado rio da existência.
Emmanuel Burdeau
Cahiers du cinéma 508 Tradução: Luiz Soares Júnior 1. Ritornello: um mantra ou jingle, melodia repetida interminavelmente.
Nós somos contemporâneos de uma derrota essencial, um mundo onde os papéis estão definitivamente distribuídos, onde os campos estão fixados- possuidores contra possuídos, norma contra margem. Uma expressão, aliás, volta com freqüência na boca de um personagem: é tarde demais. Neste caso, tratar-se-ia de complacência ou pessimismo convencional da parte de Blain se alguma coisa, em seus filmes, não tivesse a função de indicar a existência de uma cena primitiva que vai estabelecer esta ordem de coisas. Esta cena- a partida do pai-, nós a encontramos em Um enfant dans la foule. A história pessoal de Blain, que serve de matéria primeira a seus quatro primeiros filmes, deve ser posta em relação com o cadre mais amplo no qual esta encontra um lugar. Nesta perspectiva, podemos pensar que esta não-reciprocidade da relação ao mundo encontra sua origem na relação de Blain com sua mãe, tal como ela nos é mostrada em Un enfant, onde é frequentemente filmada de costas. O pai ausente, a mãe que vira as costas, estes são os grandes pilares deste cinema, eis o porque dos personagens procurarem um pai substituto ( Les amis, Um enfant dans la foule), eis o porque das mulheres serem tão maltratadas ( Um second souffle, Um enfant dans la foule). Não se trata aqui de julgar ou extrapolar o sentido de sua obra a partir da biografia de Blain, mas simplesmente de ver a partir de que seus filmes, pouco ricos em matéria de explicações, procedem, qual o seu ponto de partida.
Posto isto, o ódio ao espetáculo, sob todas as suas formas, é um dos principais motores da obra de Blain. Para irmos direto ao ponto, digamos que encontramos três objetos prioritários de ódio, três faces diferentes da obscenidade do sistema capitalista: o corpo burguês, o dinheiro, o discurso. Robert Stack em Um second souffle, Michel Subor em Le Rebelle, o patrão de Jusqu’au bout de la nuit: Blain adora os anjos mas contempla o corpo burguês como uma máquina gélida, friamente alimentada, polida, acariciada e oferecida aos olhares que a consomem. Sobre Le second souffle, um filme inteiramente consagrado ao corpo ( o corpo de um médico de 60 anos, interpretado por Stack), ao corpo que se contempla envelhecer e antecipando o luto de sua boa saúde, Bernard Boland (Cahiers número 294) notava justamente em Blain esta “aderência do social e do sexual, instituída em uma norma”. Basta vermos o próprio cineasta, observar em Jusqu’au bout este rosto que dir-se-ia pintado por Bacon para compreender o quanto ele tem horror a esta ilusão do corpo-máquina, orgulhosamente adestrado e oposto como uma fortaleza contra o tempo. Da mesma forma, o dinheiro é obrigatoriamente espetáculo: está em sua natureza determinar àqueles que não o possuem um único lugar, o lugar do espectador impotente. O jardim onde se diverte o rapazinho de Le pélican ( o magnífico César Chauveau, anjo e ator fetiche de Blain, cujo sorriso chega a esgarçar o “envelope” bressoniano que lhe é imposto) é um teatro, uma cena onde se exibe, ao longo do dia, sobretudo através dos ritornellos 1 lançados incansavelmente pela mãe- A vida é bela, bela, bela- a vulgaridade auto-satisfeita do mundo do dinheiro, onde de agora em diante vive a criança. Jusqu’au bout de la nuit: preso como refém, um grande industrial de Lyon, filmado por um camescope empunhado por Paul Blain, deve tentar convencer seu filho a pagar o resgate: nenhuma indicação lhe foi dada, mas o pai, em grandes frases elegantemente torneadas, com uma sutil tremedeira na voz, declara que será assassinado se seu filho não pagar, o que é falso. Temos aí um dos momentos mais miraculosos do cinema de Blain. Com uma inultrapassável simplicidade, tudo é dito, e em primeiro lugar a tendência natural do capitalismo a dar, em matéria de espetáculo, sempre mais do que lhe é pedido. Quando entra no riquíssimo apartamento do novo marido de sua esposa, Blain, em Le pélicain, não tem outra possibilidade além de querer destruir tudo, de se esgotar , ao querer fazer cessar o eterno e insuportável espetáculo da riqueza. O que constitui um grande problema é a condenação prévia de toda forma de discurso, mesmo que pouco articulado. Há em Blain a idéia de um homem originário, que viveria para aquém de toda tomada de palavra, ou mesmo para aquém de toda consciência( como a criança na multidão), na silenciosa harmonia de uma relação aos outros jamais explicitada. Seu cinema não aceita nem a negociação nem o “concerto” dos discursos ou vozes, e se define inteiramente contra, através da consciência, com um sentido reconfortante, de que um indestrutível inimigo o acossa. Escutar o inimigo seria torná-lo mais próximo, fazê-lo penetrar em nós, e isto, no interior do sistema formal monolítico de Blain, é simplesmente impossível.
Na rota deste caminho que conduz irresistivelmente ao fracasso- a idéia de um destino trágico é bem presente aqui-, restam, apesar de tudo, alguns instantes de consolação, a possibilidade efêmera de tornar palpável sua presença no mundo. O que é notável é que esta possibilidade passa antes de tudo pelo som e pela seleção dos ruídos, que estão em ligação direta com o fluxo do tempo. O som vale antes de tudo como pegada carnal do presente, o que explica o grande número de ruídos com um caráter rítmico- passos, ondas, sinos, cavalos... Nestes momentos, trata-se de fazer sua a respiração do mundo- da natureza, não da sociedade. Apenas os deslocamentos laterais e horizontais, que figuram fluxos ( estes abundam na obra de Blain) permitem ao homem deslizar contra o mundo e deixam entrever a eventualidade de um futuro reconciliado. Então, por alguns instantes, parece possível, tanto para os personagens quanto para os espectadores, de se deixar carregar pelo apaziguado rio da existência.
Emmanuel Burdeau
Cahiers du cinéma 508 Tradução: Luiz Soares Júnior 1. Ritornello: um mantra ou jingle, melodia repetida interminavelmente.
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