Posto que, para quem tem dois olhos para ver e ouvidos para escutar ( o cinema também é som, não é?), trata-se do mais belo filme francês destes últimos anos-, falarei em primeiro lugar de Truffaut ator. E antes de tudo, de sua voz. Esta voz é um sintoma: o sintoma da preguiça e da imbecilidade de uma boa parte da crítica de cinema na França. A preguiça e a imbecilidade se notam quando se ouvem os epítetos “monocórdio, bressoniano”, quando nesta voz ressoa totalmente um outro som, uma emoção alheia às modulações expressivas habituais. Ora, a voz de Truffaut é, do começo ao fim do filme, a todo instante tensa, profunda, perturbadora. A inteligência de sua interpretação é marcante: “monocórdio, bressoniano”- estes enunciados sugerem, a quem não viu o filme, ( e estão aí para desencorajá-los a ver, é claro), alguma atonia e mortificação da voz em proveito do texto. Mas se o diálogo é constantemente admirável, a voz de Trufrfaut o leva à incandescência, com um acento violento, vigoroso, o próprio tônus da paixão. O que ouvimos ao longo de todo o filme na voz de Truffaut, de Julien Davenne, é esta violência da paixão- da idéia fixa e do coração inflamado- e também uma espécie de eco amplificado do grito mudo dos mortos, da muda solicitação, exigência infatigável, súplica dos mortos, em sua extrema debilidade diante do tempo e do esquecimento. Tal é o personagem e tal é o ator, perturbador e admirável. E seria preciso falar também do olhar de Truffaut, destes olhos realmente estranhos, sem nenhum reflexo, que sugerem uma indefectível angústia. Não se compreendeu que não é sem razão que Truffaut encarna seu personagem, e que neste, Julien Davenne, o ator e o personagem se entrelacem de forma tão estreita. Raramente um filme, enquanto enunciado cinematográfico, ou conjunto de enunciados, foi capaz de bombardear de tal forma as marcas do sujeito da enunciação como este aqui. Para dizer as coisas com mais simplicidade, raramente um cineasta “ se pôs” , se implicou a este ponto- implicando seu próprio corpo- em seu filme. E implicando seu corpo ( que se capte toda a ambigüidade da palavra,em relação a este filme fúnebre), até chegar aos seus mortos, mesclando os mortos de Julien Davenne aos mortos de François Truffaut, na capela ardente onde culmina o filme.
O filme também nos apaixona porque o sentido flui e reflui em uma dupla direção: do general ao mais particular ( o sentido que este filme tem para Truffaut, a paixão de Truffaut), do particular ao mais geral ( a ligação tão secreta quanto notória do cinema com a morte, a relação que nós, espectadores, interpelados um a um, temos com esta moderna capela ardente , onde o amor se nutre da morte, o cinema como arte necrófila).
Esta história tão singular, tão avessa em aparência às preocupações mundanas, tão semelhante ao seu herói solitário- mas sim, encontramos filmes que se assemelham aos personagens que figuram neles- é realmente um manifesto do cinema, e Truffaut não é apenas autor, ator e personagem, mas também crítico, tudo isto enredado, cerrado, inextricável. A câmara verde, a capela dos mortos, com a fotografia de Cocteau e até mesmo a de Oskar Werner ( curioso arrependimento do autor do “Diário” de Fahrenheit...): é claro que estas câmaras obscuras, onde brilha uma chama às vezes material, o fogo sutil de um delírio de eternidade, estas câmaras são o cinema. É claro que estes cadáveres captados no limiar de sua morte, sobre filmes de atualidades, em movimento ( créditos, com a superposição do rosto de Davenne-Truffaut en poilu1), ou fixados, não para sempre, mas fragilmente sobre placas de vidro ( quebradas pela criança muda em uma cena breve), é claro que eles nos transmitem a verdade do cinema. E é claro que é preciso aqui citarmos André Bazin, em sua dimensão mais metafísica, mais religiosa: “Só se conhecia, antes do cinema,a profanação dos cadáveres e a violação de sepulturas. Graças ao filme, pode-se hoje violar e dispor à nossa vontade o único de nossos bens temporalmente inalienável. Mortos sem requiem 2, eternos re-mortos do cinema!” ( “ Mortos todos depois do meio-dia, em O que é o cinema?)
Manifesto do cinema. Bazin em seu texto denunciava o que ele chamava uma “obscenidade ontológica”, esta pornografia da morte que dá o valor ignóbil de certos documentários, ao mostrar “ na dura” , de forma direta, homens realmente na beira da morte; e o escândalo desta morte violenta, vendida como documento sensacional; e o escândalo desta morte para sempre privada de paz, transformada em história de seu próprio calvário pelo cinismo das projeções permanentes. Em aparência, a história de Julien Davenne, inspirada no Altar dos mortos de Henry James ( também ele presente, através de uma fotografia e uma breve biografia, na capela de Truffaut), e de alguns outros textos do mesmo autor, diz-nos exatamente o contrário, já que trata da importância vital, se assim podemos dizer, de conservar a imagem dos desaparecidos. Ns realidade, o filme sustenta o mesmo discurso que Bazin, é a mesma preocupação que o anima.
Conservar a imagem dos desaparecidos, sem dúvida ( e qual filme não se mostra comovente ao mostrar como vivos os desaparecidos?). 3 Mas não a imagem de sua agonia ou de seu cadáver, pois aí começa o que devemos chamar ( e aliás o que Bazin, no mesmo texto, designa por) de perversão. Julien Davenne não é de forma alguma um perverso, um necrófilo, não possui nenhum “gosto vicioso por cadáveres”, como diz o narrador do Bleu du ciel; seu amor pelos defuntos é destituído de todo erotismo. Tal é o sentido, perfeitamente claro, da cena- aliás, uma das mais belas do filme- onde Julien Davenne, tendo encomendado uma imagem em cera da mulher desaparecida, reage com um horror violento diante da realidade desta fantasia ( realidade no entanto impossível de ser melhor “realizada” pois,se vi bem, esta figura de cera é de fato a atriz que encarna a morta, maquiada para a circunstância, como nos filmes de Cocteau, com olhos abertos pintados sobre as pálpebras fechadas) e exige que esta seja destruída pelo escultor.
Nenhuma explicação nos é dada sobre o horror, quase pânico, do personagem. No entanto, é evidente que esta “figura de cera”, este corpo duplamente inanimado, aparece como uma monstruosa paródia da morte, e que esta, de alguma forma, a leva a morrer uma segunda vez; daí a necessidade de destruí-la, de matar esta imagem sacrílega. Esta cena, pelo menos do meu conhecimento, não está em James, ela é muito cinematográfica para não ser reivindicada unicamente por Truffaut: como não ver que Davenne, na ocasião, se comporta exatamente de forma contrária ao personagem dos personagens de Buñuel( Archibaldo de la Cruz , por exemplo?) Esta cena faz Buñuel parecer superficial. Como não ler em filigrana um desgosto, um horror, um protesto diante de um certo impudor do cinema, desta facilidade suspeita e ignóbil em produzir os corpos,a imagem dos corpos, em lugar do que deveria ser interditado à representação? 4
Assim como James, Truffaut não crê na existência de relações sexuais ( se preferirem: não crê em sua capacidade de representação) se, como James, ele parece nos dizer que unicamente a arte, enquanto obra de amor, poderia preencher esta falha, esta inexistência...Poderia, mas ela fracassa, pois a arte é indefectivelmente lacerada pelo que a assombra, a famosa” imagem no carpete” , ou, no Altar dos mortos, no Quarto verde, este círio faltando necessariamente no edifício de fogo, já que ele pertence ao guardião, ao oficiante e à testemunha, ou seja, ao artista que não pode fruir de sua obra.
O passional projeto de Julien Davenne evoca um outro no cinema. Não me refiro ao Homem que amava as mulheres, que de um modo um pouco mais trivial e num tom menos altaneiro, descreve em efeito uma trajetória análoga, mas à aventura de James Stewart em Vertigo. É possível que Truffaut, escrevendo com Gruault a cena da figura de cera, tenha pensado em Buñuel, com a intenção de se opor a ele. É provável que tenha pensado em Hitchcock. Em todo caso, o espectador pensa em Hitchcock. E remetamos ao diálogo entre os dois cineastas:
Hitchcock: Há um outro aspecto que eu chamaria “sexo psicológico” e é aqui a vontade que anima esta homem de recriar uma imagem sexual impossível; para dizer as coisas às claras, este homem quer transar com uma morta; trata-se de necrofilia.
Truffaut: Justamente, as cenas que prefiro são aquelas em que James Stewart leva Juddy ao costureiro para lhe comprar um tailleur idêntico ao que vestia Madeleine, o cuidado com que ele escolhe os sapatos, como um maníaco... ( O cinema segundo Hitchcock).
A diferença é que não se trata, repito, no Quarto verde de “dormir com uma morta”, mas de lhe conservar o amor intacto. Mas o essencial é que a tentativa é igualmente impossível, igualmente desesperada ( na cena que se segue à do manequim de cera, no cemitério, é justamente este desespero que Davenne confessa sentir ao túmulo de sua esposa). O “maníaco”, ou seja, o homem refém do impossível, é uma exigente definição do artista.Que um filme, tanto quanto um livro, não possa realmente conservar vivo um morto ou um amor; que, como bem escrevia Proust ( presente também em efígie na capela do filme), “ nosso coração muda, e esta é a pior dor”, esta é a corda de que O quarto verde retira sua vibração essencial. Que a comunicação com o que perdemos seja impossível, o que sem dúvida é representado pela criança muda no filme ( irmão de Antoine Doinel e do menino selvagem, como bem nos lembra a cena do roubo) mas também que esta impossibilidade é a prova de uma fidelidade que é a única coisa que conta.
Pode-se amar os mortos tanto quanto aos vivos; pode-se-lhes consagrar todas as atenções; pode-se, incansável e unicamente a eles, falar-lhes a sós: são mudos e não nos respondem. Então, é preciso morrer. Diante do argumento do filme ( que é igualmente o da novela) , resumido assim, compreende-se os escárnios com que por ocasiões o público francês acolheu o filme. Mas quem não vê que “os mortos” aqui são apenas a imagem extrema destes a quem perseguimos com nosso amor, e que não podem dar, de maneira nenhuma, a resposta secreta que deles esperamos? Aí, estes escárnios adquirem um outro sentido. É arriscado no cinema, mais que em outras artes, tentar fazer escutar a linguagem nua do amor: Truffaut, com O quarto verde, correu ao máximo este risco. E é isto o que faz de O quarto verde obra tão bela e tão forte”.
O passional projeto de Julien Davenne evoca um outro no cinema. Não me refiro ao Homem que amava as mulheres, que de um modo um pouco mais trivial e num tom menos altaneiro, descreve em efeito uma trajetória análoga, mas à aventura de James Stewart em Vertigo. É possível que Truffaut, escrevendo com Gruault a cena da figura de cera, tenha pensado em Buñuel, com a intenção de se opor a ele. É provável que tenha pensado em Hitchcock. Em todo caso, o espectador pensa em Hitchcock. E remetamos ao diálogo entre os dois cineastas:
Hitchcock: Há um outro aspecto que eu chamaria “sexo psicológico” e é aqui a vontade que anima esta homem de recriar uma imagem sexual impossível; para dizer as coisas às claras, este homem quer transar com uma morta; trata-se de necrofilia.
Truffaut: Justamente, as cenas que prefiro são aquelas em que James Stewart leva Juddy ao costureiro para lhe comprar um tailleur idêntico ao que vestia Madeleine, o cuidado com que ele escolhe os sapatos, como um maníaco... ( O cinema segundo Hitchcock).
A diferença é que não se trata, repito, no Quarto verde de “dormir com uma morta”, mas de lhe conservar o amor intacto. Mas o essencial é que a tentativa é igualmente impossível, igualmente desesperada ( na cena que se segue à do manequim de cera, no cemitério, é justamente este desespero que Davenne confessa sentir ao túmulo de sua esposa). O “maníaco”, ou seja, o homem refém do impossível, é uma exigente definição do artista.Que um filme, tanto quanto um livro, não possa realmente conservar vivo um morto ou um amor; que, como bem escrevia Proust ( presente também em efígie na capela do filme), “ nosso coração muda, e esta é a pior dor”, esta é a corda de que O quarto verde retira sua vibração essencial. Que a comunicação com o que perdemos seja impossível, o que sem dúvida é representado pela criança muda no filme ( irmão de Antoine Doinel e do menino selvagem, como bem nos lembra a cena do roubo) mas também que esta impossibilidade é a prova de uma fidelidade que é a única coisa que conta.
Pode-se amar os mortos tanto quanto aos vivos; pode-se-lhes consagrar todas as atenções; pode-se, incansável e unicamente a eles, falar-lhes a sós: são mudos e não nos respondem. Então, é preciso morrer. Diante do argumento do filme ( que é igualmente o da novela) , resumido assim, compreende-se os escárnios com que por ocasiões o público francês acolheu o filme. Mas quem não vê que “os mortos” aqui são apenas a imagem extrema destes a quem perseguimos com nosso amor, e que não podem dar, de maneira nenhuma, a resposta secreta que deles esperamos? Aí, estes escárnios adquirem um outro sentido. É arriscado no cinema, mais que em outras artes, tentar fazer escutar a linguagem nua do amor: Truffaut, com O quarto verde, correu ao máximo este risco. E é isto o que faz de O quarto verde obra tão bela e tão forte”.
Notas:
1. Em francês no original. Apelido dado aos soldados franceses da Primeira Guerra, referente à significação da palavra “poilu” ( peludo), que em argot se refere a alguém corajoso, viril, como se diz em português: alguém que tem pêlos nas ventas.
2. Requiem ( latim): Missa fúnebre.
3. Nota do autor: Ellie Faure: “Você vê reviver diante de si a mulher que amou vinte anos antes, e que vive ainda ao vosso lado, e que você deixou de amar, mas então, há vinte anos, quando o separaram bruscamente dela, vocês esteve prestes a morrer? Você vê reviver a criança morta?” ( Trata-se de Função do cinema, Gonthier). Se esta citação situa bem, a meu ver, o argumento do filme de Truffaut, parece-me claro que este toma seu ponto de partida em uma essencial insatisfação diante da emoção um pouco boba sugerida aqui por Elie Faure.
4. Nota do autor: A “facilidade” em questão se chama, em filmologia, impressão de realidade.
(Cahiers du cinéma , maio 1978)
Pascal Bonitzer
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário