segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Die for Mr. Jensen. John Cassavetes: Uma mulher sob influência.

Ele não toma por ponto de partida as figuras que se abraçam,
não há modelos que ele dispõe e agrupa.
Ele começa pelos recantos, onde o contato se dá mais estreitamente,
como se nos pontos culminantes da obra;
ali onde algo de novo se produz ele inicia seu trabalho
e consagra todo o saber de seu instrumento às misteriosas aparições
que acompanham o nascimento de uma coisa nova.

Rainer Maria Rilke: Auguste Rodin. ( 1903).


Certos atos extremamente simples, em Uma mulher sob influência, a princípio nos parecem incompreensíveis: este homem ( O. G.Drun) que Mabel encontra no bar, cuja nuca ela acaricia desde que se dá conta de sua presença, para em seguida lhe perguntar pelo nome, rindo, ela o conhecia ou não? Esta questão permanece indefinida ( trata-se de um amigo próximo? parente? amical porque ainda desconhecido, inteiramente sob a esfera do possível? amical por se assemelhar a qualquer outro homem?), e esta indefinição é o que leva Mabel a reconhecer no dia seguinte, neste personagem casual, a figura excessivamente íntima de seu marido Nick ( Peter Falk), e ao filme de colocar em seu frontispício a silhueta de Garson Cross como o emblema da seguinte questão: o que posso saber de um corpo? há algo a saber sobre um corpo, a reconhecer? Isto já não equivaleria a uma admissão de que, de antemão, ele nos escapa? Uma mulher sob influência é um filme concernido pelo princípio que talvez mobilize da melhor maneira as potências figurativas da cinematografia: a plasticidade das criaturas.

Por outro lado, alguns fenômenos muito complexos, delicados ou que se encontram entre os mais arcaicos na história da representação sofrem aqui um tratamento resolutamente claro, não mais sendo trabalhados por valores indefinidos, mas agora da definição: a loucura, a fraternidade, o que significa ser um ator. Encontram-se assim implicados, de forma surpreendente mas com grande rigor, certos procedimentos descritivos típicos do cinema. Cassavetes assinala um dentre eles, que identifica o trabalho de construção de seu filme à tradição de experimentações modernas sobre a estruturação de uma obra, por exemplo, a força que uma síntese temporal atribui a temporalidades frágeis ou da discrição que é conveniente na abordagem de fenômenos devastadores: “Quando vemos esta mulher sozinha ao telefone durante dois minutos, é preciso sentir que ela pode enlouquecer.Na vida, o orgasmo ou o tédio podem nos levar à loucura. Mas como descrever na tela que uma mulher pode enlouquecer por ter ficado sozinha por trinta segundos?” A obra de John Cassavetes pertence à tradição de Faulkner e Schoenberg , obras que trabalham as profundezas das formas, dinamizada por esta idéia inicial de que “as formas da arte registram a história da humanidade com mais exatidão que os documentos”, uma vez que, escrevia ainda Adorno, “ a arte se dirige ao sofrimento real”, e não a uma aparência das paixões.


Spaghettis?


A loucura, em Uma mulher sob influência, aparece como um dom: no sentido do dom de si e do talento que nos foi proporcionado. É o gênio da inventividade transbordante, de que Mabel não cessa de dar provas na primeira parte do filme, antes de sua internação, excitada por tudo o que ela encontra , inclusive a família, profundamente atenta para com todos com quem ela interage, mesmo que apenas por um instante.
Sua loucura é aquela da grande solicitude, cujos antecedentes encontraremos na gentilezza de São Francisco de Assis e de seus companheiros, e de imagens- sobretudo gestos- nos Onze Fioretti de Saint François d’Assise, construídos sobre uma alternância permanente entre o patético e o burlesco. Mas se o filme de Rossellini muda de registro emocional de uma seqüência à outra, o personagem de Mabel fulmina de uma réplica à outra: “Get back to your coffin!”, grita ela ao pobre dr. Zepp ( Eddie Shaw), provocando a hilaridade em pleno furacão de sua grande e dolorosa cena de histeria. Pois o dom de si provém desta faculdade de esposar todos os registros “pathiques” 1, de captar ao menor frêmito cada afeto, cada impulso emocional do outro, disposto a prolongá-lo por excesso, já que este ressoa intensamente em si. Ela preside à mesa do almoço com os spaghettis, ordena às cerimônias de alegria, é sempre o centro, ora triste ora ardente da reunião ( operários, crianças, amigos, parentes), suas aparições subitamente organizam um espaço até então amorfo: Mabel, tal como é construída pela mise en scéne, não é louca ao ponto de uma diferença irreparável para com os outros, ao contrário: ela se encontra no próprio princípio da comunidade humana, Mabel recolhe a sociabilidade de todos, até o ponto drástico de tornar-se seu único pretexto e meio de advento.

Se ela não constitui a diferente( différente), uma característica no entanto a distingue dos outros homens, uma vez que cada um se distingue de todos os outros: Mabel tem um projeto, uma linha de conduta; ela parece viver segundo impulsos irracionais, que nos dão a idéia de uma completa liberdade, uma vez que ela é a única fonte soberana de suas ações. Seu programa, que revela ao marido quando da grande crise, consiste em cinco argumentos, e é o programa do puro amor: “I have five arguments in my favor: Love- Friendship- Comfort- I’m a good mother- and I belong to you”. Neste sentido, na contracorrente das ações indecisas, hesitantes e coagidas pela instância social dos outros personagens, a conduta de Mabel é fruto de uma clareza e simplicidade radicais.

Nick, ao contrário, não cumpre o que promete ( firme decisão de não partir para uma noite de trabalho: logo o encontramos no canteiro de obras), não o conclui ( cena da celebração fracassada que ele organiza para o retorno de Mabel da clínica: “I can’t do it... Do you want me to do it?”) ou não sabe o que faz. Este último caso dá lugar à cena mais sutil de Uma mulher sob influência, a seqüência em travelling do acidente de um operário, “Eddie the Indian” ( Charles Horvath), ameaçado por Nick, quando no entanto este personagem era o único que não tinha zombado da internação de Mabel. Súbito o operário cai, desliza ao longo do imenso declive de pedra do monumental canteiro, que se assemelha à cratera de um vulcão, compreendemos mal a causa desta queda ocasional, entendemos apenas que Nick é o culpado, não vemos se o operário está morto ou ferido; o tratamento plástico, os faux-raccords magníficos tornam o evento ilegível, mas vemos perfeitamente que este concentra a angústia e o sofrimento de Nick, atualiza sua estupefação. A cena do canteiro, de clima realista, se encontra estruturada por um complexo: o da culpabilidade experimentada por Nick em relação a Mabel, encarnada na forma de uma queda de pesadelo, literalmente, uma catástrofe.

A figura de Mabel, construída sobre o princípio desta infinita solicitude segundo a qual a compreensão do Outro não implica na capacidade de compreender as coisas, leva o filme a renovar as modalidades da descrição: deste ser diante de mim, o que me foi dado a ver, o que permanece para sempre inassimilável: seu corpo, seu gesto, seu sopro? Estes elementos esposam de maneira exata a forma de sua presença no mundo? que traços seus eclipses ou sua desaparição deixariam? E por exemplo, a propósito da própria Mabel: quem a toma por uma louca? São, notadamente, os transeuntes aos quais, com seu vestidinho curtíssimo, que evoca irresistivelmente o de Barbara Lodan em Wanda ( o outro grande filme americano moderno sobre o desespero das mulheres) ela pergunta a hora com seu entusiasmo típico, salta e brinca diante deles, a feliz excitação de esperar pelo ônibus que trará suas crianças da escola. É Mister Jensen ( Mario Gallo), para quem as crianças deverão morrer, ao dançar O lago dos cisnes, e que não aprecia nada a ostentação da expressividade infantil. Parece-nos agora impossível subscrever à leitura deles: a decifração do comportamento de Mabel apenas pelo diagnóstico da loucura, a própria tarefa da interpretação mostram-se terrivelmente insuficientes.

É preciso retornar ao real da visão e da escuta, ao sensível e à sensação. Rilke sobre as “coisas” de Cézanne, ou seja, sobre os limites da representação figurativa: “incompreensível, como queiram, mas tangível”.

Minnie e Moskowitz, o filme precedente de Cassavetes, se organizava segundo uma dupla estrutura: podíamos assistir à tumultuada aliança entre Minnie e Moskowitz ora como o prolongado mal-entendido de duas criaturas desvairadas, fugindo da depressão a qualquer preço, ( e a extasiada seqüência final sobreviria como uma queda , uma surpresa contra toda expectativa precedente), ora como a difícil cura de duas consciências enérgicas ( e a seqüência final, cláusula lógica, só se encarregaria de implantar a confirmação). Era possível ver em Minnie tanto o filme da patologia cotidiana quanto das contingências de um amor inelutável. Ou antes: ao permitir estas duas apreensões antagônicas, o burlesco ou o dramático, o filme, no intervalo preenchido entre evidência e mau-entendido, encontrava seu sentido: do que me importa absolutamente ( o objeto amado), não compreendo absolutamente nada, pois- princípio de Mabel- eu lhe pertenço de corpo e alma.
Uma mulher sob influência se organiza também segundo uma dupla estrutura simultânea, esta mesma estrutura redobrada no “sucessivo”. É claro, tratam-se das relações entre uma mulher e seu marido mas, ao mesmo tempo e sem que haja a prevalência de uma dimensão sobre a outra, se expõe a parceria de uma atriz e de seu metteur-en-scéne. A casa, com suas fronteiras simbólicas, seu palco principal, suas coxias ( onde se desenrola a cena mais intensa, em sombrios closes estabelecendo maus raccords com os claros planos de conjunto de Mabel entrando, depois saindo deste lugar fechado, tépido e abstrato onde, entre lágrimas e tormento, ela reencontra suas crianças) e a faculdade que possui Mabel de transformar todo espaço em tripé ( inclusive uma mesa da sala de jantar) abriga antes de tudo um teatro e sua trupe. Os diálogos dos reencontros entre Mabel e Nick , diante da família espectadora , também esta mobilizada ( “Come on! Stop with the jokes! Conversation! Normal conversation! Family atmosphere!”) são a recitação dos conselhos rituais do diretor ao ator: « Just be yourself. Be yourself ! Do what you want ! » e as interpelações naturais do ator ao seu metteur en scéne: « How am I doing ? » E se Nick pede a Mabel para executar sua expressão favorita, « Give a beh-beh ! Better than that, a real beh-beh ! », é o próprio filme que pede a Nick, muito aplaudido também, - quando ele se recusa, ao telefone, a ir trabalhar, ou quando tira a roupa, na cobertura do caminhão - pede a Nick para que repita seu texto: a insignificante observação de Nick, a propósito da aparição súbita das crianças na rua após meses de ausência, quando da seqüência do almoço com espaguetes, nos é oferecida em duas versões, a primeira um pouco chã, como uma leitura à la palco italiano, a segunda super-expressiva. Enfim, sobre a mesma situação,a mesma trama narrativa, o filme nos dá sucessivamente a versão de Mabel, depois a de Nick, e seria preciso comparar aqui a festa infantil para Mr. Jensen, orquestrada por Mabel, e o piquenique marítimo organizado por Nick, completamente desastroso também, mas que nos oferece uma sublime descrição da afeição paterna.

No entanto, esta estrutura dupla, se afirma em si algo a respeito da função do ator: que seu trabalho não é uma metáfora, algo alheio à vida, um reflexo esvaziado de substância, mas o que anima a vida em seu princípio, como desejo de “mise en relation” 2 e troca- ,esta não se apresenta de uma forma reflexiva, como nos filmes de Bergman, por exemplo, onde a importância e a gravidade da questão colocada pelo ator ( a adesão a si mesmo, a necessidade do duplo, etc) constituem o seu próprio fim. O filme impede, interdita explicitamente semelhante fechamento, em favor de uma réplica de Mabel na última seqüência, no momento em que ela desce novamente as escadas, depois de ter enfim feito as crianças dormirem: Mabel se volta para Nick e subitamente, com uma voz nada histérica, perfeitamente natural, mas de um natural que produz uma terrível cisão, Gena Rowlands lança a seu marido ( Peter Falk/ John Cassavetes): « You know I'm really nuts ». A irrupção de um corpo real, do corpo de Gena Rowlands, a serviço desta “deformação” vocal , age no sentido de nos alienar definitivamente do referente: pois o atordoamento provocado pela súbita passagem de um corpo verdadeiro remete o conjunto da ficção ao registro da representação: nós não estávamos assistindo à aparição de uma presença, apenas ao magistral espetáculo da plenitude criativa. Estávamos vendo e entrevendo a totalidade do trabalho do ator, mas talvez não tenhamos visto nada do próprio ator, que sem dúvida é inteiramente investido pelo personagem.

Ver um corpo, realmente vê-lo, vê-lo igualmente onde ele não se encontra, em seu gesto e nos gestos que ele não executou, segundo a vibração de seu sopro e em suas intermitências. O que o filme nos descreve da experiência sensitiva de Mabel, de sua invenção permanente de eventos afetivos e ginásticos; estas matérias que às vezes invadem a imagem quando Nick, graças a quem as paisagens adentram o filme, vem ocupá-la (as torrentes de água, de areia, súbitas homogeneidades do plano excessivamente vazio ou cheio, evocação da imagem em sua textura); o que o filme nos descreve da apreensão e da inteligibilidade dos atos; tudo sempre nos conduz ao plano mais sensível dos fenômenos. E isto nos indica uma função do ator segundo Cassavetes: ele é aquele que se põe no limiar da inconsistência das coisas, onde a sensação não mais constitui lei, onde a experiência ainda não começou, onde tudo ainda está por ser inventado, neste lugar onde o primeiro, onde o mínimo gesto pode criar um mundo e o encontro com o desconhecido. Talvez seja isto o que suscita a loucura, ser a matéria de uma pura possibilidade, do aparecimento eventual e incondicionado de um movimento ou de um afeto extraordinários.

Which self?

O ator em Cassavetes vem efetuar uma improvável ciência da subjetividade, no modo de uma infinita e sem reservas abertura ao Outro, que passa também por um reconhecimento da relatividade de si. Mabel aceita, acolhe, busca o outro como se tivesse fome dele, e encontra, ao longo do filme, um número inacreditável de gestos para representar seu desejo. O que é um corpo, do qual sou soberano, como tocar a este homem? A atriz trabalha sob o império destas questões, que não admitem necessariamente respostas, que não visam igualmente o conhecimento, mas que a fazem advir, em cada uma de suas espetaculares entradas em cena, como a portadora do mistério da pessoa. E sua criação própria consiste em tornar este mistério inesquecível, em jamais o menosprezar ou recalcar, quando este é vivido na experiência comum.

Nisto, sua conduta se torna insuportável para quem prefere viver no esquecimento da “precariedade das coisas”, que enxerga a si mesmo como o guardião do Ser e dos outros ( aí temos a tirada assustadora e burlesca a respeito da mãe de Nick: « I don't like this woman in my house guarding the staircase. She's guarding the staircase from me. Up above are my children in my home and she is the kiss of death ») ou guardião de si mesmo: Mr. Jensen, que se recusa a dançar e brincar de morrer, recusa-se a assistir à morte do outro, recusa a evidência do descontínuo e da intermitência.

O problema da criatura em John Cassavetes não concerne à identidade, nem a adesão a si mesmo, e ainda menos a identificação do outro ( basta “dar uma cheirada nele”, como no encontro de Mabel com Garson Cross). Ele concerne à qualidade de fusão entre dois corpos, ou entre os elementos de um conglomerado de corpos- seqüência das crianças e da avó, convidados a juntar-se aos pais no leito: a que grau vai se operar a fusão e quais qualidades esta vai liberar? Modos de troca, densidade, intensidade, cintilações, vertigens.
Esta abertura ao encontro sob o modo da fusão, às vezes decepcionante é claro, engendra um repertório de paixões, de afecções e de signos resolutamente inédito, uma vez que o próprio ator já está ciente de muitas outras retóricas. O gestual de Mabel toma empréstimo ao repertório americano ( o « Stand up for me, Dad », tomado ao James Dean de Juventude transviada), napolitano ( os gestos de maldição, por exemplo) e remonta, com freqüência, às origens da arte do ator: a dança, a pantomima, e ainda mais remotamente, os saltos acrobáticos, que engendraram a ambos, como quando Mabel faz sua primeira aparição no filme, ao mesmo tempo verossímil e virtuose, equilibrando-se sobre o velocípede de seu filho.

Mabel: I don't know what you want. How do you want me to be?
Nick: Yourself.
Mabel: You mean funny or sad or happy or shy, or what? Which self?

O ator, na intuição de que sua criação possibilita ao humano a experiência, o experimentável, mostra-se aqui sabedor da origem e da diversidade do ato criativo.

Uma das invenções de Mabel, talvez a mais extraordinária, leva-a a se inclinar sobre um corpo: um dos convivas, Willie Johnson ( Hugh Hurd), um operário negro levado por Nick para o almoço, põe-se a cantar, ele canta Verdi, Celeste Aida, Mabel se aproxima, se inclina, muito próxima a seu rosto, muito próxima de sua boca, muito próxima de seu canto. Ela busca o segredo da voz, ela quer descobrir o segredo da beleza, ela se aproxima deste homem como se estivesse a redefinir o corpo do outro, e como se ela visse aquilo que só poderíamos ver a partir de sua intervenção: ela vê a sensação do canto, e dela nos oferece a intuição.

O Ser é aquilo que exige de nós criação para que dele tenhamos a experiência.
( Maurice Merleau Ponty).
Notas:

1. pático: Termo da devoção mística: refere-se àqueles que permanecem sujeitos às suas paixões.
2. Em francês no original: colocar em relação, relacionar.

Nicole Brenez, De la figure en general et du corps em particulier. L’invention figurative au cinéma.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Um comentário:

anareis disse...

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