quinta-feira, 5 de março de 2009

Laranja mecânica, Kubrick

Menos inovador que 2001, obra precedente de Kubrick, Laranja mecânica é o exemplo típico do filme que vem exatamente na hora que tem de vir, responde a uma expectativa do público, embora provocando nele um choque e uma surpresa, e assim o preenche totalmente. Em primeiro lugar, o filme é totalmente de sua época, tomando emprestado a uma variedade de gêneros literários e dramáticos ( conto filosófico, alegoria, filme de tese, teatro, sátira e humor noir), todos afetados por um importante coeficiente de fantástico e ficção científica. No fim dos anos 60, nenhum gênero cinematográfico possui mais um status dominante. No plano criativo, o fantástico ou a ficção científica suplantaram ou contaminaram, mais ou menos, a todos. É o caso aqui. O fantástico e a FC intervém no cadre cronológico da ação, linguagem dos personagens e no tipo de tratamento aplicado ao herói. Mas sobretudo eles dão uma dimensão apocalíptica à aventura.
Do ponto de vista temático e sociológico, o filme trata do problema número 1 da maioria das sociedades modernas ( presente em um grande número de filmes), ou seja, a violência. Mas Kubrick o estuda sob um ângulo original, comparando a violência do indivíduo à da sociedade. Kubrick inova também utilizando um estilo onde, paradoxalmente, o formalismo mais desenfreado reforça, no nível das emoções sentidas pelo espectador, o caráter cruel, bárbaro e insuportável desta violência. Quando se mostra mais brilhante, o estilo de Kubrick repousa, em efeito, sobre um equilíbrio extremamente eficaz entre a sofisticação e a brutalidade. O sentido da fábula de Laranja mecânica ( que deixa, como em toda fábula digna deste nome, uma parte não desprezível à reflexão e às hipóteses do espectador) é que a violência da sociedade é ainda mais nefasta e perigosa que a do indivíduo. Kubrick denuncia o absurdo de uma sociedade que buscaria estabelecer a ordem e a saúde através de indivíduos enfraquecidos e doentes ( pois é exatamente uma doença que é inoculada em Alex). Em um desenlace particularmente noir e corrosivo, Kubrick mostra que a sociedade, que talvez não tenha tido tanto sucesso como acreditara no tratamento imposto ao perverso, procura recuperar a violência de Alex e de seus companheiros.
Laranja mecânica representa o filme mais típico de seu autor, pela ambivalência clássica e barroca. Esta ambivalência aparece tanto no plano formal quanto moral e filosófico. Pela justeza, o bom senso ( e seríamos quase tentados a dizer pela banalidade) de suas vistas, pela claridade bem distanciada do que expõe, não deixando mesmo de recorrer a paralelismos teatrais ( encontros idênticos de Alex antes e depois de seu tratamento) e pela sã habilidade de uma retórica bem aplicada, Kubrick é um classicista. Por sua vontade de demonstração a qualquer preço, pela insistência com a qual ele tende a impor seus efeitos e convicções, e sobretudo por sua recusa do realismo, da precisão e do particularismo, recusa pela qual ele pensa atingir um público ilimitado, sob todas as altitudes, Kubrick é um barroco. Mas sua recusa do particularismo, e o fato, por exemplo, que a intriga se passe numa “terra de ninguém” ( no man’s land) vagamente anglo-saxônica e em cenários inspirados pelo filme noir e pela ópera, levam às vezes a uma certa confusão, sobretudo se o espectador busca colocar etiquetas políticas muito precisas sobre os personagens e o tipo de sociedade onde eles vivem. Este barroquismo “pela metade” assumido de Kubrick é sem dúvida também a parte mais frágil e mais vulnerável ao envelhecimento de sua obra.

Nota: Na retranscrição do filme com o auxílio de fotogramas publicada por Kubrick, ele não esconde seu ecletismo formal e mostra com clareza que faz uso de todos os meios ( il fait feu de tout bois), utilizando segundo a ocasião o estatismo da câmera, amplos movimentos de aparelho ou efeitos de câmera na mão, quando se trata de valorizar um cenário, uma situação ou o jogo de um ator. Ele comenta também seu interesse pelo romance de Burgess: O que me atraiu nele foi a narração, o personagem e as idéias”. Mas ele admite também “que o diálogo de Burgess no romance é quase perfeito” Sua principal modificação ao livro concerne ao desenlace: “Há duas versões do livro, mas eu só li a versão com o capítulo suplementar após meses de trabalho no roteiro. Eu estava estupefato, pois não tinha nada a ver com o estilo satírico do livro, e penso que foi o editor quem convenceu Burgess a terminar o livro com uma nota de esperança ou coisa assim. Honestamente, não podia crer no que tinha diante dos olhos, ao terminar o último capítulo. Alex sai da prisão e volta para casa. Um dos rapazes se casa, o outro desaparece, e no fim Alex toma a decisão de se tornar um adulto responsável”.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

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