terça-feira, 27 de setembro de 2016

Stalker por Serge Daney




Jamais esquecer que em “metafísica” também existe o “física”.

Stalker é um filme soviético ( é o sexto de Tarkovski e, segundo penso, seu melhor), mas “to stalk” é um verbo em inglês ( é mesmo um verbo regular). To stalk é precisamente perseguir de perto, uma forma de se aproximar gingando, uma marcha, quase uma dança. No “stalk”, a parte do corpo que tem medo permanece para trás, e aquela que não tem segue adiante. Com suas pausas e seus pânicos, o “stalk” é a marcha de quem avança em território desconhecido. Em Stalker, o perigo está em todo lugar, mas não tem rosto. A paisagem também não tem limites, horizonte, nem Norte. Encontramos alguns tanques, usinas, canalizações gigantes, uma via férrea, um cadáver, um cão, um telefone que toca sempre, mas a vegetação está prestes a recobrir tudo isso. Esta paisagem industrial fóssil, esta ponta de século vinte transformada em uma camada geológica ( Tarkovski foi geólogo na Sibéria de 1954 a 1956, disso permanece alguma coisa) é a Zona. Não se vai até a Zona, desliza-se por ela de forma dissimulada ( ela é guardada por soldados). Não se anda aqui; se “stalke”.

Vimos no cinema deambulações noturnas, cow-boys que avançam de forma coquete com passinhos para disparar para cima, atropelos de multidões, casais que dançam: jamais vimos o stalk. O filme de Tarkovski é antes de tudo um documentário sobre uma certa forma de andar que talvez não seja a melhor ( sobretudo em URSS), mas que é tudo o que resta quando todos os pontos de referência desaparecerem e nada mais é certo. É portanto uma grande estréia: uma câmera segue três homens que acabam de penetrar na Zona. Onde aprenderam este passo contorcido? De onde vem? E de onde esta familiaridade com este no man’s land? A falsa familiaridade do turista que não sabe onde ir, o que olhar, o que temer? Um veio sem nada, com uma garrafa de vodka num saco de plástico: ele acabou de sair de uma farra mundana.  O outro, pelo contrário, carrega alguma coisa de secreta em um pequeno saco de viagem. O terceiro, aquele que não possui nada além de seus olhares furtivos e seus impulsos logo desanimados, é ele, o Stalker. Seria preciso que antes de nos aventurarmos sobre as inumeráveis interpretações que este filme-albergue espanhol reivindica, o espectador olhe atentamente três atores russos ( excelentes: Alexandre Kaidanovski, Anatoli Solonitsine e Nicolai Grinko) “stalker” na Zona.

O filme não começa assim de uma forma tão abrupta. É um pouco mais explicativo ( não muito). Tarkovski, adaptando livremente um romance de ficção científica dos irmãos Strougaltski, imagina que na sequência de um acidente misterioso uma parte do planeta tornou-se diferente, perigosa, e que lhe interditaram o acesso. A Zona é esta “parte maldita”, retornada ao estado selvagem, reserva de fantasmas, território de uma lúgubre beleza. Marginais, em troca de um pouco de dinheiro, fazem-na “visitar”. Estes passageiros que vivem miseravelmente entre dois mundos são os stalkers. Este do filme, um pouco guia turístico, um pouco iluminado, tipo muito amendigado, levou desta vez com ele um Escritor e um Professor. O Escritor ( o homem com o saco de plástico) duvida de tudo, sobretudo de si mesmo. O Professor ( o homem com o saco de viagem) não fala muito mas tem uma ideia na cabeça. Pois existe, é claro, um fito neste trip a três: no centro da Zona se encontra uma “câmara” que, segundo dizem, realiza os desejos daquele que nela penetra. Segundo dizem. 

Chegados à câmara, o stalker e seus dois clientes entram em pânico: ninguém ultrapassará o limiar. Em primeiro lugar por medo. Por sabedoria em seguida. Por medo: se a câmara é um embuste, é humilhante ter acreditado; se ela realiza realmente os desejos, não restaria nada mais a esperar da vida; se ela realiza os desejos inconscientes, não se sabe ao que nos expomos. Por sabedoria: não existe vida viva sem absoluto, é certo, mas o absoluto não é um lugar, é um movimento. Um movimento que leva a derivar, que deporta ( em todos os sentidos do termo), que faz “stalker”. Pouco importa, no limite, aquilo com que embarquemos, aquilo em que cremos crer ou cremos que os outros crêem. O que conta é se colocar em movimento.

Impossível de se impedir, enquanto espectador, de “stalker” nesta floresta de símbolos que é o filme. O roteiro de Tarkovski é uma máquina suficientemente infernal para não excluir a priori nenhuma interpretação. Em um caleidoscópio, podemos ver o que quisermos. A Zona é talvez o planeta Terra, o continente soviético, nosso inconsciente, o próprio filme. O stalker pode bem ser um mutante, um dissidente, um analista selvagem, um sacerdote em busca de um culto, um espectador. Podemos “jogar com os símbolos” com o filme, mas é um jogo de que não podemos abusar ( nem em Tarkovski nem em Fellini ou Buñuel, outros grandes humoristas da interpretação).  Aliás, a novidade e a beleza de Stalker estão em outro lugar.

Quando o filme acabou, quando estamos um pouco cansados de interpretar, quando comemos tudo o que nos foi entregue, o que resta? O mesmo filme, exatamente. As mesmas imagens insistentes. A mesma Zona com a presença da água, seu lodaçal sinistro, seus metais enferrujados, a vegetação voraz, a umidade. Como todos s filmes que desencadeiam no espectador uma fúria interpretativa, Stalker é um filme que marca pela presença física dos elementos, sua existência teimosa, sua forma de ser aí. Mesmo se não houvesse ninguém para vê-los, para se aproximar ou filmá-los. Isto não é de ontem: já em Andrei Roublev havia a lama, este ponto zero da forma. Em Stalker, há  uma presença orgânica dos elementos: a água rosada, os charcos embebem a terra e corroem as ruínas.

Um filme, podemos interpretá-lo. Este se presta a isto ( mesmo  que no fim das contas se furte). Mas não somos obrigados. Um filme, pode-se também olhá-lo. Podemos capturar a aparição de coisas que nunca tínhamos visto em um filme. O espectador-sentinela vê coisas que o espectador-intérprete não sabe mais ver. O sentinela permanece na superfície, pois não mais crê no fundo. Eu me perguntava no início deste artigo onde os personagens tinham aprendido o stalk; esta marcha torta daqueles que tem medo mas que esqueceram de que. E estes rostos prematuramente envelhecidos, estas mini-Zonas onde ríctus se tornaram rugas? E a violência obsequiosa daquele que espera receber cacetadas ( ou dá-las? isso também se esqueceu?). E a falsa calma do monomaníaco perigoso e os raciocínios no vazio daquele que é tão só?
Isto não vem apenas da imaginação demiúgica de Tarkovski, isto não se inventa, vem de outro lugar. Mas de onde? Stalker é uma fábula metafísica, um curso de moral, uma lição de fé, uma reflexão sobre os fins últimos, uma busca, tudo o que se quiser. Stalker é também o filme onde, pela primeira vez, cruzamos com corpos e com rostos que vem de um lugar a que só conhecemos por ouvir-dizer ou ouvir-ler. Um lugar de que se pensava que o cinema soviético não guardara nenhum traço. Este lugar é o Goulag. A Zona é também um arquipélago. O filme Stalker é também um filme realista.

20 de novembro de 1981

Tradução: Luiz Soares Júnior

 



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