sábado, 11 de julho de 2009

Uma arte de laboratório

Losey é acima de tudo um pesquisador; sua mise en scène, um método. Seu objetivo declarado: conhecimento. Seu único instrumento: inteligência, ou particularmente lucidez. Sua abordagem toma como modelo a do cientista. A mesma atitude básica diante do fenômeno sob observação, o mesmo procedimento: revelar a experiência vivida (lived experience) em sua totalidade, registrá-la como um objeto, fazer deste objeto o campo de investigação, resumindo, instalar a experiência vivida em condição laboratoriais. Losey restitui à câmera sua função original de instrumento científico. Esta é a marca de sua originalidade.

Isto quer dizer que outros cineastas não são incitados pela mesma ambição? O conceito a priori de realidade, a realidade filtrada e ideal de um Fritz Lang, que cria um universo abstrato no qual paixões reduzidas ao essencial confrontam-se mutuamente, de um Mizoguchi, assombrado pela eterna oscilação entre um mundo exterior e um mundo pessoal, de um Raoul Walsh, que glorifica a aventura, mostra que esses cineastas não tem os mesmos interesses que Losey, mesmo que suas mise en scène’s sejam similares e muito frequentemente superiores à dele. Mas e Nicholas Ray e Rossellini? Eles também consideram a experiência vivida como um todo a ser levado em consideração a priori. Conhecimento, pra eles, consiste então na súbita penetração intuitiva de uma realidade que foi antes preparada pela análise. O processo é o mesmo pra ambos: ir do exterior para o interior, através da sensibilidade.

Isto significa que, a despeito do ponto de partida em comum, seus procedimentos são radicalmente opostos aos de Losey, visto que ele sempre parte do interior para o exterior. A um conhecimento instintivo que é puramente artístico, no senso tradicional da palavra, Losey prefere um conhecimento lógico, no qual intuição e dedução estão subordinados à inteligência. Esse tipo de atitude levanta o problema da estética do cinema moderno, que vai muito além do escopo deste artigo. ‘Este era um dos princípios de Brecht, e o único com o qual que eu estou em total acordo’, Losey nos contou, ‘que o momento em que a emoção interrompe a linha de pensamento da platéia, o diretor falhou’.
Se um termo pode caracterizar a mise en scène de Losey, acho que deve ser ‘uma explosão aberta à vista’ (bursting open to view). Não é totalmente verdadeiro dizer que ele parte do interior para o exterior. Ele se prende às aparências, observando cuidadosamente relações objetivas e se recusando a interpretá-las. Qualquer outra atitude seria não-científica e então, em sua visão, não-artística. Porque para ele o interior é a reflexão de um fenômeno externo, a projeção de um conflito interiorizado. Os gestos referem o que os motiva e nada mais. Efeitos revelam somente suas causas e o que gerou estas causas: a pessoa desnuda. Losey é o primeiro cineasta que tomou como seu único material de investigação – sem nenhuma referência à moralidade, metafísica ou religião – a verdade do ser humano. (O argumento estético que Jan, o jovem pintor holandês, expõe em Blind Date é, neste ponto, muito claro)

Mas se a pele está na iminência de romper-se, se a pessoa é, por fim, para ser revelada à luz do dia, a realidade tem que ser posta em condição de laboratório, isto é, fechada e sujeita à uma pressão alta o suficiente para produzir a ruptura. Isto pressupõe uma situação dramática intensificada até os limites do teatral. Deve haver uma crise aguda, uma temperatura febril, uma operação emergencial. Portanto aquele estilo que é tão particular a Losey, um estilo que é bruto, tenso, excitado, incisivo. Um estilo que choca. Como Time Without Pity e The Criminal, Blind Date é um filme sobre uma irrupção. Um terremoto estilhaça toda ilusão de estabilidade. É a manifestação visível de pressões tremendas que se desenvolveram sob a crosta da terra.

Se admitimos isto, tudo em Blind Date se torna claro, gesto e décor, plot e estrutura narrativa. A história começa, então: Jan está correndo para o apartamento de sua amante. É a primeira vez que ela permitiu sua visita. A porta está aberta. Ele entra. Não há ninguém. Ele aproveita a oportunidade para descobrir que tipo de ‘décor’ sua amante tem, como se isso o ajudasse a conhecê-la melhor. Ele ri de sua falta de organização, é surpreendido pela decoração berrante do banheiro, tranquilizado (reassured) por um pequeno quadro de Van Dyck, e, descansando no sofá, tentado (mystified) a achar um envelope recheado de notas. Ele espera. A polícia chega. Sua amante foi assassinada enquanto ele olhava o apartamento. Ele se torna o primeiro suspeito.Vamos parar por um momento nessa sequência de abertura e na descoberta do apartamento de Jacqueline por Jan, descoberta da própria Jacqueline também. A câmera só observa meticulosamente a sequência de eventos, a manifestação de fenômenos e suas relações objetivas. Antes de tudo, a própria personalidade de Jan. Excitado por sua aventura, seu verdadeiro ego (true self) se revela em suas atitudes tanto quanto em suas reações, e é evidente em cada um de seus gestos. E porque eles são reflexos daquele verdadeiro ego, seus gestos são tão raros quanto refinados (e às vezes, admito, nos limites do preciosismo). Como na maneira em que nosso jovem amante pára de repente , apoiado em uma perna, no vão da porta do quarto, uma posição enfatizada ainda mais pela mudança do ângulo. Tudo em Jan denuncia uma inocência sem mácula, o coração intacto de uma criança ávida para ser encantada pelo amor.

Muito ávida, de fato, para observadores imparciais como nós, e não podemos evitar a idéia de que há um hiato entre a natureza de Jan e o tipo de mulher que ele ama, enquanto seu apartamento a denuncia. Este pertence claramente a uma prostituta de alta classe. Algumas das reações de Jan deixam claro que ele está atento a isso, mas então um objeto de bom gosto traz sua confiança de volta. Ele está de fato desejando ser arrebatado. Ele está cego por seu amor e sua confiança. Ele está no limite da submissão, sua inocência é ameaçada. Este é o coração da matéria (subject-matter) de Losey. Jan tem que avaliar a si mesmo, ter a noção exata de seu valor, se calcular, em resumo, se estudar, i.e. alcançar a lucidez através de um auto-exame crítico nos termos de sua relação com o mundo exterior.
O assassinato cria as condições necessárias para um experimento desse tipo. Ele constrói um mundo enclausurado no qual as maiores pressões são induzidas a agir. Elas transportam as pessoas com uma intensidade crescente, subsumidas por estas condições, levando-as a uma espécie de ruptura brusca que é dada visualmente pela mise en scène e que é, me parece, a dinâmica básica de Blind Date. Essa ruptura brusca nasce com a lacuna entre Jan e o décor. É desenvolvida imediatamente após a chegada da polícia, quando o inspetor Morgan também dá uma olhada no apartamento. Desta vez é uma fria e clínica inspeção que não deixa dúvidas a respeito da inconstância do caráter de Jacqueline ou sobre a indiscrição e a impetuosidade claras de Morgan (seus gestos, seu sotaque gaulês, sua reação ao espelho em frente à cama, etc)
O confronto de duas visões divergentes de um mesmo apartamento e, portanto, da mesma mulher produz uma ruptura até mais violenta, o flashback. Este se opõe visualmente, por sua áspera, branca iluminação Nórdica e pela pobreza do décor, à fotografia cinza e ao apartamento desorganizado da primeira parte. O flashback, gerado simplesmente pela lógica da situação, é tanto uma evocação sensual de um caso de amor quanto uma análise precisa de um relacionamento entre dois amantes e um julgamento de seu amor. Como uma investigação feita necessária pela lógica interna da situação, ela traz à tona a incompatibilidade óbvia entre a Jacqueline que Jan ama e a dona do apartamento, enquanto a polícia junta as peças na base de evidências e objetos.
É isto que Morgan não pode deixar de notar – ele tem um bom faro, mesmo com o nariz entupido. Losey gosta de sobrepôr a luta por lucidez com essa espécie de obstáculo físico (embriaguez de Redgrave em Time Without Pity, a gripe de Morgan em Blind Date), um obstáculo que tem seu contraponto na paixão cega de Jan. Deve-se lutar contra a névoa de sua própria mente. Morgan também está envolvido nesse caso, tanto quanto Jan. Ele se vê envolvido na mesma busca por verdade, e assim pela sua própria verdade. Daí as pressões às quais tem de se submeter. Pressões sociais impõe uma hiato entre seu desejo por uma promoção no trabalho e, o mais importante, seu respeito próprio. Uma simples questão de dignidade. O problema para Morgan e para Jan é o mesmo: resistir à corrupção, preservar sua integridade. Uma vez que eles percebem isso, após a pequena briga que as questões ofensivas de Jan provocam no escritório de Morgan, a resolução não está muito distante. A mulher – Jacqueline/Lady Fenton – é redescoberta, sob a dupla pressão exercida por Morgan e Jan, sua duplicidade é translúcidamente clara. A mentira amaldiçoa a verdade. O ego conquistou as aparências. A inocência é libertada.
Nós estaríamos, então, julgando mal Losey, estaríamos interpretando de modo completamente errôneo sua obra se nos recusamos a ligar sua estética a um racionalismo de Esquerda.. Até, como Domarchi sugeriu, da extrema esquerda, visto que Losey recusa categoricamente qualquer apelo ao sentimentalismo a que a então chamada “esquerda artística” está tão ligada. Sua arte é uma arte de laboratório. Coloca-se um bloco completo de experiência vivida num pote. Cria-se as condições mais favoráveis para o experimento. Então analisa-se meticulosamente todas as relações objetivas que se formam e descobre-se que a luta é a origem vital de toda realidade. A luta de indivíduos (Jan e Jacqueline, Jan e Morgan), a luta de classes, etc. Mas visto que o conhecimento do observador é sempre determinado pelo da pessoa observada, a luta permite que este conhecimento se desenvolva. Nessa temperatura de conflito dramático, a violência quebra estruturas ossificadas, pressionando o ego de volta à superfície.
Dominar e organizar as vibrações internas do ego: essa exigência que Jan faz de Jacqueline enquanto ela está desenhando (apesar de que ela, refletindo sua classe, procura somente ocultá-las) é o que Losey exige de sua arte. Uma arte que despreza o ornamento, que usa lucidez para destruir o mito, que irrita e abala. Uma arte que fere porque não permite concessões. Mas uma arte com sede de verdade. É por isso que ainda repele a tantos.

JEAN DOUCHET
Cahiers du Cinéma nº 117, março de 1961

Tradução: Luan Gonsales.

2 comentários:

Rafa Amaral disse...

Onde estão os posts????

cinemasemtempo.blogspot.com

Júnior disse...

tava bem sem tempo, mas as coisas agora devem se regularizar. se quiser enviar alguma coisa tb, não
se sinta vexado, por favor.