São várias as relações que Otto Preminger entretém com seus
personagens: eis o caso de alguém que desafia a invenção de um roteirista, e a
maioria seria irrisória, fosse este o melhor. A questão não é em primeiro lugar
a do moralista, mas também seria injusto dizê-la inspirada unicamente por
pretextos à mise en scène; é antes a noção de personagem que nos esforçaremos de
captar esta ocasião. Comparando entre si os diversos filmes de Preminger,
apercebemo-nos menos de certos temas dramáticos que de certos tipos de
situações apropriadas para estudar certas reações, a observar certos gestos: a
virtude dramática da droga em O homem com o braço de ouro; assim como, em Angel
face, da obsessão criminal ou, em Whirpool, do domínio hipnótico consiste em
suscitar certas manifestações psicológicas. A independência que estabelecem os
filmes de Preminger entre o elemento dramático ( a intriga, a narrativa) e o
elemento psicológico ( os gestos, os movimentos, as reações) nos convidam a
aprofundar a análise. Se o romancista, se o roteirista aplicado se empenha em
mesclar uns aos outros estes elementos, e de apoiá-los uns sobre os outros, justificando
por um elemento psicológico desenvolvimentos dramáticos que por sua vez vão
propiciar o advento de outras notações psicológicas, tudo se passa aqui pelo
contrário- como se Preminger desdenhasse estes jogos de construção e só
observasse na intriga a ocasião para provocar gestos que serão aqueles sobre os
quais nossa atenção vai se concentrar. Assim, falei há pouco em manifestações
psicológicas, e não em psicologia: trata-se de instantâneos, não de estudar a
evolução dos personagens. Daí este aspecto particular dos filmes de Preminger:
ligações rápidas, modificações de espaço que demarcam muitas arestas no
desenrolar da narrativa, a progressão finalmente substituída por uma sequência
de cenas fechadas sobre si mesmas e dotadas de sua própria progressão interna,
tensão, paroxismo, queda e repouso. Vejamos bem por aí como Preminger
ultrapassa o naturalismo, de que possui, aliás, esta fria paixão da precisão,
esta recusa em construir os personagens, este gosto em acumular as observações,
como o faria um entomologista. Mas enfim, estes grandes insetos são
decepcionantes, e eis que ele os enerva e espia seus sobressaltos. O
distanciamento que parece impor não passa de uma liberdade que ele se permite
de forma suplementar, uma simulação que deixa à presa a ilusão da liberdade: a
lonjura da linha ao longo da qual ele capturou sua presa. Não há experiência
nem observação objetiva neste domínio: nenhum plano, nenhuma cena de Preminger
busca nos persuadir que ele conseguiu.
É sem dúvida devido à consciência aguda deste fato que
Preminger busca imprimir a suas obras um equilíbrio, em certa medida
inconcebível, entre as exigências contrárias do real e do artifício.
O que mais marca na visão deste homem é a sua inteligência.
Por que razão permanece ambíguo? É que esta lucidez não pretende aplicar-se
apenas ao exercício mais eficaz de sua arte: ela se impõe refletir sobre os
próprios meios desta arte. Parece-me que o gesto criador procede ao mesmo tempo
de uma intenção e da esperança que uma nova intenção apareça no gesto, à medida
em quer ele se acaba: a imagem nascente no traço, e não apenas pelo traço de
uma imagem inteiramente pré-concebida. É esta ultrapassagem do projeto pela
criação que Preminger parece mais intensamente buscar na criação.A arte é mais
múltipla que impura; o seu modo de ser é a ambigüidade, o mal-entendido- mas
aqui a idéia do mal-entendido acompanha-se sem cessar pela noção de que a arte
se exprime naturalmente através do mal-entendido-, como se a ferramenta se incorporasse
à matéria que forja. É ocioso perguntarmo-nos se é mais questão de estratagema
ou de sinceridade; pois se toda criação é engodo, este engodo muda de natureza
desde o momento em que se assume e se põe como a regra essencial da criação.
Então, o artista só ilude em aparência; é com as aparências que ele ilude para
exprimir uma verdade poética e moral. Assim, a ambição de Preminger não me
parece fundamentalmente diferente da de Rossellini, seu virtuosismo não sendo
mais que uma rede com os fios mais cerrados, jogada sobre acasos concertantes.
Mais que ao seu virtuosismo ou a seu gosto do jogo, sou sensível ao que, na sua
obra, oculta-se de inquietude e vontade de provocar o invisível, de levar a
produzir-se algum encontro fortuito entre a atenção e a desatenção.
Preminger conhece demasiado as fontes de sua arte para se
poupar a baixeza do dizer. Ele, portanto, não vai ornar a imagem com uma ambigüidade
que a imagem jamais reclamaria, já que esta lhe pertence de pleno e primeiro
direito. É uma ambigüidade completamente outra prometida pela presença,
distinta e simultânea, do ator e do personagem; a arte do metteur em scène
consiste em sublinhar esta distância ( décalage) para levá-lo em seguida a se
apagar em alguns instantes privilegiados. Uma cena não é suficiente para obter
a inflexão de um olhar, para surpreender o esboço de um gesto retomado ou
contrariado, pelo qual o ator ( ou o personagem?) vai se abandonar, se trair.
Assim, muitas cenas ( e das mais excitantes) permanecem à margem da ação
dramática- ou antes: desenham uma nova ação, mais intensa que a outra. Tudo é
adequado nesta perseguição tenaz das manifestações mais frágeis que a câmera
captura sobre o ator ausente de seu gesto, como se ultrapassado pela força que
o move: sem dúvida Jean Simmons não sabia que interpretava em Angel face, e eu não admiraria tanto Whirlpool se
não achasse que a sujeição hipnótica de Gene Tirney é também aquela que
Preminger impõe a seus atores. Procedimento extremo, e atores mais nuançados
demandam mais sutileza; nenhum hipnotismo para Jean Seberg, mas adivinhamos bem
a forma como nosso homem a dirige, manifesta esta mesma intenção de conduzir o
ator para além daquilo que tem consciência de exprimir.
Por muito tempo, o objeto desempenhou um papel nestes
momentos em que o ator ultrapassava os contornos do personagem. Folha de papel
amassado, telefone, disco. Preminger se empenhava em semear objetos sob os
passos de seus personagens, com o fito de despertá-los com o choque, e na
medida em que um impedimento da matéria corresponde ao abstrato de seus
itinerários. Mas unicamente o ator importa, e desde alguns anos vemos este
grande metteur en scène dissipar tudo aquilo que poderia tirar a atenção
destes, só ensejando enfim exprimir a realidade menos premeditada pelos
sortilégios da forma, e de exprimir unicamente pelo ator o real pelo artifício,
a tensão pelo repouso, a duração pelos equilíbrios mais transitórios. Ele emprega
tanto lucidez quanto retidão. E Cocteau me oferece a mais sagaz das conclusões:
“Não é preciso confundir a inteligência astuciosa, pronta para enganar seu
homem, e este órgão cuja sede não existe em lugar nenhum, e que nos ensina sem
piedade sobre nossos limites. Ninguém pode transcendê-los. O esforço feito o
denunciaria. E sublinharia ainda o frágil espaço em torno de nós. É a esta
faculdade de nos mover neste espaço que o talento se prova”.
Philippe Demonsablon
Tradução: Luiz Soares Júnior
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