terça-feira, 16 de junho de 2015

O caçador inspirado




São várias as relações que Otto Preminger entretém com seus personagens: eis o caso de alguém que desafia a invenção de um roteirista, e a maioria seria irrisória, fosse este o melhor. A questão não é em primeiro lugar a do moralista, mas também seria injusto dizê-la inspirada unicamente por pretextos à mise en scène; é antes a noção de personagem que nos esforçaremos de captar esta ocasião. Comparando entre si os diversos filmes de Preminger, apercebemo-nos menos de certos temas dramáticos que de certos tipos de situações apropriadas para estudar certas reações, a observar certos gestos: a virtude dramática da droga em O homem com o braço de ouro; assim como, em Angel face, da obsessão criminal ou, em Whirpool, do domínio hipnótico consiste em suscitar certas manifestações psicológicas. A independência que estabelecem os filmes de Preminger entre o elemento dramático ( a intriga, a narrativa) e o elemento psicológico ( os gestos, os movimentos, as reações) nos convidam a aprofundar a análise. Se o romancista, se o roteirista aplicado se empenha em mesclar uns aos outros estes elementos, e de apoiá-los uns sobre os outros, justificando por um elemento psicológico desenvolvimentos dramáticos que por sua vez vão propiciar o advento de outras notações psicológicas, tudo se passa aqui pelo contrário- como se Preminger desdenhasse estes jogos de construção e só observasse na intriga a ocasião para provocar gestos que serão aqueles sobre os quais nossa atenção vai se concentrar. Assim, falei há pouco em manifestações psicológicas, e não em psicologia: trata-se de instantâneos, não de estudar a evolução dos personagens. Daí este aspecto particular dos filmes de Preminger: ligações rápidas, modificações de espaço que demarcam muitas arestas no desenrolar da narrativa, a progressão finalmente substituída por uma sequência de cenas fechadas sobre si mesmas e dotadas de sua própria progressão interna, tensão, paroxismo, queda e repouso. Vejamos bem por aí como Preminger ultrapassa o naturalismo, de que possui, aliás, esta fria paixão da precisão, esta recusa em construir os personagens, este gosto em acumular as observações, como o faria um entomologista. Mas enfim, estes grandes insetos são decepcionantes, e eis que ele os enerva e espia seus sobressaltos. O distanciamento que parece impor não passa de uma liberdade que ele se permite de forma suplementar, uma simulação que deixa à presa a ilusão da liberdade: a lonjura da linha ao longo da qual ele capturou sua presa. Não há experiência nem observação objetiva neste domínio: nenhum plano, nenhuma cena de Preminger busca nos persuadir que ele conseguiu.

É sem dúvida devido à consciência aguda deste fato que Preminger busca imprimir a suas obras um equilíbrio, em certa medida inconcebível, entre as exigências contrárias do real e do artifício.
O que mais marca na visão deste homem é a sua inteligência. Por que razão permanece ambíguo? É que esta lucidez não pretende aplicar-se apenas ao exercício mais eficaz de sua arte: ela se impõe refletir sobre os próprios meios desta arte. Parece-me que o gesto criador procede ao mesmo tempo de uma intenção e da esperança que uma nova intenção apareça no gesto, à medida em quer ele se acaba: a imagem nascente no traço, e não apenas pelo traço de uma imagem inteiramente pré-concebida. É esta ultrapassagem do projeto pela criação que Preminger parece mais intensamente buscar na criação.A arte é mais múltipla que impura; o seu modo de ser é a ambigüidade, o mal-entendido- mas aqui a idéia do mal-entendido acompanha-se sem cessar pela noção de que a arte se exprime naturalmente através do mal-entendido-, como se a ferramenta se incorporasse à matéria que forja. É ocioso perguntarmo-nos se é mais questão de estratagema ou de sinceridade; pois se toda criação é engodo, este engodo muda de natureza desde o momento em que se assume e se põe como a regra essencial da criação. Então, o artista só ilude em aparência; é com as aparências que ele ilude para exprimir uma verdade poética e moral. Assim, a ambição de Preminger não me parece fundamentalmente diferente da de Rossellini, seu virtuosismo não sendo mais que uma rede com os fios mais cerrados, jogada sobre acasos concertantes. Mais que ao seu virtuosismo ou a seu gosto do jogo, sou sensível ao que, na sua obra, oculta-se de inquietude e vontade de provocar o invisível, de levar a produzir-se algum encontro fortuito entre a atenção e a desatenção.
Preminger conhece demasiado as fontes de sua arte para se poupar a baixeza do dizer. Ele, portanto, não vai ornar a imagem com uma ambigüidade que a imagem jamais reclamaria, já que esta lhe pertence de pleno e primeiro direito. É uma ambigüidade completamente outra prometida pela presença, distinta e simultânea, do ator e do personagem; a arte do metteur em scène consiste em sublinhar esta distância ( décalage) para levá-lo em seguida a se apagar em alguns instantes privilegiados. Uma cena não é suficiente para obter a inflexão de um olhar, para surpreender o esboço de um gesto retomado ou contrariado, pelo qual o ator ( ou o personagem?) vai se abandonar, se trair. Assim, muitas cenas ( e das mais excitantes) permanecem à margem da ação dramática- ou antes: desenham uma nova ação, mais intensa que a outra. Tudo é adequado nesta perseguição tenaz das manifestações mais frágeis que a câmera captura sobre o ator ausente de seu gesto, como se ultrapassado pela força que o move: sem dúvida Jean Simmons não sabia que interpretava em Angel face, e eu não admiraria tanto Whirlpool se não achasse que a sujeição hipnótica de Gene Tirney é também aquela que Preminger impõe a seus atores. Procedimento extremo, e atores mais nuançados demandam mais sutileza; nenhum hipnotismo para Jean Seberg, mas adivinhamos bem a forma como nosso homem a dirige, manifesta esta mesma intenção de conduzir o ator para além daquilo que tem consciência de exprimir.

Por muito tempo, o objeto desempenhou um papel nestes momentos em que o ator ultrapassava os contornos do personagem. Folha de papel amassado, telefone, disco. Preminger se empenhava em semear objetos sob os passos de seus personagens, com o fito de despertá-los com o choque, e na medida em que um impedimento da matéria corresponde ao abstrato de seus itinerários. Mas unicamente o ator importa, e desde alguns anos vemos este grande metteur en scène dissipar tudo aquilo que poderia tirar a atenção destes, só ensejando enfim exprimir a realidade menos premeditada pelos sortilégios da forma, e de exprimir unicamente pelo ator o real pelo artifício, a tensão pelo repouso, a duração pelos equilíbrios mais transitórios. Ele emprega tanto lucidez quanto retidão. E Cocteau me oferece a mais sagaz das conclusões: “Não é preciso confundir a inteligência astuciosa, pronta para enganar seu homem, e este órgão cuja sede não existe em lugar nenhum, e que nos ensina sem piedade sobre nossos limites. Ninguém pode transcendê-los. O esforço feito o denunciaria. E sublinharia ainda o frágil espaço em torno de nós. É a esta faculdade de nos mover neste espaço que o talento se prova”.

Philippe Demonsablon

Présence Du cinema,11. Fevereiro de 1962

Tradução: Luiz Soares Júnior

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