1. Glop. “Ele te sacode, te joga para o bucho e...glop!” É o tubarão, o grande branco ( great White) descrito por Quint durante a primeira aparição do bicho. Somos tentados igualmente a ver aí uma definição do impacto do filme, ou mesmo do tipo de cinema que ilustra: ele te sacode é o primeiro grau, o suspense, o medo; ele te manda para o bucho é o segundo grau, a simpatia para com o herói diante do perigo; a comunidade humana que, na sala escura, diante da infinitude de ondas e o horror que trazem, se unifica; e com o glop!, temos novamente a lei da pulsão, a paranóia social, a familiaridade pequeno-burguesa que te atingem insidiosamente no ritmo dos retornos à tela da grande boca denteada. Podemos então aplicar a frase de Quint ao sistema social por inteiro, a sociedade dos Grandes Tubarões brancos ( aliás, este tubarão não é chamado de “branco” por acaso, não é?), à sociedade, esta “flor carnívora”, como lhe chamou um slogan de Maio de 68.
Potência da
metáfora: estas mandíbulas se abrem em múltiplos sentidos. Impacto social deste
cinema deliberadamente dependurado no anzol do fantasma. Deliberadamente
mítico, resolutamente épico ( perto dele, o cinema europeu, ou pelo menos o
cinema francês, em sua grande maioria aparece-nos como um cinema anêmico,
sobretudo quando se pretende de aventuras, à La Melville, Verneuil e Labro).
2. Mandíbulas. O operador do suspense, do
medo, é o fora de campo: ou antes, dois tipos de fora de campo articulados um
ao outro. Um fora de campo metonímico, contíguo ao campo visual, de onde pode
surgir a qualquer momento a Besta ( ela deve, evidentemente, aparecer ali onde –
e quando- não a esperamos, por exemplo no estuário quando, quando a acreditamos
situada ao largo da praia, ou detrás da vítima...) e que torna sensível a
analogia entre o plano, a tela e a superfície da água: superfícies calmas,
águas subitamente revoltas, perfuradas pelo que surge das profundezas. A
metonímia, que agita o corpo, duplica-se assim com uma metáfora, que agita a
alma: este fora de campo é também o irredutível declive de sombra, o abismo
tanatológico, a insondável noite onde a Besta condensa seus pavorosos
prestígios. Dois tipos de fora de campo, dois registros de narrativa: a
metonímia é o registro da caça, do suspense, do futuro imediato; a metáfora é o
registro da História, da culpabilidade e do passado profundo ( a história de
Quint, os tubarões de Hiroshima, cena primitiva e pecado original). A
articulação destas duas mandíbulas arrebata o naco.
3. Sacos. Em Tubarão, tudo é corpo, ou seja
saco, ou digamos mesmo saco de lixo. Um dentro e um fora, um fora que aprisiona
um dentro ( seu princípio vital). Sob a
perspectiva dos dentes do mar, as diferenças são abolidas entre um
homem, um cachorro, um colchão pneumático, um barco a motor, um botijão de
oxigênio. Como o próprio tubarão também não escapa à regra- como ele mesmo “é
feito como um saco”), é mortal. No entanto, esta obsessão do corpo como um saco
ou uma caixa ( a mais simples expressão do imaginário) necessita de uma
observação: o horror consiste em que o corpo seja aberto. A boca escancarada do
tubarão presentifica este horror sob um modo dramático, e não deixaremos de
invocar a este propósito a vagina dentada, a castração, etc. ( vejamos a
narração de Quint: ele te fixa com um olho morto, depois, quando adere a teu
corpo, os olhos ficam brancos, etc). Mais interessante, mais significativo no
entanto me parece aquilo que cristaliza a figura do oceanógrafo: a saber, a
obsessão – horror e desejo mesclados- de
ver o que existe no interior. No interior de que? Do corpo, e portanto isto
quer dizer de qualquer coisa: começa com os restos humanos na espécie de barca
com gelo do necrotério, depois o cadáver do pescador em seu barco fulminado, os
dejetos heteróclitos no estômago do primeiro tubarão, e enfim o próprio
tubarão, entendido como aquele que se esconde sob a superfície da água. Compulsão de ver o inominável, de fazer
emergir o fedor dos maus objetos internos. É assim que o caçador de tubarão e o
oceanógrafo são complementares, e formam um quadro coerente da neurose social
de nossa época, e especialmente da americana: a paranóia do primeiro frisa e
guia a neurose obsessiva do segundo, paranóia e neurose obsessiva cujo leve
excesso é corrigido e tornado normativo pela figura do policial, o Americano
médio. História de homens, é claro, e de homossexualidade edipiana de grupo:
vejamos a sequência da exibição mútua das cicatrizes ( as sérias) entre o
caçador e o oceanógrafo; mas também a sequência derrisória, mas tão simpática e
humana, da apendicite do policial ( grau zero da laceração/inscrição 1 simbólica).
O que elas assinalam- estas cicatrizes, feridas cerradas e integradas à memória
do corpo, nesta sequência de ternura viril cujo efeito especular é garantido na
sala? O cálido pertencimento à tribo humana; ou seja: extra-sexo ( horsexe). 2
Do que em
definitivo se trata aqui? Exatamente da mesma coisa que em O exorcista ( onde
os padres eram três), de que Tubarão está bem mais próximo que de Os pássaros:
é a subtração do sexo que se trata de conjurar aqui, e igualmente do abalo
pânico que invade o corpo diante desta possibilidade.
Pascal
Bonitzer, Cahiers Du cinema, 265
Tradução:
Luiz Soares Júnior
Nota:
1
scarification.
2 A
psicanalista lacaniana Catherine Millot chama de horsexe ao transexualismo, mostrando que na mulher a ânsia por ser
amada como “um”homem é efeito de um processo histérico, ao passo que no homem a
vontade de erradicação do órgão peniano consiste numa identificação psicótica
com a Mulher, isto é, com uma totalidade impossível.
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