quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A tela do fantasma





1. Glop. “Ele te sacode, te joga para o bucho e...glop!” É o tubarão, o grande branco ( great White) descrito por Quint durante a primeira aparição do bicho. Somos tentados igualmente a ver aí uma definição do impacto do filme, ou mesmo do tipo de cinema que ilustra: ele te sacode é o primeiro grau, o suspense, o medo; ele te manda para o bucho é o segundo grau, a simpatia para com o herói diante do perigo; a comunidade humana que, na sala escura, diante da infinitude de ondas e o horror que trazem, se unifica; e com o glop!, temos novamente a lei da pulsão, a paranóia social, a familiaridade pequeno-burguesa que te atingem insidiosamente no ritmo dos retornos à tela da grande boca denteada. Podemos então aplicar a  frase de Quint ao sistema social por inteiro, a sociedade dos Grandes Tubarões brancos ( aliás, este tubarão não é chamado de “branco” por acaso, não é?), à sociedade, esta “flor carnívora”, como lhe chamou um slogan de Maio de 68.
Potência da metáfora: estas mandíbulas se abrem em múltiplos sentidos. Impacto social deste cinema deliberadamente dependurado no anzol do fantasma. Deliberadamente mítico, resolutamente épico ( perto dele, o cinema europeu, ou pelo menos o cinema francês, em sua grande maioria aparece-nos como um cinema anêmico, sobretudo quando se pretende de aventuras, à La Melville, Verneuil e Labro).

2. Mandíbulas. O operador do suspense, do medo, é o fora de campo: ou antes, dois tipos de fora de campo articulados um ao outro. Um fora de campo metonímico, contíguo ao campo visual, de onde pode surgir a qualquer momento a Besta ( ela deve, evidentemente, aparecer ali onde – e quando- não a esperamos, por exemplo no estuário quando, quando a acreditamos situada ao largo da praia, ou detrás da vítima...) e que torna sensível a analogia entre o plano, a tela e a superfície da água: superfícies calmas, águas subitamente revoltas, perfuradas pelo que surge das profundezas. A metonímia, que agita o corpo, duplica-se assim com uma metáfora, que agita a alma: este fora de campo é também o irredutível declive de sombra, o abismo tanatológico, a insondável noite onde a Besta condensa seus pavorosos prestígios. Dois tipos de fora de campo, dois registros de narrativa: a metonímia é o registro da caça, do suspense, do futuro imediato; a metáfora é o registro da História, da culpabilidade e do passado profundo ( a história de Quint, os tubarões de Hiroshima, cena primitiva e pecado original). A articulação destas duas mandíbulas arrebata o naco.

3. Sacos. Em Tubarão, tudo é corpo, ou seja saco, ou digamos mesmo saco de lixo. Um dentro e um fora, um fora que aprisiona um dentro ( seu princípio vital). Sob a  perspectiva dos dentes do mar, as diferenças são abolidas entre um homem, um cachorro, um colchão pneumático, um barco a motor, um botijão de oxigênio. Como o próprio tubarão também não escapa à regra- como ele mesmo “é feito como um saco”), é mortal. No entanto, esta obsessão do corpo como um saco ou uma caixa ( a mais simples expressão do imaginário) necessita de uma observação: o horror consiste em que o corpo seja aberto. A boca escancarada do tubarão presentifica este horror sob um modo dramático, e não deixaremos de invocar a este propósito a vagina dentada, a castração, etc. ( vejamos a narração de Quint: ele te fixa com um olho morto, depois, quando adere a teu corpo, os olhos ficam brancos, etc). Mais interessante, mais significativo no entanto me parece aquilo que cristaliza a figura do oceanógrafo: a saber, a obsessão – horror e desejo mesclados- de ver o que existe no interior. No interior de que? Do corpo, e portanto isto quer dizer de qualquer coisa: começa com os restos humanos na espécie de barca com gelo do necrotério, depois o cadáver do pescador em seu barco fulminado, os dejetos heteróclitos no estômago do primeiro tubarão, e enfim o próprio tubarão, entendido como aquele que se esconde sob a superfície da água.  Compulsão de ver o inominável, de fazer emergir o fedor dos maus objetos internos. É assim que o caçador de tubarão e o oceanógrafo são complementares, e formam um quadro coerente da neurose social de nossa época, e especialmente da americana: a paranóia do primeiro frisa e guia a neurose obsessiva do segundo, paranóia e neurose obsessiva cujo leve excesso é corrigido e tornado normativo pela figura do policial, o Americano médio. História de homens, é claro, e de homossexualidade edipiana de grupo: vejamos a sequência da exibição mútua das cicatrizes ( as sérias) entre o caçador e o oceanógrafo; mas também a sequência derrisória, mas tão simpática e humana, da apendicite do policial ( grau zero da laceração/inscrição 1 simbólica). O que elas assinalam- estas cicatrizes, feridas cerradas e integradas à memória do corpo, nesta sequência de ternura viril cujo efeito especular é garantido na sala? O cálido pertencimento à tribo humana; ou seja: extra-sexo ( horsexe). 2
Do que em definitivo se trata aqui? Exatamente da mesma coisa que em O exorcista ( onde os padres eram três), de que Tubarão está bem mais próximo que de Os pássaros: é a subtração do sexo que se trata de conjurar aqui, e igualmente do abalo pânico que invade o corpo diante desta possibilidade.


Pascal Bonitzer, Cahiers Du cinema, 265

Tradução: Luiz Soares Júnior





Nota:
1 scarification.


2 A psicanalista lacaniana Catherine Millot chama de horsexe ao transexualismo, mostrando que na mulher a ânsia por ser amada como “um”homem é efeito de um processo histérico, ao passo que no homem a vontade de erradicação do órgão peniano consiste numa identificação psicótica com a Mulher, isto é, com uma totalidade impossível. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário