sábado, 17 de janeiro de 2015

A imagem, aparentemente...



Em Phenomena, Mrs. Bruckner cobriu todos os espelhos de sua casa para evitar que seu filho contemple sua deformidade. Em Profondo rosso, Suspiria e Trauma, por exemplo, os momentos de revelação são ligados sempre a uma imagem especular, como se apenas o reflexo autorizasse um acesso a uma verdade do mundo, de outra forma inacessível. É a mesma idéia que encontramos nos espelhos dos quadros de Delvaux, de quem alguns são visíveis em Síndrome de Stendhal ( Pygmallião e Trens da noite). A verdade, se existe, se situa sempre no reflexo, na imagem trucada, no desdobramento. A esquizofrenia que se instala em Ana Manni ( Asia Argento) é em primeiro lugar significada pelo plano de um espelho oval no qual se reflete uma cicatriz sobre seu rosto, signo exterior de um corte interior. Mais tarde, quando decide acordar à sua aparência a sua nova personalidade, vestindo uma peruca loira, Argento escolhe filmar a sequência através de um espelho. Espelho revelador, como no fim de William Wilson, onde o herói-narrador descobre o outro lado de sua personalidade- um duplo tirânico saído da infância- diante de um espelho.
Para Dario Argento, não há um além da representação, e o real só é perceptível através de suas produções artificiais. “O quadro não é uma janela aberta sobre o mundo, mas uma vitrine na qual o mundo se torna cenário”. Helena Markos, pura sucessão de simulacros, encarna bem este processo de imagens-implicantes: uma imagem oculta sempre uma outra. Ser bi-face, semelhante a estas cartas sem profundidade que Alice encontra no desvio de uma floresta, superfície contra superfície.
Em seus filmes, é preciso portanto levar muito a sério as aparências, pois são elas que abrem para as profundezas, que revelam a substância das coisas. Daí a importância de tudo o que remete ao ilusório, ao engano, à falsificação, ao travesti ou ao truque. A profundeza está sempre na superfície, assim como o aparentemente falso é verdadeiro. Isto marca uma passagem, uma diferença fundamental para com a narrativa policial clássica, para quem a solução antes se encontra naquilo que não foi visto, ou subtraído ao olhar do investigador. Nos filmes de Argento, o fora de campo da imagem conta infinitamente menos que seu fantasma.


Por um fio ( entre a obra-prima e o cromo)

À sua maneira, a obra de Argento constitui uma síntese entre uma certa modernidade ( aquela dos anos 60 na Itália, mas também da Nouvelle vague francesa) e o cinema de gênero. Cada um de seus filmes demonstra como a primeira pôde irrigar a segunda, no entanto permanecendo fiel à estrutura do giallo. Sua arte do desvio, sua ciência da bifurcação, sua capacidade de fazer nascer de um detalhe ou de uma simples ilusão de ótica um grande momento de cinema, testemunham da posição singular do realizador de Ópera na história do cinema italiano. Da modernidade, ele soube tirar uma audácia formal própria a fazer filmes, um campo de experimentação- plástico, figurativo, formal- permanente. Do cinema de gênero, que jamais abandonou, conservou um repertório de formas e de motivos populares, profundamente ancorados na cultura italiana. A extrema distensão da narrativa, a inadequação ótica e psicológica entre o mundo e seus personagens, o caráter intercambiável das intrigas ( em Síndrome de Stendhal, um outro filme começa ao cabo de uma hora) ou a potência angustiante da imagem ( em Argento, toda imagem suscita questão) são signos modernos, mas de uma modernidade jamais indiferente às coações de sedução e identificação próprias ao cinema de gênero. Esta foi sem dúvida uma das grandes lições que Argento reteve de Sergio Leone: “Leone me colocou os pés no chão. Leone não é um teórico; ele dizia: ‘Não, o público não gosta disso.’ Ele me ensinou a levar em conta o público. Somos narradores, não profetas”.
“É esta necessidade de comunicar que torna a arte comercial mais vital que a arte não comercial, e portanto potencialmente mais eficaz, para o melhor e para o pior”, escreve Panofsky. O estilo de Argento visa à implicação máxima de seu espectador, e este é um dos paradoxos sobre os quais sua obra se constrói: de um lado, uma vontade de colocar a imagem à distância, e do outro uma estratégia perdulária disposta a tudo para ganhar a adesão do espectador e produzir o que os barrocos chamavam de meravaglia. Daí uma dimensão  simultaneamente reflexiva e popular de sua obra que, ao mesmo tempo em que se interroga sobre o que a tornou possível, joga com o efeito brilhante, a exuberância, a complicação dos motivos, os choques cromáticos ou musicais ( heavy metal e ópera em Ópera), e os sentidos, cuja tarefa consiste em provocar a vertigem.

Dificilmente redutível a uma categoria, a obra de Argento escapa de fato a toda classificação: apesar de possuir uma espantosa coerência ( dois planos são suficiente para identificar um de seus filmes), testemunha uma constante heterogeneidade. Esteticamente, seus filmes se inspiram tanto nos grandes pintores maneiristas do século XVI quanto na fotonovela italiana dos anos 60, os fumetti Neri ( Diabolik, Kriminal e outros Killing). Em sua fantasia de esqueleto, a Mãe das Lágrimas de Inferno evoca por exemplo Satanik, justiceiro sádico que fez sua primeira aparição em 1966 ( antes de ser levado para as telas dois anos mais tarde por Piero Vivarelli), mas também a Grande Guilhotina que assombrava as pinturas medievais de Signorelli. Cineasta do collage, no qual o coro dos hebreus do Va pensiero de Verdi pode servir de tela sonora a uma sequência gore ( vejamos a interminável agonia de Gabriele Lavia em Inferno), Argento se tornou mestre na arte de fazer variar, ou de questionar, às vezes brutalmente, regimes estéticos que pensávamos consagrados. Como, por exemplo, legitimar este plano de Síndrome de Stendhal onde, depois da visita da sala Botticelli dos Office em Florença, em que aparece filmada como imagem de síntese a descida de uma pílula no esôfago de Asia Argento? Como compreender a coerência plástica que justifica o aspecto kitsch da máquina verneana ( de Jules Verne) do caçador de ratos em Fantasma da ópera ou da garganta de Carlotta, verdadeira inserção pornográfica, de que vai sair a ária do Romeo e Julieta de Gounod? Todo Argento está aí: “Lutas entre sons, equilíbrio perdido, ‘princípios’ revirados, rufo inesperado de tambores, grandes questões, aspirações sem fins visíveis, impulsões incoerentes em aparência, cadeias rompidas, ligações quebradas, retomadas em um único elo; contrastes e contradições, eis aí a nossa Harmonia”. Há nele este gosto do enxerto impuro, da experimentação, da mistura constante entre matérias nobres ( a ópera) e triviais ( a fotonovela, ou mesmo o pornô-soft), por meio da qual retoma a grande forma do cinema popular italiano.

Na sequência de abertura de Profondo rosso, Marc ( David Hennings) interrompe seus músicos e lhes transmite sua profissão de fé: “Está muito bem, lhes diz ele. Talvez até bom demais. É muito estudado, muito preciso, muito formal. Tem de ser mais arrebatado. Não esqueçam que este tipo de jazz nasceu nos bordéis”. Alguns minutos mais tarde, à beira de uma fonte da piazza em Turim, uma conversação se dá entre Marc e seu amigo Carlo, cujos pontos poderiam ser aqueles endereçados por Argento à indústria do cinema italiano: “Veja bem, Marc, só há a política que nos separa, pois ambos tocamos bem. Mas eu sou um proletário do piano, e  você é um burguês. Você toca para a arte e goza com isso. Eu para sobreviver, mas não é a mesma coisa”.
O contraste governa o imaginário de seus filmes: por estabelecem relações menos impensadas que impensáveis, porque elevam a antítese a seu zênite, porque visam o mundo a partir de um princípio de semelhança para consigo mesmo ( princípio este cuja troca, circulação e metamorfose não passam de avatares), os filmes de Argento poderiam reclamar esta “dialética explosiva” que Genette designou como a alavanca do pensamento barroco: “o mundo assim bisotado se torna ao mesmo tempo vertiginoso e manejável, já que o homem encontra em sua própria vertigem um princípio de coerência”.
Ao reafirmar sem cessar sua crença absoluta no poder de ilusão do cinema, a obra de Argento poderia iluminar este célebre aforismo de Bresson extraído de suas Notas sobre o cinematografo: “Quanto maior o sucesso, mais ele frisa o fracasso ( como uma obra-prima de pintura frisa o cromo)”. Em 1985, a direção artística do Teatro Sferisterio de Macerata propõe a Argento encenar o Rigoletto de Giuseppe Verdi. Mas o projeto não vai adiante, por conta de infidelidade ao libreto. Sua versão rock e macabra, que metamorfoseia o Duque de Mântua em um vampiro lívido e depressivo, é recusada. Se a ópera não quer Argento, ele fará a ópera vir até si. Será até mesmo o seu fantasma. Em 1987, por causa de Ópera, ele investe no Scala de Milão e encena o Macbeth de Verdi, depois doze anos mais tarde nos dá sua versão do Fantasma da ópera de Gaston Leroux. Mas ele tira do fantasma ( Julian Sands) a máscara que todos os seus precedentes intérpretes- de Lon Chaney a Paul Williams- usavam, e se serve da arquitetura da Ópera Garnier como de uma metáfora do mundo da arte: na superfície, a cena e as lojas douradas, cheios de notáveis pedófilos e cantoras obesas; em profundidade, um dédalo de galerias enlameadas, percorridas por batalhões de ratos; e no meio, uma jovem soprano dotada de uma voz cristalina, que vai provocar uma conflagração dos espaços. Pois esta é finalmente a única coisa que conta, a pureza da voz e da melodia: “a arte não está na intenção, mas na execução”. Argento, é claro, filma do ponto de vista das profundezas, da violência e da pulsão que Christine Daaé sente advir em si. Ela vai aprender logo que a beleza do canto emana menos de seu órgão vocal que de suas tripas. O fantasma encarna esta nobreza selvagem, instintiva mesmo, que tanta falta faz à arte civilizada, desmoronando sob o peso de tradições ultrapassadas e rígidas. Há nele uma espécie de elegâncias bárbara: majestoso com sua musa , depois um animal, quando fareja Carlota como um felino, bloco de obscenidade dissimulado sob as camadas de carne e de poeira. Agachado no fundo de seu antro e cercado de ratos, o fantasma toca. Mas aquilo que lhe proporciona a música que sai de seu órgão não tem nada a ver com o mesquinho gozo do dandy; é um sentimento vital, sua única chance de sobrevivência.

Parece que os filmes de Argento carregam em si um desafio lançado à atividade crítica: eles não a intimam a buscar uma verdade oculta nem a autopsiar um discurso, mas em trazer à luz a estrutura de um sistema original, cujo código trata-se de encontrar. A significância, e  não a “significação”- para retomar aqui a famosa distinção de Barthes-, vive no coração do cinema de Argento: “O que é a significância? É o sentido na medida em que este é produzido sensualmente”.
A percepção emotiva do espectador, sua capacidade de adesão ou mesmo de recusa, fazem com freqüência figuras de parasita para o crítico que prefere o método discursivo ao método indutivo. Ora, o cinema de Argento é um cinema do efeito, que privilegia a emoção ao propósito, o afeto à reflexão, a intuição à elucubração intelectual: todos os seus filmes, desde o Pássaro das plumas de cristal até o Sangue dos inocentes, encenam um conflito entre estas duas abordagens, e todos terminam com a vitória ( precária) dos sentidos sobre a razão, da percepção sobre a ação, da implicação física ou ótica sobre a distância analítica. Há aqueles que, a partir de provas, buscam sem sucesso encontrar a pista do assassino ( função contrapuntística clássica da polícia, sempre impotente), e  os outros, que ao se instalarem no coração dos fenômenos procuram uma empatia sensorial  com o mundo que os circunda, quer sejam estes óticos, sonoros ou plásticos.


Dario Argento, O mágico do medo, Jean-Baptiste Thoret

Tradução: Luiz Soares Júnior.


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