quinta-feira, 19 de março de 2015

“Um juiz? Um investigador? Deus?”



No último plano de Retorno do filho pródigo, Siracusa,- uma das defensoras mais inspiradas da utopia de que Ellio Vitorino nos conta o nascimento, as contradições, e finalmente o fracasso em Mulheres de Messine- está nos estertores de sua vontade. Ela sai do quarto onde acabara de fazer uma análise desencorajadora da situação com Ventura- também ele um dos participantes mais obstinados da vila autônoma que alguns Operários e camponeses haviam construído nos dias seguintes à Segunda guerra mundial-, e, sem forças, senta-se no limiar de uma casa. Ela olha o mundo diante de si, no vazio da paisagem, toma a pose da Derellità de Sandro Boticelli e, enquanto uma lenta panorâmica reenquadra a parte baixa de seu corpo, Siracusa deixa, cansada, descair seu braço ao longo do corpo. A personagem parece se entregar ao abandono, mas num último gesto de revolta mantém o punho esquerdo fechado.
O filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet encerra-se com este último signo de resistência, centrado sobre esta obstinação do desespero. Eles não renunciam. No momento em que as guerras contra os povos continuam a se infiltrar, ou a se imiscuir- uma vez que as demonstrações de força que seus instigadores julgam necessárias não são suficientes para forçar o adversário a se entregar sem combate-, em um cinema que ameaça “de uma outra maneira” a potência cada vez mais esmagadora da indústria, uma última linha de resistência se traça. Eles estão entre os últimos a não ceder, a empreender uma última batalha com os meios irrisórios mas tão bem utilizados que ainda se mostram eficazes, a encadear filme sobre filme para lançar os contra-ataques do desencantamento, para contra-atacar golpe sobre golpe aos Francis Ford Coppola e aos fabricantes de Táxis da vida – em uma guerra sobre a qual a maioria aposta, sobretudo os agressores, que está ganha de antemão: O Retorno do filho pródigo, e depois Humilhados- um depois do outro, um no outro, retém os discursos e as peripécias desta batalha.

Em O Retorno, a coalizão é completa. Todos os invasores implicados no ataque. Na Itália de depois da Segunda guerra, não são apenas os defensores da propriedade, como Carlo, que detalha as leis do cadastro e explica que não há terra sem proprietário, mas também os ‘caçadores”, armados de fuzil e adornados com lenços vermelhos, que explicam amical e doutamente aos operários e aos camponeses que sua autogestão não tem futuro. Eles seguem a linha direta ( e o ‘comunista’ Elio Vitorini a compreendia certamente neste sentido) da política produtivista stalinista, onde a prioridade era reservada à produção e onde toda intervenção do povo deveria evitar constituir-se em obstáculo à prosperidade do mercado, portanto do progresso: “Porque hoje não há nada além de um único mundo na economia. E quem se isola perde o trem... Vocês podem continuar? Seus pulmões vão estourar se continuaram.” Fim da História? Fim de uma “luta de classes”  de que o “socialismo científico” teria, com o ‘fim do comunismo”, apagado a “consciência” ao abandonar às “religiões” a conduta e os frutos da revolta. Quando um dos heróis olha reto diante de si, não em direção ao fora de campo mas do lado da visão- do espectador-, o que ele vê e de quem é o objeto da visão? Ironicamente, o roteiro se pergunta: “Um juiz? Um investigador? Deus?”

Em O mundo diplomático, Jacques Rancière explica que o ‘romance’ de Elio Vittorini é percorrido por uma “tensão” que Straub e Huillet filmam, e que “poderia se resumir em dois nomes, Bertold Brecht e Friedrich Hölderlin”, o diretor do rigor dialético e o poeta que “esteve entre os primeiros a conceber esta revolução das formas do mundo sensível de que o materialismo marxista retomou a idéia à sua maneira”. A voz e os personagens se fundem à natureza. Eles seguem caminhos que não levam a lugar nenhum. No começo da segunda parte do Retorno, três planos filmam os dois protagonistas, Cataldo e Toma, que compartilham suas inquietudes, e, a cada vez, a câmera permanece, depois de sua saída do campo, fixada mais e mais longamente sobre um atalho cujo vazio é submergido pela abundância da floresta. As árvores e a verdura onde os “atores” de Operários e camponeses liam a carta de sua história explodiu. O campo apossou-se do campo; ele o recobriu para o levantar da cortina do último ato, a hora do julgamento e do desenlace.

O texto da conferência que deu Jean-Luc-Nancy na Escola nacional da paisagem, texto que acaba de publicar em No fundo das imagens , é de agora em diante uma referência inevitável para quem deseja falar da paisagem,em pintura como em cinema. Para além de todos os ‘desprezos’ do nacionalismo, do patriotismo , ou mesmo de toda ‘comunidade’, “ não se torna menos claro... que a nação ( le pays) e o povo remetem-se um ao outro. Talvez o povo seja a nação que fala, e talvez o rincão ( le pays) seja a língua, quando é deposta no domínio do fora de sentido”. E também, mais diante: “O camponês é aquele cuja ocupação é o rincão. Ele o ocupa e se ocupa, e é ocupado por ele: ou seja, ele o toma sobre si e é tomado por ele”. Aqui, é antes de tudo uma questão de vozes. Escandidas e próximas do recitativo, elas ressoam. Perdem-se em sua ressonância. Confundem-se com seu eco. Os “pagãos” falam a um deus que não lhes ouve. Quer se trate do cenário da floresta ou, ao final, do quarto, as vozes contam menos uma história que a acentuam, dando-lhe seu ritmo e peso. As palavras se infiltram e rebrotam entre os troncos e as folhas. Quando um movimento de câmera, às vezes, passa de um interlocutor para o outro ou quando a encenação passa do campo ao contracampo, nas soberbas falsas tintas de Renato Berta, é para se colocarem à“altura das vozes”.

A “humilhação”, para os heróis que Vitorini inventou e que os Straub filmam, consiste em ser enxotado de sua paisagem e de seu trabalho, de ser posto no desemprego porque seu rendimento é insuficiente. Eles são colocados na porta do Paraíso. Não sabem mais onde pôr o pé. O Retorno... retoma um tema recorrente do western  que é o fechamento, a divisão das terras, as barreiras que seqüestram a extensão à liberdade...é, por exemplo, o tema de Man whitout a star), de King Vidor. Como o Tales do Teeteto, os camponeses e os operários são tomados pela aêtheia, pela desterritorizalização, e tombam sob sua força. O Retorno... é o filme desta queda, deste abandono e deste sobressalto que assinalam os braços que descaem e o punho fechado. A música é de Edgar Varèse, esta Arcana cuja coda foi composta em 1927 e só foi acabada alguns anos antes de sua morte, trinta anos depois. O film se abre sempre sobre um outro fim. Ele não se satisfaz jamais com seu acabamento. Esta última resolução ecoa, em Jean-Marie Straub, ao curta-metragem realizado em 1972, em plena guerra do Viêt Nam, quando já decolavam os inquebrantáveis B52, sobre a Música de acompanhamento para uma cena de filme de Arnold Schönberg, e cujo sub-título era Perigo ameaçador, medo, catástrofe. Nos extremos do desastre resta no entanto, Friedrich Hölderlin ainda, o início do Patmos: “Muito próximo/ e difícil de captar, o deus!/ Mas no lugar do perigo cresce/ também aquilo que salvará”.



Louis Seguin, Quinzena literária, abril 2003. 

Tradução: Luiz Soares Júnior.


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