quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Intolerância, David W. Griffith




Antes de fazer Nascimento de uma nação, Griffith tinha terminado um melodrama intitulado The Mother and the Law, baseado no massacre de Ludlow, no Colorado, onde dezenas de grevistas de uma mina dos Rockfeller encontraram a morte. O filme apresenta também uma semelhança- mas trata-se apenas de uma coincidência- com o caso Stielow ( um condenado à morte fora salvo no último momento da cadeira elétrica pela confissão do culpado), que fez sensação na época do lançamento do filme. O sucesso colossal de Nascimento de uma nação, assim como certas críticas endereçadas pessoalmente a Griffith ( não o acusaram de racismo?), dispersaram suas ambições e o levaram a imaginar, a partir do núcleo de The mother and the law, um filme no qual o gigantismo e a mensagem de alcance universal impusessem o silêncio a todos. Ele estava decidido a enriquecer o melodrama contemporâneo por meio de três evocações, três metáforas históricas ( A Queda da Babilônia, a Crucificação de Cristo, a Noite de São Bartolomeu) que dariam ao conjunto uma amplidão espaço-temporal jamais vista. A filmagem iria durar 16 semanas e custar 400 000 dólares ( soma enorme para a época, que depois os historiadores multiplicarão generosamente por cinco). Cenários gigantescos foram construídos e, para as cenas que se desenrolam no cenário do palácio da Babilônia ( 45 metros de altura), Huck Workman, o cenarista principal, fabrica um “chariot” de travelling gigante, de 45 m igualmente, e do qual “ a plataforma no ápice, -escreve o operador Billy Bitzer-, mediria cerca de dois metros de lado, e não estava longe de ter 20 metros de largura na base.” A torre estava montada sobre seis jogos de bogies com quatro rodas tomadas de empréstimo a vagões ferroviários, e havia um elevador no meio. O chariot ( carro de vagão) se deslocava sobre trilhos posicionados à distância, oferecendo recuo suficiente para que a câmera englobasse o conjunto do cenário, sobre o qual estavam reunidos 5000 figurantes, e sobretudo os personagens situados em torno das grandes muralhas do palácio. Esta gigantesca “tour a roulettes” avançava e recuava sobre trilhos, impulsionada delicadamente por 25 manobras. Uma outra equipe assegurava o funcionamento do elevador, que deveria subir enquanto o “chariot” se deslocava para a frente. Os planos filmados com esta aparelhagem foram os mais espetaculares do filme.
A notar que, assim como Griffith trabalhava sem roteiro, os cenários construídos para o filme o foram sem plano de conjunto prévio. Eles foram se constituindo ao sabor das idéias e das cotidianas inovações do realizador. A metragem da película impressa durante a totalidade da filmagem equivalia a 76 horas de projeção, mas o filme, em seu lançamento, comportava 14 bobinas ( 13. 500 pés), ou seja, em torno de 3 horas de projeção. O sucesso, tanto na América quanto no estrangeiro, ficou longe de estar à altura das esperanças, e sobretudo do capital investido. O filme perdeu o equivalente à metade de seu orçamento, e deixou Griffith endividado por longo tempo. A fim de recuperar um pouco o dinheiro, ele remontou e lançou separadamente em 1919 o episódio moderno sob o título inicial, The mother and the law, e o episódio babiloniano sob o título The fall of Babylon. O insucesso do filme foi o golpe fatal para a Triangle, que tinha participado da produção. Ela foi dissolvida em 1918, depois de três anos de existência. ( No ano seguinte, Griffith iria fundar com Douglas Fairbanks, Mary Pickford e Chaplin, a Artistas Associados, que desapareceria sessenta anos mais tarde com outro retumbante fracasso comercial, Heaven’s gate de Cimino).
Ao longo dos anos, os historiadores permaneceram muito divididos em relação aos méritos da obra. Divididos não entre detratores e laudatores- ninguém negaria a envergadura única da obra-, mas divididos no interior de si mesmos e em relação às críticas e elogios que cada um faz ao filme. Embora admire o filme, Delluc fala de “tohu bohu inexplicável”, Mitry de “monumento construído sobre a areia”, Sadoul critica a “ideologia pretensiosa do grande homem, sua ausência total de senso do ridículo, seu pedantismo de autodidata”, etc. Ele ridiculariza o modo como os personagens são chamados, não sem cometer, ao mencioná-las, um monumental contra senso ( The Dear One torna-se a Querida Numero Um, The Friendless One vira A Abandonada Número um). Tirando alguns admiradores incondicionais, como Claude Beyllie, que estima que a única forma de entrever a unidade do filme é ao assimilá-lo ao poema de Whitman( que aliás inspira o leitmotiv visual da mulher com o berço), é sobretudo aos teoristas que o filme encanta, e sobretudo aqueles que prezam a análise das originalidades, as exceções, os grandes naufrágios da história do cinema, com o objetivo de, através deles, adivinhar o que poderia ter sido o cinema se tivesse tomado outros caminhos. Para eles, Intolerância é evidentemente o filme ideal, por representar o mais fabuloso impasse do cinema, aquele no qual, guiado por sua vitalidade instintiva, o cinema se preservou de perseverar. Tendo indicado um novo caminho para os cineastas do mundo inteiro, Intolerância não foi seguido nem imitado por ninguém ( salvo talvez por Buster Keaton em Three Ages, mas a título de paródia!). Mesmo os formalistas russos, sobre os quais o filme mais exerceu influência, em nosso conhecimento não se aventuraram em nenhum empreendimento análogo. Pierre Baudry resumiu bem ( em As aventuras da Idéia) em que consiste a unicidade do filme: “O que é problemático aqui antes de tudo é que, contrariamente à quase totalidade dos filmes da história do cinema, o princípio de organização de Intolerância se estabelece sobre um material deliberadamente heterogêneo (...). Que grupos de personagens e de situações que não tenham na realidade nada em comum se encontrem reunidos no mesmo espaço ( a tela da projeção) , este é o escândalo de Intolerância. (...). O filme de Griffith é o lugar de uma tensão entre a heterogeneidade do seu material ficcional e a racionalidade que o funda e unifica”.
Todo amador de cinema ( entendo do cinema tal como ele é e foi nas suas obras mais duráveis) vê bem que esta tensão, se tivesse se tornado a lei comum, teria sem dúvida provocado a morte desta arte tão frágil e ameaçada- justamente enquanto arte- a cada etapa de seu desenvolvimento. O cinema compreendeu que em duas, três ou mesmo quatro horas de projeção era-lhe impossível evocar, compreender e fazer compreender , e ainda menos ligar a uma intenção individual e particular, eventos históricos e políticos distintos, infinitamente complexos e – além do mais- situados em épocas diferentes. Ele compreendeu que sua vocação era ser um microscópio que serviria para escrutar territórios menores, às vezes territórios mais vastos, mas então estritamente limitados em seu cadre e suas perspectivas ( ver, neste sentido, o admirável rigor de um filme como o primeiro Dez mandamentos de DeMille, que repousa igualmente sobre uma metáfora entre diferentes épocas). Mais próximo da novela que do romance ou do afresco, mais próximo da peça em ato único que da tragédia em cinco atos, o cinema descobriu prematuramente em sua história que sua grandeza residia em sua modéstia e intensidade na minúcia. Ele sentiu que a Idéia deveria desaparecer ( s’effacer) perante a análise e a exposição dos fatos, e que unicamente este desaparecimento poderia , ao fim, servir à Idéia.
Na oposição a isto, Griffith quer que a Idéia ponha os fatos, os personagens e as épocas sob seu jugo. Ele tem por certo que a metáfora é, em si mesma, mais importante que os elementos que ela põe em relação. Mas a Idéia, quando se torna tão dominadora, se reduz no cinema a ser nada além que um vago truísmo sentimental, como aqui- a bem dizer, sempre útil a repetir-, que um traço, um grito clamando a que nos elevemos contra todas as formas de puritanismo, intolerância, injustiça. Quanto aos fatos, aos eventos representados na tela, tornam-se meras ilustrações, monolíticas e desvitalizadas, da Idéia.
A originalidade de Intolerância é, portanto, antes de tudo formal. Mas mesmo neste plano ela permanece limitada a um nível bem particular. Por exemplo, ela não se situa no estilo respectivo dos diferentes episódios. É significativo nesse sentido que os historiadores antigos ( Sadoul, por exemplo) e os teoristas modernos ( Pierre Baudry) estejam totalmente de acordo- uma tal identidade de visões é algo raríssimo- ao designar os diferentes empréstimos estilísticos ( um a um reconhecidos e negados pelo próprio Griffith) que determinam a especificidade formal de cada uma das histórias. O episódio do Cristo evoca as Paixões produzidas pela Pathé e rodadas em torno de 1900 ( sobretudo aquela de Zecca e Nonguet, 1902), tableaux vivants com caráter edificante. O episódio de São Bartolomeu se refere aos Filmes de Arte , e notadamente ao célebre Assassinato do duque de Guise de Le Bargy e Calmettes ( 1908), do qual ele toma emprestada esta teatralidade solene e rígida que impressiona tanto os cineastas no mundo inteiro, em particular Dreyer. The Fall of Babylon é claramente inspirada dos primeiros peplums italianos, Quo Vadis de Guazzoni ( 1912) e Cabiria de Pastrone ( 1914), que Griffith sonhava emular. Quanto ao episódio moderno, é um melodrama na linha dos numerosos curtas-metragens rodados por Griffith na Biograph, ao qual é dado um acento social mais pronunciado.
A originalidade essencial de Intolerância reside evidentemente no entrelaçamento de seus quatro episódios. Esta representa o produto de inumeráveis audácias e inovações da montagem, e obedece a um princípio de aceleração constante. As partes de cada um dos episódios, à medida em que o filme avança, tornam-se cada vez mais curtas. Esta aceleração intensifica, no plano dinâmico, o conteúdo dramático de cada história. Griffith dá assim ao suspense ( que ele não inventou, pois este se confunde com as próprias origens do cinema) suas “cartas de nobreza”, assim como uma incrível envergadura, abrangendo as épocas e os continentes. Depois de Griffith, esta lição foi apreendida, mas reduzida a proporções mais modestas. É de se notar, no entanto, que este suspense funciona muito melhor num plano mecânico e épico que lírico e emocional, Griffith não tendo, ao contrário de um DeMille, o dom de fazer com que o grandioso e o tocante, o monumental e o familiar se alternem reciprocamente. Visto hoje, Intolerância aparece como a peça de museu por excelência, cuja sábia e complexa construção é dissecada, autopsiada com paixão pelos teoristas. Mas no devir estético do cinema, o filme se coloca claramente à margem das forças vivas que permitiram a esta arte durar e marcar seu território.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

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