Jamais esquecer que em “metafísica” também existe o “física”.
Stalker é um filme soviético ( é o sexto de Tarkovski e, segundo
penso, seu melhor), mas “to stalk” é um verbo em inglês ( é mesmo um verbo
regular). To stalk é precisamente perseguir de perto, uma forma de se aproximar
gingando, uma marcha, quase uma dança. No “stalk”, a parte do corpo que tem medo
permanece para trás, e aquela que não tem segue adiante. Com suas pausas e seus
pânicos, o “stalk” é a marcha de quem avança em território desconhecido. Em
Stalker, o perigo está em todo lugar, mas não tem rosto. A paisagem também não
tem limites, horizonte, nem Norte. Encontramos alguns tanques, usinas, canalizações
gigantes, uma via férrea, um cadáver, um cão, um telefone que toca sempre, mas
a vegetação está prestes a recobrir tudo isso. Esta paisagem industrial fóssil,
esta ponta de século vinte transformada em uma camada geológica ( Tarkovski foi
geólogo na Sibéria de 1954 a 1956, disso permanece alguma coisa) é a Zona. Não
se vai até a Zona, desliza-se por ela de forma dissimulada ( ela é guardada por
soldados). Não se anda aqui; se “stalke”.
Vimos no cinema deambulações noturnas, cow-boys que avançam de
forma coquete com passinhos para disparar para cima, atropelos de multidões,
casais que dançam: jamais vimos o stalk. O filme de Tarkovski é antes de tudo
um documentário sobre uma certa forma de andar que talvez não seja a melhor (
sobretudo em URSS), mas que é tudo o que resta quando todos os pontos de
referência desaparecerem e nada mais é certo. É portanto uma grande estréia:
uma câmera segue três homens que acabam de penetrar na Zona. Onde aprenderam
este passo contorcido? De onde vem? E de onde esta familiaridade com este no man’s
land? A falsa familiaridade do turista que não sabe onde ir, o que olhar, o que
temer? Um veio sem nada, com uma garrafa de vodka num saco de plástico: ele
acabou de sair de uma farra mundana. O
outro, pelo contrário, carrega alguma coisa de secreta em um pequeno saco de
viagem. O terceiro, aquele que não possui nada além de seus olhares furtivos e
seus impulsos logo desanimados, é ele, o Stalker. Seria preciso que antes de
nos aventurarmos sobre as inumeráveis interpretações que este filme-albergue
espanhol reivindica, o espectador olhe atentamente três atores russos (
excelentes: Alexandre Kaidanovski, Anatoli Solonitsine e Nicolai Grinko) “stalker”
na Zona.
O filme não começa assim de uma forma tão abrupta. É um pouco mais
explicativo ( não muito). Tarkovski, adaptando livremente um romance de ficção
científica dos irmãos Strougaltski, imagina que na sequência de um acidente
misterioso uma parte do planeta tornou-se diferente, perigosa, e que lhe
interditaram o acesso. A Zona é esta “parte maldita”, retornada ao estado
selvagem, reserva de fantasmas, território de uma lúgubre beleza. Marginais, em
troca de um pouco de dinheiro, fazem-na “visitar”. Estes passageiros que vivem
miseravelmente entre dois mundos são os stalkers. Este do filme, um pouco guia
turístico, um pouco iluminado, tipo muito amendigado, levou desta vez com ele
um Escritor e um Professor. O Escritor ( o homem com o saco de plástico) duvida
de tudo, sobretudo de si mesmo. O Professor ( o homem com o saco de viagem) não
fala muito mas tem uma ideia na cabeça. Pois existe, é claro, um fito neste
trip a três: no centro da Zona se encontra uma “câmara” que, segundo dizem, realiza
os desejos daquele que nela penetra. Segundo dizem.
Chegados à câmara, o stalker e seus dois clientes entram em pânico:
ninguém ultrapassará o limiar. Em primeiro lugar por medo. Por sabedoria em seguida.
Por medo: se a câmara é um embuste, é humilhante ter acreditado; se ela realiza
realmente os desejos, não restaria nada mais a esperar da vida; se ela realiza
os desejos inconscientes, não se sabe ao que nos expomos. Por sabedoria: não
existe vida viva sem absoluto, é certo, mas o absoluto não é um lugar, é um
movimento. Um movimento que leva a derivar, que deporta ( em todos os sentidos
do termo), que faz “stalker”. Pouco importa, no limite, aquilo com que
embarquemos, aquilo em que cremos crer ou cremos que os outros crêem. O que
conta é se colocar em movimento.
Impossível de se impedir, enquanto espectador, de “stalker” nesta
floresta de símbolos que é o filme. O roteiro de Tarkovski é uma máquina
suficientemente infernal para não excluir a priori nenhuma interpretação. Em um
caleidoscópio, podemos ver o que quisermos. A Zona é talvez o planeta Terra, o
continente soviético, nosso inconsciente, o próprio filme. O stalker pode bem
ser um mutante, um dissidente, um analista selvagem, um sacerdote em busca de
um culto, um espectador. Podemos “jogar com os símbolos” com o filme, mas é um
jogo de que não podemos abusar ( nem em Tarkovski nem em Fellini ou Buñuel,
outros grandes humoristas da interpretação). Aliás, a novidade e a beleza de Stalker estão
em outro lugar.
Quando o filme acabou, quando estamos um pouco cansados de
interpretar, quando comemos tudo o que nos foi entregue, o que resta? O mesmo
filme, exatamente. As mesmas imagens insistentes. A mesma Zona com a presença
da água, seu lodaçal sinistro, seus metais enferrujados, a vegetação voraz, a
umidade. Como todos s filmes que desencadeiam no espectador uma fúria
interpretativa, Stalker é um filme que marca pela presença física dos
elementos, sua existência teimosa, sua forma de ser aí. Mesmo se não houvesse
ninguém para vê-los, para se aproximar ou filmá-los. Isto não é de ontem: já em
Andrei Roublev havia a lama, este ponto zero da forma. Em Stalker, há uma presença orgânica dos elementos: a água
rosada, os charcos embebem a terra e corroem as ruínas.
Um filme, podemos interpretá-lo. Este se presta a isto ( mesmo que no fim das contas se furte). Mas não somos
obrigados. Um filme, pode-se também olhá-lo. Podemos capturar a aparição de
coisas que nunca tínhamos visto em um filme. O espectador-sentinela vê coisas
que o espectador-intérprete não sabe mais ver. O sentinela permanece na superfície,
pois não mais crê no fundo. Eu me perguntava no início deste artigo onde os
personagens tinham aprendido o stalk; esta marcha torta daqueles que tem medo
mas que esqueceram de que. E estes rostos prematuramente envelhecidos, estas
mini-Zonas onde ríctus se tornaram rugas? E a violência obsequiosa daquele que
espera receber cacetadas ( ou dá-las? isso também se esqueceu?). E a falsa
calma do monomaníaco perigoso e os raciocínios no vazio daquele que é tão só?
Isto não vem apenas da imaginação demiúgica de Tarkovski, isto não
se inventa, vem de outro lugar. Mas de onde? Stalker é uma fábula metafísica,
um curso de moral, uma lição de fé, uma reflexão sobre os fins últimos, uma
busca, tudo o que se quiser. Stalker é também o filme onde, pela primeira vez,
cruzamos com corpos e com rostos que vem de um lugar a que só conhecemos por
ouvir-dizer ou ouvir-ler. Um lugar de que se pensava que o cinema soviético não
guardara nenhum traço. Este lugar é o Goulag. A Zona é também um arquipélago. O
filme Stalker é também um filme realista.
20 de novembro de 1981
Tradução: Luiz Soares Júnior
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