Te enfurnes no aqui e agora, por meio
dos quais o futuro mergulha no passado ( James Joyce).
Há um ano,
alguém perguntava a Straub porque, ao fim de Einleitung, depois das duas cartas em que Schoenberg vitupera Kandisky
por seu anti-semitismo, depois do texto de Brecht relacionando o nazismo à
história da luta de classes e das relações de produção capitalistas, ele não
havia mostrado- ao invés de bombardeios americanos no Vietnã-, aviões
israelenses no Sud-Liban. Straub respondeu que havia pensado um momento, que
depois tinha-se recusado a, que este seria o assunto de um outro filme. Muito
simples e muito fácil, dizia ele, para terminar a coisa onde esta havia parado
( boucler la boucle), simples demais e fácil demais para perfazer uma
demonstração, muito mecânica e confortável, “a dialética” das vítimas se
transformando em carrascos.
Fortini/cani é este outro filme, a terceira
parte, depois de Moisés e Aron e Einleitung, do “tríptico” judaico de
Straub-Huillet. Mas também, e necessariamente, por ser a última parte do tríptico judaico, é aquele onde vem
convergir e se implicar de outra forma todos os fios que tramavam os ensaios
anteriores: o fascismo e o racismo- antes: os racismos-, as segregações de que
se sustentam as sociedades civilizadas, os neo-facismos sob a cobertura
democrática, mas também o livro e o ato de enunciação, a questão do lugar e da
memória, o romance familiar, a diferença, a história...
A História,
este último fetiche. Fala-se muito disto nos dias de hoje. Incríveis, a
proliferação, a inflação, a supersaturação de discursos sobre a história. Não
há revista nem magazine que não venha com seu “cinema e História”. Nenhum
colóquio, seminário, de festival ou simpósio um pouco sério que não se inscreva
em seu programa. Todo o mundo, espantosamente, está de acordo: sobretudo nada
de História para nada, que a História sirva às lutas atuais, viva a memória
popular, abaixo o rétro, reapropriemo-nos nosso passado, etc. E aqui vem se
empenhar os pequenos mestres, os Bertolucci, os Cassenti é claro, mas amanhã
cem outros, administradores dos bens dos mortos, dizia Michelet, pretendentes à
herança, novos gestores: eles foram como nós, eles nos prefiguram, portanto nós
os realizamos...virulência em preencher as brechas, em completar aquilo que é
buraco, a recolher os fragmentos disjuntos, a recobrir os pontilhados, ilusão
paranóica de que a verdade possa totalmente se dizer, que possamos proferir o
verdadeiro sobre o verdadeiro. Raras vozes discordantes no concerto; Godard:
“Nada de histórias!”; Straub: Não esqueçamos o esquecimento”. Que ganhamos por
um lado na História, dizia Lacan, perdemo-lo no outro, apenas; como não sabemos
aquilo que foi perdido, cremos haver ganho. Eis o quadro para os pequenos
astutos. Os outros, os idiotas, os trouxas, Godard, Straub trabalham a partir
desta pequena seca implicada no ganho, do oceano do esquecimento onde flutuam
alguns retalhos de memória. O que diz o velho Kominternien em Número deux? “O Pc , ele só vem dali,
mas também daquele ali...E isso, ele não
dirá jamais... é por aqui a saída”.
Há, em Não-reconciliados, uma cena que ilustra
a questão deste esquecimento na
memória: Schrella, resistente anti-fascista exilada, entra na Alemanha; ele
volta para seu antigo bairro, e não reconhece nada nestes terrenos baldios,
estes novos imóveis. Ele pergunta a uma menina se uma família Schrella não
habitava ali outro tempo. “Não, não os conheço...”Anulação, incineração,
desaparição, passagem dos traços de passos ao nada de traço ( de pas au pas-de
traces) ou ao pouco de traços. E o gesto do cineasta: marcar com um traço ou
circundar de um contorno, um quadro, este pouco ou nenhum traço restante.
Trabalho, portanto, de terceira mão. Os “cinemas-e-História” contentam-se com
uma ilusão referencial: como se fossem, som e luz, efeitos de real.
Por que, nos
filmes dos Straub, estes buracos, estas síncopes, estas ausências de narrativa,
senão pelo fato de que eles são homogêneos a seu objeto: a história, a história
que não é o passado. Eu quis construir Não-reconciliados como um corpo lacunar,
declara ele, ou seja, segundo Littré, um corpo composto de cristais
aglomerados, deixando entre si intervalos. E, bordando estes intervalos, como cristais,
as inscrições petrificadas e medusinas de que falava Bonitzer em J.M.S e J.L.G.
Nas imagens de Fortini Cani, não há nada além disso: inscrições lapidares, lugares de memória, farrapos de tempo
na pedra, as paisagens, os monumentos, os ossuários. E cada plano, como é dito
a propósito de Crônica de Anna madalena Bach, é ele mesmo uma pedra.
Ausência
total de evocação histórica, de “tableau” de gênero, de índices ou insígnias de
época. Mas no entanto nada de mortificante, nada da meditação sobre o esquecimento
altaneiro e desencantado, crepuscular, de um Resnais em Hiroshima, Toda a
memória do mundo, Noite e neblina, e mais ainda Providence. Aqui, nada possui
lugar senão o lugar- a referência a Mallarmé não é casual, e voltarei a ela. E
da mesma forma como Godard, transversalmente à questão do aqui e do ali ( ici
et ailleurs) , desenvolvia uma interrogação sobre o tempo- tempo das cadeias,
tempo do capital, tempo de uma imagem cinematográfica, tempo de tomar seu
tempo-, Straub em Fortini Cani, a partir da questão de hoje e de outra época (
autrefois), que foi sempre seu tema ( o que tal ser ou tal viraram?) prossegue
com uma pesquisa meticulosa do lugar. Ele barra os discursos da História
proferidos por Fortini de inscrições condensadas, insistentes, de abreviações
de tempo; placas comemorativas, monumentos aos mortos, nomes de ruas, percurso
da Torá durante um ofício, traço oco de um triângulo maçônico arrancado em
outro tempo pelos fascistas, com o A de anarquistas circundado por um círculo
visível ainda hoje ( é sem dúvida neste plano que melhor podemos ler a tripla
operação de que eu falava há pouco: traço, desaparição do traço, e o ato do
cineasta como comemoração dos dois). Os filmes de Straub: um fluxo de palavras fixadas
sobre as pedras ( metaforização no último plano de Lições de história: a água
da fonte romana escorrendo interminavelmente de uma máscara de pedra). Nada o
demarca melhor do que este enorme buraco no discurso marcado pela sequência dos
Alpes Apouanes, onde a câmara não pára de fixar paisagens um pouco perturbadas
por alguns ruídos de motores distantes ou por alguns gritos de crianças, não
acaba nunca de fazer panorâmica sobre carreiras
de mármore. Straub topógrafo, geógrafo, desenhista de mapas, agrimensor,
técnico dos aluviões do terreno. Aquilo de que se trata é de fabricar filmes
discretos e mortais, como estas “pequenas obras certas, de sílex ou de
diamante”, de que Fortini fala no último plano.
II
Mas há este
fato que é o livro, do livro de Fortini de onde vem o filme, e todos estes
planos onde vemos Fortine ler, ou se reler. Então, advém as eternas questões
colocadas aos filmes dos Straub: o que acrescentam aos textos pré-existentes,
onde se sustentam todos? O que esta aporta ao cinema e a estes textos ( peças
de teatro, cartas, fragmentos de jornais, óperas, romance, ensaio), ao
filmá-los, fazê-los ler, integralmente ou em parte, recitar, declamar, jogar,
cantar, sprechgesanger, ou cuspir, deglutir, expulsar, martelar, vomitar? Será
que eles não são suficientes a si mesmos? Onde está o “próprio” do cinema aqui?
E se for realmente do cinema, quem comanda, a imagem ou o som? Trata-se de
fazer imagem, de ilustrar, de figurar o escrito, ou antes de comentar, de
acompanhar por imagens? De representar, de transcrever, de adaptar, de transpor
ou de trair?
Falsas
questões, de que nem Straub nem Godard jamais quiseram saber, jamais, e cada
vez menos se possível fosse. Falsas questões que eles deixam aos integristas do
“específico”, a quem respondem: tudo o que se lê, se anota, se respira, se
canta, se dança, se cita, se interpreta, se rádio ou se teledifunde, se grava,
pode para nós fazer um filme, à condição de se inscrever ali. Onde, ali? Neste
lugar que não é outro senão o espaço de concentração-dispersão de tudo o que se
pode escrever, se anotar, se respirar, se cantar, se citar, etc. É por isto
que, neles, tudo já foi escrito e tudo é ainda novo, nada é “original”,
“inventado”, e no entanto nada preexiste ao ato de inscrição. O que suscita nos
Straub este aparente paradoxo: que uma das artes mais elaboradas que existam
possa ao mesmo tempo se expor inteiramente aos acasos.
Tudo é
possível na filmagem, declara Straub. É neste sentido que seu “respeitar o
real”, seu empenho em “mostrar” não é metafísico: o ‘dado a ver’ guarda sempre
a pegada do gesto designador; índex, punho ou cepo, doando o ali. Há em seus
filmes uma inalterabilidade mineral, mas também algo de precário, como uma
transparência trêmula do ar, quase audível, durante os verões italianos.
Qual o passo
melhor realizado com Fortini cani? Ele faz entrar no filme, ao mesmo tempo que
o livro ( I cani del Sinaï), o autor deste livro. Nem São João da Cruz, nem
Bach, nem Anna Maddalena Bach, nem Corneille, nem Brecht, nem Schoenberg
estavam presentes em persona nos outros filmes, e não apenas por razões de
morte, aliás. Straub explica que, desta vez, o filme não teria nenhum sentido
sem a presença de Franco Fortini, na iminência de ler ele mesmo os fragmentos
de seu ensaio, ensaio que aliás vimos no primeiro plano do filme. Eis o que nos
leva a compreender melhor a estratégia do cineasta em relação ao escrito onde
se sustenta o filme, que permite que não nos perguntemos mais o que pode ser um
filme tirado de um escrito
preexistente, nem mesmo aquilo que obtém. Vemos pelo contrário que aqui é a
própria máquina fílmica que tira o
livro para ela- e o autor com ele-, que os faz vir a ela, que os absorve. De
maneira que a questão de saber quem veio primeiro, ou quem o domina, do texto
ou da imagem, e se uma ilustra o outro, ou o outro comenta uma, não possui mais
grande sentido. Ao mesmo tempo, o texto de base e seu autor são inscritos no
filme como partes, ao lado de outras
partes, não antes nem depois ( as paisagens, a música, os extratos do jornal da
R.A.I, as margens do Arno, a sinagoga de Florença, o diário de Fortini, etc). E
mesmo inscritos em parte, já que aparecem em primeiro lugar o livro, depois a
voz, depois as mãos de Fortini, e seu rosto apenas- é muito importante- depois
da enorme síncope dos Alpes Apouanes.
Há aí alguma
coisa muito nova concernindo ao cinema no que se refere à relação entre parte e
todo, onde não apenas as partes não formam os elementos de uma totalidade a
vir, nem são emanadas por uma totalidade pré-estabelecida, mas ainda onde nem é
mais necessário anular a totalidade, já que o próprio todo funciona como parte,
de ser contíguo e conexo às outras partes do filme. Relação de envelopamento
recíproco e de torção que liquida as questões de anterioridade, de primado ou
de fundamento. O filme integra o que o
sustenta, não existe nenhum elemento que não seja inscrito/inscrevente, como
nestes nós borromeos onde, de três linhas, nenhuma se encontra recoberta pela
outra sem ser ela mesma envelopada em relação à terceira. É preciso assinalar
aqui que o filme não possui título ( Fortini/Cani é um título “no ar”, jamais
inscrito enquanto tal no filme), e o que faz função de título é já o primeiro
plano do filme ( aquele onde se vê a cobertura da capa de I cani di Sinaï). Há
aí uma similitude intensa com a operação de escritura do Coups de dés, de que
Mallarmé dizia que era a continuação de uma frase capital introduzida desde o
título,o envelopamento recíproco do poema e do que este sustenta. Aliás, e é a
isto que eu queria chegar, Straub/Huillet vão “rodar”, na primavera, em Paris,
o poema de Mallarmé.
Mas há ainda
outra coisa além desta introdução no filme do livro e do autor, e é o fato de que Fortini não é simplesmente
autor ou ator, mas leitor. Fortini, autor do Cães do Sinaï, é filmado na
iminência de ler em voz alta extratos de seu livro. Straub insiste sobre o
caráter ficcional do filme; ele tem horror a que lhe perguntem de explicar
antes do filme quem é, na realidade, este senhor Fortini. Ele consente no
máximo a dizer que se trata de um comunista, um ponto basta, e veremos ao final do filme de que tipo de
comunista se trata; ele quer que para o espectador não há nada no filme senão
um ator, um personagem de ficção que vai ler, in ou off ( sobre ou sob imagens
de que já falei) um livro escrito dez anos antes. Vemos muito bem o que uma
reflexão moderna sobre a escritura, o texto podem tirar daí: o autor como
produto de seu livro e não como fonte, o texto sendo parido ao final do
percurso pelo seu próprio pai, a reversibilidade entre o escritor e o leitor.
Há também o brechtianismo intransigente de Straub: a disjunção do personagem e
do ator, a distância do ator ao que profere, a citação generalizada e não a
expressão do texto. Mas o mais importante segundo penso não está mais ali: reside
antes na introdução de uma potência de escuta, de uma colocação em jogo da
pulsão invocativa.
“No cinema,
dizia Godard por ocasião de Britsh sounds, vemos sempre pessoas que falam,
jamais pessoas que escutam”. Muitas pessoas que falam em Straub, desde o
início, que executam ou que se executam ( Gustav Leonhardt como ator
interpretando o papel de Bach, mas interpretando realmente as obras deste
diante da câmera, atores italianos, franceses, ítalo-ingleses simulando
personagens de Corneille, mas realmente se confrontando com o texto francês).
Personagens que não falam a ninguém em especial, convocando até o presente o
espectador ao lugar instável de sua localização, dupla, de escuta e de olhar.
Em Fortini/Cani, como vimos, há alguma coisa de outra: o autor entra no plano
enquanto leitor, mas sobretudo auditor de um texto aparentemente único, mas por
isto mesmo subitamente desdobrado. Pois o texto que ele lê e relê – e toda a
operação consiste nisto- não é o texto que escreveu. Sempre a propósito do Coup
de dés, Denis Roche notava que o mais importante no texto de Mallarmé não era o
possível múltiplo, a pluralidade de planos de leitura ou a proliferação dos
níveis, mas a ideia de um texto se
retornando contra si mesmo na leitura. Cães do Sinaï ( que aliás não existem)
adestrados contra si mesmos na leitura. Linha de fratura cindindo o texto
único, intuição extraordinária do texto judaico enquanto este é reconduzido a
seu limiar, a seu deserto, ao limite jamais transposto da “Terra prometida”,
duas vezes começada, escrita, lida: “Os olhos em todo tempo não querem se
fechar”, era o subtítulo do filme Othon. Mas a orelha, esta, sempre
escancarada, não o pode em tempo nenhum. Se a pulsão de escuta, pulsão
invocativa, pode se formular segundo Lacan como um “se fazer ouvir”, onde se
encontram equívocamente mantidos em primeiro lugar a aceitação intelectiva
corrente da fórmula, depois o “fazer” da atividade própria à pulsão, enfim a
dimensão de apelo e de prece implicadas na palavra “invocante”-, podemos dizer
de Fortini/Cani que é um filme onde o espectador vê alguém na iminência de se escutar falar. Mesma estratégia,
segundo vias opostas, usada em Nous trois ( Six fois deux), onde o prisioneiro
torturado se ouve escrever no silêncio de seu inexistente segredo, e em Fortini/Cani
onde, minando o fluxo incessante da leitura em voz alta, escutamos o murmurar
mudamente a questão de Fortini a si mesmo: “o que é que você entende por
‘ali’”?
Straub e
Huillet insistem: contrariamente ao que se passava com seus outros filmes, eles
não quiseram ensaios, seções de trabalho/leitura com Fortini antes do ato de
filmagem. O importante é que Fortini se encontra confrontado, dez anos mais
tarde, a um texto de arrebatamento e de polêmica lançada no combate por ele
mesmo no dia seguinte da guerra de junho de 1967. O que se dá então a
experimentar não é apenas “o prazer do texto”, ligado à escritura em voz alta
que concerne Barthes ( referindo-se sem o dizer a Othon: prazer do grão da voz,
voluptuosidade de seu som captado de muito perto, mas o efeito sobre o
personagem escutando-se a si mesmo, do escutar-se falar: de espanto, de
estupor, de não-reconhecimento, ou de adesão e de já ouvido ou o contrário,
provocando então efeitos de discreta ênfase, de acentuação oratória, de visível
auto-aprovação. Repetição na cena fictícia desta questão do trabalho do
esquecimento na memória de que falava mais acima. Anamnese implacável de um
romance familiar, melodrama como
dizem muito seriamente Straub-Huillet, onde o filho se confronta com o pai, a
todos os pais e os pares de seu pai. Filme de amor, como sempre com eles: tu
não falas jamais de onde eu te escuto. Romance familiar, mas sem confinamento,
sem estreiteza ( “a lei do sangue não é a boa”, diz um dos personagens de
Não-reconciliados), porque sempre ao mesmo tempo romance histórico, conectando
os heroísmos, as abjurações, covardias, e conversões individuais sobre a cena
múltipla dos afrontamentos de classe, das histórias nacionais, das lutas de
liberação dos povos, dos mecanismos de poder e de resistência, das
discriminações raciais ou não raciais.
Sempre, se
fosse preciso designar, o mesmo inimigo dos inimigos para os Straub: o
humanitarismo de encomenda, como lá diz o outro, com que se vestem nossas
exações ( a infame passividade ou a cumplicidade ocidental diante do
anti-semitismo nazista ontem, e o mesmo humanitarismo que pretende nos dias de
hoje proteger os Judeus contra as barbáries árabes. Como em Não-reconciliados,
há em Fortini/Cani um grande tema, aquele que Kafka designava como “a depuração
do conflito que opõe pai e filho e a possibilidade de discuti-lo”; depuração,
conflito a se entender não como fantasma edipiano, mas como programa político.
Jean
Narboni. Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma, número 275, 1977
Tradução: Luiz Soares Júnior
Notas:
1 “Evidentemente,
cada imagem só é realidade, e nada mais, “uma pedra”, é claro”. Sobre Crônica
de Anna madalena Bach, Cahiers du cinéma, 193, página 58
2 No momento
de Nicht Versohnt, alguns críticos saudaram em Straub um “novo Resnais”. A
comparação foi deste então retomada, se bem que a cada vez com menos
freqüência, em nome de um certo número de traços aparentemente comuns aos dois
cineastas: intransigência moral, afinidade com as questões da memória e da
perda, do fascismo e do lugar, ou mesmo a vocação a construir narrativas
deslocadas. Ora, não há, em minha opinião, cinemas menos semelhantes que estes
dois. A comparação merece ser retomada, no entanto, nem que seja para marcar de
que tipo de cinema ( por oposição a outro), nós nos distanciamos decididamente
mais e mais no Cahiers. Em priemiro lugar, no que se refere ao “deslocamento da
narrativa”, Straub mesmo respondeu: “Nicht Versohnt é construído como um corpo
lacunar, ou seja, alguma coisa que não tem nada a ver com um puzzle. Mais
profundamente, encontramos no cinema de Resnais ( com exceção, talvez, do
admirável Muriel), mais ou menos todos os elementos estruturantes, segundo
Freud, da maquinaria obssessional: “O animismo, a magia, e os encantamentos, a
super potência das ideias, as relações com a morte, as repetições involuntárias
e o complexo de castração...( em A inquietante estranheza: Unheimlich). Daí a
angústia que emana da obra, e que ele suscita ( levada ao seu mais alto nível
em Providence). Em Straub, pelo contrário, e apesar da dureza, ou mesmo do
horror dos temas abordados, há uma espécie de profunda alegria. É que o
trabalho de esquecimento do luto não tem nada a ver com a paixão pelo cadáver:
o primeiro é alegre ( gai), o segundo não.
3 Não
acabaremos jamais de identificar, em Straub, em todos os níveis, os índices
desta questão de lugares de memória: da gruta de Othon, onde os resistentes
anti-fascistas dissimulavam suas armas ( verdadeira fresta de memória- trou à
mémoire) à enquête em Lições de História do jovem rapaz mergulhando no coração
de Roma para reconstituir a genealogia da City, sem esquecer a dupla inscrição
que designa a última réplica de Nicht Versohnt ( cito de memória): “Ele não foi
mortalmente ferido, mas eu não esquecerei jamais a impressão de estupor que
pintou-se em seu rosto”.
4 In “Eros
Energúmeno”, Ed. Du Seuil, col. Tel Quel, p.14
5 In Le plaisir du texte, Ed. Du Seuil, col. Tel Quel, p.105
6 É assim
que Deleuze e Guattari recomendam-nos ler todo o Kafka in “Kafka: para uma
literatura menor”, Ed. De Minuit, p. 31
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