sexta-feira, 15 de maio de 2009

A Terra do Milagre. Rohmer sobre Viagem a Itália

O termo "neo-realismo" se tornou tão discutível que eu hesitaria em usá-lo em relação a Viagem à Itália se o próprio Rossellini não o tivesse de fato invocado. Ele vê neste filme uma expressão mais pura e profunda de um “neo-realismo” que em qualquer um de seus filmes anteriores. Ao menos esse foi seu comentário para um membro da platéia na estréia em Paris. Pode-se certamente falar sobre evolução no trabalho do autor de Roma, Cidade Aberta. Se é verdade que seus filmes mais recentes só podem em parte ser colocados junto com todas as outras produções italianas – incluindo os filmes de Fellini, que é seu colaborador mais duradouro e o mais próximo a ele em idéias – não é verdade que ele negou seus amores antigos: ele somente se contentou em sair na dianteira, condenando seus rivais por estarem a salvo em seus lugares. Com cada tentativa ele se exibe (goes through the roof) com tamanha diligência que nós não temos nem tempo para ajustar nossos instrumentos e avaliar sua performance.

O público reage de um jeito particular com o que é novo. Observemos novamente os julgamentos nas primeiras exibições dos impressionistas ou do fauvismo, a primeira performance da Sagração da Primavera: ouvimos exclamações do tipo “Ele não sabe pintar”, “Eu posso fazer algo tão bom quanto”, “Não é pintura, não é música, não é cinema”. Assim como os estudantes de arte do último século forjaram uma convenção da "pose", então emergiu num salão sombrio uma convenção do natural. Tão deliberada quanto a recusa de Manet ao chiaroscuro, o autor de Viagem à Itália despreza a escolha mais fácil - de uma linguagem cinematográfica coberta com cinqüenta anos de uso. Antes de Rossellini, até o mais inspirado e original dos cineastas se sentiria obrigado a usar o legado de seus precursores. Ele estava familiarizado com todos os caminhos que, por algum tipo de reflexo condicionado, poderia provocar emoções particulares em uma platéia – encantada com o menor gesto ou movimento; e ele jogaria com esses reflexos mas não tentaria rompê-los. Ele criaria arte, isto é, um trabalho pessoal, mas feito de uma substância cinematográfica compartilhada. Para Rossellini essa substância não existe. Seus atores não se comportam como os atores de outros filmes, exceto no sentido em que seus gestos e atitudes são comuns a todos os seres humanos; no entanto, eles nos encorajam a olhar para outra coisa por detrás deste comportamento, algo além do que nosso papel natural de espectadores nos induziria a reconhecer. A velha relação entre signo e idéia é rompida: em seu lugar surge uma relação nova e desconcertante.

Do mesmo modo é a alta e novíssima idéia de realismo que descobrimos aqui. Não foi há muito que elogiei Stromboli ou Europa ‘51 por seus aspectos documentais. Mas em sua construção, Viagem à Itália não está mais perto do documentário do que do melodrama ou do romance de ficção. Certamente nenhuma câmera de documentário poderia ter gravado a experiência deste casal inglês desta maneira, ou, mais adequadamente, com este espírito. Tendo em mente que até a cena mais direta e menos planejada é sempre inscrita na convenção da edição, continuidade e seleção, e tal convenção é denunciada pelo diretor com a mesma virulência demonstrada em seu ataque ao suspense. Sua direção de atores é exata, imperiosa e ainda assim não é totalmente "atuada". A história é solta, livre, cheia de fraturas, no entanto, nada poderia estar mais distante do amador. Confesso minha incapacidade em definir adequadamente os méritos de um estilo tão novo que desafia toda definição. Até se pensarmos somente em seus enquadramentos e seus movimentos de câmera (onde até os maiores diretores não alcançam inovações há muito tempo), este filme é diferente de qualquer outro. Através de sua magia somente, ele consegue dotar a tela com aquela terceira dimensão tão perseguida nos últimos três anos pelos melhores técnicos nos dois lados do Atlântico.

Estou ciente da possível objeção: "Não atribua a uma habilidade suprema o que só pode ser o resultado acidental do descuido". Certamente não! Não se produz literatura tirando palavras da cartola, não se cria uma peça verdadeira de cinema tão original como esta vagando pela estrada com uma câmera de 8mm em mãos. É estranho como tudo em que a regra falta é como uma escrita automática. As novas e maiores erupções só podem vir da fenda mais estreita e menos perceptível. Com uma simples baforada de seu cigarro no declive do Vesúvio, a heroína desata uma abundante nuvem de fumaça - é assim que Rossellini, mestre da magia, mais do que doma sua matéria. Ele conta com esta cumplicidade como um músico tocando numa caverna usaria o eco a seu favor.

Confesso que enquanto assistia ao filme meus pensamentos se desligaram pra direções distantes daqueles da própria trama, como alguém que vai ao cinema pra matar o tempo entre compromissos e, com a mente mais em suas próprias preocupações do que naquelas do filme, é surpreendido ao se pegar tentando olhar o horário num relógio que um dos atores está usando. Este tipo de ilusão certamente não é aquela que um ator teria orgulho em criar. Eu admito que fui mergulhado em todos os tipos de absurdos fluxos de consciência: o modelo da jaqueta de George Sanders, quantos anos ele deve ter, o quanto ele envelheceu desde Rebecca ou A Malvada, o estilo de cabelo de Ingrid Bergman, pra não mencionar a forma dos crânios nas catacumbas ou os novos métodos arqueológicos – algo que não seria permitido numa trama com o tempo mais sustentado. Mas notei que até mesmo quando minha imaginação parecia vagar, de tempo em tempo ela cruelmente me forçava de volta à própria matéria do filme. Neste filme em que tudo parece acidental, tudo, até a mais maluca digressão mental, é parte essencial dele. Este argumento não será levado além do necessário. Diante de um trabalho desta estatura uma declaração de circunstâncias atenuantes é inapropriada.

Viagem à Itália é a história da separação de um casal e sua subseqüente reconciliação. Um tema dramático dentro dos padrões, e também o tema de Aurora. Rossellini e Murnau são os únicos cineastas que fizeram da Natureza o elemento ativo, o elemento principal da história. Ambos, devido à sua rejeição da facilidade do estilo psicológico e seu desprezo pela narração incompleta (understatement) ou pela alusão, tiveram o extraordinário privilégio de nos conduzir para o interior da região mais secreta da alma. Secreta? Deixem fazer-nos entender: não nas zonas problemáticas da libido, mas na vasta e iluminada consciência. Por eles se recusarem a iluminar seus mecanismos (mechanics of choice), ambos os filmes protegem sua liberdade tanto melhor. Assim a alma nos é entregue em sua própria origem e não encontra objetivo mais digno que o reconhecimento da ordem no mundo. Ambos os filmes são dramas com três personagens de fato; o terceiro é Deus. Mas Deus não tem a mesma face em ambos. No primeiro uma "harmonia pré-ordenada" governa de uma vez e ao mesmo tempo os movimentos da alma e as vicissitudes do cosmo: a natureza e o coração do homem batem com a mesma pulsação. O segundo vai além desta ordem – e sua magnificência pode revelar-se igualmente - descobrindo aquela suprema desordem que é conhecida como milagre.

Durante sua entrevista aos Cahiers no ano passado, Rossellini falou a respeito do "senso de vida eterna" e da "presença do milagre" que foram revelados a ele no solo de Nápoles. Essas duas frases são eloqüentes o suficientes em si mesmas e me eximirão de um comentário mais longo. Do museu de Nápoles às catacumbas, da fonte de enxofre do Vesúvio às ruínas de Pompéia, nós acompanhamos a heroína ao longo do caminho espiritual que guia da superficialidade dos anciãos sobre a fragilidade do homem à idéia Cristã de imortalidade. E se esse filme tem sucesso - logicamente, você pode dizer - através de um milagre, é porque aquele milagre estava na ordem das coisas, a qual, no fim, depende de um milagre. Tal filosofia é estranha à arte do nosso tempo. Os maiores trabalhos - até aqueles mais tingidos com misticismo - parecem achar sua inspiração numa idéia um tanto quanto oposta. Eles apresentam uma concepção do homem como uma divindade - senão completamente Deus - que é uma enorme tentação para nosso orgulho e que quase nos desfaleceu. Há preocupação sobre o desaparecimento da arte sagrada: o que importa, se o cinema está tomando o lugar das catedrais! Eu irei além: o que faz o Catolicismo tão maravilhoso é sua extrema abertura, seu poder infinito de enriquecer-se. Não um templo tomado pela hera, mas um edifício cujas pedras aumentam com o passar de cada século, enquanto sua unidade permanece inalterada. E não só através de seus dogmas (estou pensando no recém-proclamado dogma da concepção), mas de sua capacidade de se renovar na vida e na arte, ele cada vez mais despreza o frágil suporte da filosofia natural. Pela graça de sua música talvez uma missa de Bach possa nos encaminhar para mais perto de Deus do que a magnificência das catedrais. É essa a tarefa do cinema, trazer para a arte aquilo que as grandes riquezas de todo gênio humano ainda não souberam descobrir: a noção do milagre?

MAURICE SCHÉRER (Eric Rohmer)
Cahiers du Cinéma, 47, maio de 1955.

Traduzido de francês para inglês por Liz Heron. Traduzido de inglês para português por Luan Gonsales.

Um comentário:

Ana Góes disse...

Olá, tudo bem? Meu nome é Ana e dei uma olhada no seu blog, gostaria de saber se vc pode me ajudar! bom, sou estudante de turismo da Universidade Federal de Pernambuco e este ano inicio o desenvolvimento da minha monografia. Resumidamente, é uma pesquisa de imagem realizada com estrangeiros (estou indo morar este ano na Bélgica) a partir da percepção deles após assistir alguns filmes que retratem o nordeste brasileiro. Gostaria de selecionar alguns filmes que foram exibidos em festivais internacionais, como Cannes e Berlim. Você poderia me dar umas dicas de por onde começar essa pesquisa? onde encontro essa lista de filmes? se puder me ajudar, serei muito grata :) meu email para contato é anacarlagoes@gmail.com