quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Fritz Movie, Por Sylvie Pierre


Fritz Lang, em O desprezo, interpreta seu próprio papel.Foi o próprio Godard quem disse: “O tema de O desprezo são as pessoas que se olham e se julgam, depois são por sua vez olhadas e julgadas pelo cinema, que é representado por Fritz Lang, interpretando seu próprio papel”.( 1 ) O dinossauro e o bebê.


Neste mesmo texto, Godard diz também de seu filme que “ele é simples e sem mistério”, que se trata de “um filme aristotélico”. Acho que é necessário levar a sério este esquema lógico. Ou seja: Fritiz Lang em O desprezo é em primeiro lugar Fritz Lang, e não não-Fritz Lang.

É Lang em virtude de vários atributos de identidade que o caracterizam absolutamente. Alguns são essenciais: seu nome, nacionalidade, sua profissão de metteur en scène de cinema,e certos títulos de sua filmografia real, M, o vampiro de Dusseldorf e o “western com Marlene Dietrich” ( Rancho Notorious, é claro). Os outros são existenciais ( sem Aristóteles, não teríamos Jean-Paul Sartre): seu corpo, sua voz, seu figurino, sua gravata e s eu chapéu, sua presença no plano enquanto Fritz Lang, o que o diferencia notavelmente dos outros atores (2 ) e não desempenha um papel de peso menor na balança desta ficção.

Godard o quis e o compreendeu expressamente, ele que, de acordo com sua própria confissão, quis confiar a Lang o papel exorbitante de representar nada menos que o olhar e o julgamento do cinema sobre o cinema.

E mesmo se a idéia de “personalidade”, com as pompas midiáticas que a circundam, não é exatamente simpática a Godard, isto não impede que ele utilize o peso do nome de Fritz Lagn para emprestar aos créditos um brilho suplementar.

É preciso assinalar, no entanto, que a natureza da ficção cinematográfica é tão particular que lhe é geralmente difícil dominar ( maîtriser) a longo prazo em se mecanismo esta inserção de um elemento heterogêneo, elemento ao qual esta se vê obrigada a conferir uma espécie de status particular, uma zona especial no conjunto de seus procedimentos. O que pode fazer com efeito a ficção com uma criatura à qual ela não conferiu o seu papel? Criatura- sim,a palavra é esta- de um outro mundo, pois possui a qualidade específica de uma espécie de identidade suplementar a si mesma. E diante de tal criatura, a ficção se encontra rapidamente em um impasse. Pois: ou ela lhe reconhece um coeficiente de realidade que a ultrapassa e transborda, o que a leva então a cessar de “engendrar ficção” ( cesser de fictionner), e passar assim para o lado do documentário.

Ou então a ficção pode convencionar que um personagem “em seu próprio papel” ( quem diz ‘papel’ já não diz ficção, teatro em todo caso?) se acorde a seu gênero de beleza, e assim ela o pode integrar facilmente em seu trabalho, seu roteiro, seu casting. Mas como ir muito longe com isso? O efeito de surpresa é rapidamente esgotado pela tautologia: “Mas olha, é ele! O que ele tá fazendo aí? Ele mesmo”. Temos, portanto, esta alternativa ( não há outras) entre cessar de gerar ficção e “ficcionar” no esquadro de uma mitologia posta em questão pelo próprio Godard com o (seu) Lang.

Com gênio, Godard não escolhe entre as duas opções. Um gênio justamente utiliza estas qualidades que Lang atribui a Homero no Desprezo, ou seja, a simplicidade, a astúcia, a ousadia. O ponto de vista que, em todo caso, é o nosso é que o personagem de Fritz Lang em seu próprio papel é construído de tal maneira que ele produz no filme ao mesmo tempo uma espécie de dimensão documentária e uma certa espécie de dimensão mitológica, ambas bem específicas da démarche godardiana, que não se interessa nem pela realidade nem pela ficção, mas pela verdade do cinema, o que não é pouca coisa.

E é isso o que faz a meu ver com que o personagem vá tão longe, pois não apenas é o mais belo personagem de cineasta jamais inventado por um filme de ficção, como também é auto-interpretado. O todo resultante de um enorme e magnífico trabalho de Lang e de Godard.



O papel de si mesmo não é certamente a mais fácil dentre as performances de ator. Fritz Lang se empenhou neste trabalho com um maravilhoso talento, tomando-o verossímelmente com imensa seriedade.

Em O dinossauro e o bebê, este profissionalismo de Lang diante de uma câmera provavelmente impressionou os realizadores do programa (3), a tal ponto que uma espécie de post-scriptum foi acrescentado, onde o ator Howard Vernon, amigo fiel de Lang, declarava: “Esta entrevista foi tão importante para Lang quanto fazer um filme, rodar uma cena de um filme”. O que o programa confirmava em seguida, mostrando ao final várias tomadas, uma melhor que a outra em relação à clareza expressiva e do tom de Lang, ou dizendo logo tudo, de sua interpretação ( jeu).

Em um curioso livro publicado em 1966 pela Grasset, sob o título Esperando Godard, Michel Vianey, hoje diretor, nos conta algumas cenas de que foi testemunha, ele que visitava sempre Godard nos anos 60. Estranhamente, o nome que ele dava para Godard era “Edmond”, o que explica o diálogo que se segue com Lang, durante a filmagem de O desprezo:

- A que horas começamos amanhã, Edmond?

Edmond ergue para ele seus olhos inquietos, azuis, embora deixem na memória uma recordação negra.

- Não sei.

- Você vai precisar de mim?

- Não sei.

Inimigo da improvisação, Lang não devia apreciar nada este “Não sei o que fazer”. Daí talvez estes pequenos acessos de rabugice que, segundo Vianey, ele deixava sempre irromper na filmagem: “Este Godard não sabe o que quer, diz Fritz Lang, quebrando a casca de um ovo duro contra o pé de sua cadeira. Ele é incapaz de dizer o que quer, se é que ele quer alguma coisa. Por que eu estou aqui? O mar tá feio, etc”

Fritz Lang, no entanto, interpretou muito bem Fritz Lang. Seu “obrigado, você é muito amável!” murmurado para Brigitte Bardot como um gentleman francófono da velha Europa é com efeito devastador, digno de Stroheim. Como ele sabe jogar com seu monóculo, sua bela cabeça, jogá-la para trás, intenso de lucidez e metafísica, citando Hölderlin, como cabe a um artista. Como maneja com brio o tom exasperado com que redargüe ao produtor, que insinua que o que ele rodara não estava no script: “IT IS!”. Como se serve bem também, em seus momentos de cólera e de desprezo, do rugido sonoro de seu sotaque germânico em inglês: “Natchrely, bi-kôze in zé skript it is vrrrrittten!”. É irresistível. E sobretudo é impressionante como um homem de 73 anos sabe, com o natural e a facilidade de um John Wayne, caminhar por um plano, ocupá-lo com seu corpo, ressentir com graça intensificada o próprio peso, o que é provavelmente a coisa mais difícil de se fazer para um ator não profissional.

Como Godard pôde dirigi-lo? Não saberemos jamais. Provavelmente deixando-o utilizar deste savoir-faire com o qual, desde 40 anos, ele dirigia seus atores: “Eu penso... que o bom metteur en scène não é aquele que diz aos atores como eles devem interpretar, ou mesmo que lhes mostra, como muitos o fazem. Se faço um filme com 20 atores, não quero ter 20 pequenos Fritz Lang que se agitam na tela”.( 4)

Um único Fritz Lang também deveria ser suficiente para Godard. E justamente, ele o tinha à mão. Seria decente que pretendesse mostrar a Lang como ser Lang?

Mas é claro que poderíamos apostar que o próprio Fritz Lang, um arquiteto de tal monta, não aceitaria jamais se prestar a este jogo se não tivesse, previamente à filmagem, tomado algumas precauções para que este “papel de si mesmo” que lhe fariam interpretar lhe conviesse.

Um belo texto de Lotte Eisner, guardiã do templo languiano, nos esclarece a este respeito.( 5) A Cinemateque Francesa, por mediação do “dragão” Mary Meerson, se envolveu pessoalmente para convencer Lang, que aliás pediu a Godard para que este lhe apresentasse o roteiro. Godard o fez. O que provavelmente lhe custou mais trabalho em sua vida de autor do que a obrigação de submeter o roteiro aos produtores: um produtor pode ser, digamos, “levado na conversa”, sobretudo por Godard. Mas não se engana Deus nem Fritz Lang. E Godard, protestante, sabe-o bem.

As “medidas” do personagem deviam portanto ser tomadas cuidadosamente. Valeria a pena em relação a isso consagrar um estudo aprofundado ao verdadeiro coup de force ( tarefa difícil, que demanda esforço) de roteiro em virtude do qual Godard construiu o personagem de Lang “a partir” do romance de Alberto Moravia. ( 6 )



A respeito de Il Disprezzo, o próprio Godard se refere com desprezo, e categoricamente: “Eu fiquei com a matéria principal, e simplesmente transformei alguns detalhes, partindo do princípio que o que é filmado é automaticamente diferente do que é escrito, portanto original”. ( 7)

Se observarmos mais atentamente, veremos que a matéria principal do romance conservada por Godard é a história de uma grave crise conjugal vivida por um casal no qual o marido, escritor, por amor à sua mulher ( em todo caso, vontade de lhe oferecer um belo apartamento), é levado a aceitar trabalhos um tanto mercenários como roteirista de cinema. Ainda no romance, estão implicados num projeto ( um projeto apenas: nada de filmagem) de filmar a Odisséia: um produtor, um metteur en scène alemão e o roteirista em questão.

Mas o produtor ( italiano) de Moravia é um simples comerciante de cinema, profissional apenas competente que deseja, a partir da Odisséia “tal qual ela é” ( poética, diz ele), realizar algo como um bom peplum, com sereias, ciclopes, e um Ulisses bem heróico. Ele encomenda um roteiro neste sentido, e o roteirista se submete, sabendo bem o risco que a poesia de Homero corre de adquirir uma pátina de vulgaridade à la Cinecittá. É então que ( no romance) o metteur en scéne alemão- a respeito do qual Moravia faz questão de precisar que “não se trata de um diretor da classe de um Pabst ou de um Lang”- põe na cabeça filmar uma Odisséia freudiana ( é seu sagrado lado germânico que insiste nisso), e nada joyceana, apesar de suas pretensões modernistas; o herói de sua Odisséia edipiana, petrificado no “complexo”, cometeria todos os atos falhos do mundo para não conseguir merecer o amor de sua mulher Penélope; Penélope que, justamente por culpa do marido, é aliás muito complacente para com seus pretendentes.

A partir deste material, Godard essencialmente apenas operou uma redistribuição de papéis. Mas esta, no fundo, é tão radical quanto sutil, em relação às transformações que implica no jogo moral dos conflitos.

O produtor e o diretor ainda se opõem em Godard, mas não da mesma forma, já que agora cabe ao primeiro- americano, no filme- a estúpida intenção pseudo-moderna, a idéia estapafúrdia de interpretar a Odisséia à luz de Freud.

Quanto ao roteirista,- que não pode em Godard se opor a ninguém-, simplesmente o filme lhe retirou o papel de consciência da obra para dá-lo ao metteur en scène. Todas as belas coisas que ele dizia no romance foram postas por Godard na boca de Fritz Lang, inclusive esta magnífica idéia de que “O mundo de Homero é um mundo real”, e que “a beleza da Odisséia reside justamente nesta crença na realidade tal como ela é, tal como esta se apresenta objetivamente, em uma forma que não se deixa nem analisar nem decompor, e que é o que ela é: a tomar ou a largar”.

O grande ganho moral destas transformações é portanto o personagem do metteur em scène, a quem Godard deu precisamente “a classe de um Lang”, toda a envergadura de um velho sábio ( um chefe indígena, escrevia Lotte Eisner), petrificado pela verdadeira cultura européia, e que sabe que não se brinca nem com a presença dos deuses em Homero nem com sua ausência em Hölderlin. Naturalmente, o personagem adquire um estofo considerável. E o “romance verdadeiro” da vida de Lang- em particular sua ruptura com a Alemanha nazista em 1933- é evocado neste filme de forma bastante explícita para contribuir a exaltar a figura, a tornar densa sua “persona”, até transformá-lo no ator privilegiado de uma evolução da consciência ocidental.

E, claro, neste momento, Moravia está bem distante, mesmo se o diabólico Doutor Godard tenha sabido tomar emprestado trechos inteiros de seu texto, que ele, por assim dizer, “recontextualizou”, redistribuindo-os e filmando-os.

Toda a lucidez própria à consciência infeliz do roteirista se tornou consciência infeliz no metteur em scène, que assume com a maior dignidade. As mãos puras que não possuem mãos tornaram-se mãos que devem se sujar bem ao trabalho. Toda a obra americana de Lang não foi colocada sob o signo desta experiência?

“É preciso sofrer”, diz Lang a Piccoli. Em uma palavra: em Godard, é o diretor quem dá as lições de moral. E é pelo travelling que este terá a última palavra, no silêncio de trabalho do plano.

O esforço de adaptação pelo qual o roteiro foi elaborado é portanto aqui mais um efeito que uma causa. E certamente Godard não teria empreendido este coup de force se não tivesse sido conduzido a ele pelo conjunto de verdades críticas a que se aferrava no ano de 1963. Ao menos doze anos de reflexão o levaram à maturidade. O trabalho de Rivette, Chabrol, Rohmer, Truffaut, de Moullet e, dialeticamente, o de Bazin, a quem o filme é dedicado ( por uma citação talvez inventada) não deixaram de contribuir a esta elaboração.

Pois o Fritz Lang de O desprezo é uma criatura política: sua Odisséia é a Odisséia do autor.



podemos pensar- mesmo se é um pouco forçar a cronologia do percurso ideológico de Godard-, que estas “idéias justas” a partir das quais Lang foi concebido em O desprezo vem de uma certa “prática social” e “reflexão sobre as relações de produção”, no campo do cinema é claro. Prática e reflexão que, no começo da Nouvelle vague, todos os seus membros haviam assumido em conjunto, quando se interrogavam sobre o verdadeiro lugar da instância criativa decisiva no cinema. Este lugar para eles era a mise en scène, razão pela qual batizaram de autores- ou seja: responsáveis de jure pela criação- aqueles que a praticavam enquanto homens livres, na contracorrente de todas as limitações do tempo, do dinheiro e do box-office, contra todas as ditaduras da produção.

Concepção altamente romântica, sem dúvida, esta figura soberana do autor, e que com freqüência confunde seu desejo com as realidades, mas que teve ao menos a vantagem, sob o ponto de vista crítico, de ajudar a discernir algumas destas realidades, no campo exemplar ( por ser ao mesmo tempo limitado pelo esquema de produção e muito criador) do cinema hollywoodiano. É aqui que o aspecto documentário de O desprezo aparece.

Esta ficção de um Lang rodando na Itália com um produtor americano possui algum grau de verossimilhança, em termos da história do cinema. Não podemos deixar de pensar ( o próprio Moravia deve ter pensado) nesta produção ítalo-americana de Ulysses, que foi um projeto de Pabst e que foi finalmente dirigido por Mario Camerini em 1954, com Kirk Douglas e Silvana Mangano.

Mas sobretudo o roteiro de Desprezo delineia metaforicamente a situação do metteur em scène em sua relação com o produtor clássico hollywoodiano como uma configuração geral, estrutural. Este roteirista imposto por um produtor que aterroriza a todos com a perspectiva de falência ( perdre sa chemise) com um diretor incontrolável poderia ter sido aquele que foi imposto a Nicholas Ray durante a filmagem de Amargo triunfo ( 8). A intervenção do rewriter mercenário é um caso de figura real e típico da prática hollywoodiana, e Lang mesmo deve ter passado por isso.

Não excluamos ainda que Godard deve ter guardado na memória certa discreta mas dura polêmica que, em 1957, opôs Rivette a Bazin a propósito de uma reavaliação crítica de Beyond a reasonable doubt. Ali onde Rivette via “uma depuração” e “menos a mise en scène de um roteiro que a simples leitura deste roteiro” ( 9), Bazin acusava “ um tal desprezo por seu roteiro que ele ( Lang) só podia salvaguardar sua dignidade operando em torno desta história o vazio barométrico da mise en scène”, o que, segundo ele, conduzia o valor desta obra não muito distante do “zero absoluto”. ( 10)



A bela questão que coloca a presença real e simbólica de Fritz Lang em O desprezo é bem esta, que é justamente o ponto crítico de uma política do autor: o cinema constitui um único corpo com as imagens e os sons. E é no domínio destes que se mensura o poder de um autor, portanto da mise en scène. Na escolha das rushes, tudo já está consumado. O ato de criação já ocorreu, é tomar ou largar. E enfim não constitui uma das menores audácias de Godard ter filmado planos de uma Odisséia que Fritz Lang deveria ter filmado.

Estes planos, pouco numerosos aliás, Godard previa com sutileza que um exegeta embusteiro poderia ter rejeitado a paternidade de Lang ao filmá-los, colocando sua autoria a cargo de uma segunda equipe de Lang, sob a responsabilidade de seu assistente, ou seja, o próprio Godard.

Que pensar com efeito destes planos, planos de detalhe ( os closes da imagem dos verdadeiros deuses, e do primeiro olhar de Ulysses quando reencontra sua pátria), senão que eles são realmente muito pouco languianos? E que eles são eminentemente godardianos, os olhos pintados das estátuas ( detalhe realista) e a maquiagem exagerada de Penélope, evocando já o sex/violence/action/painting de Pierrot le fou? Uma radical honestidade, um puritanismo de Godard devem aqui ser levados em conta: com que direito ele se permitiria de imitar o estilo de Lang? É preciso acreditarmos que estes planos filmados por Godard foram antes de tudo um presente ofertado a Lang. Crer que neles se inscreveu a única marca possível de seu respeito à liberdade criativa soberana de seu mestre. E que esta liberdade só pode se assemelhar à sua, filialmente suscitar a semelhança. Talvez Godard tenha visto os olhos pintados de Marlene Dietrich em Rancho Notorious como os da estátua de uma deusa viva. É preciso notar também como Godard- já que ele havia muito bem assinalado como crítico que “Fritz Lang se interessa mais por uma cena que por um plano de detalhe, como Hitchcock” ( 11)- integrou alguns destes planos à ação global de seu filme. Assim, quando Piccoli, mal inspirado, vai cometer a gaffe de sua vida ( um infeliz atraso no encontro com o produtor e Bardot) que vai lhe custar o desencadeamento do desprezo de sua mulher, o plano “languiano” de Netuno, inimigo mortal de Ulisses, reaparece como um signo premonitório de seu próprio destino. O todo do filme de Godard só pode portanto funcionar pela integração de uma parte que lhe dá sua força clássica, articula-a e a constrói em virtude destes poderes de abstração que constituem a força maior que Godard e seus companheiros reconheceram na lição de Lang.



Aqui, como em Tempos de guerra, onde Michel-Ange encontrava Rembrandt, o (pequeno) soldado saúda um ( grande) artista. E o belo espaço vertical desta casa de Malaparte, suspensa entre o céu e o mar pela escala de sua escadaria asteca começa a se assemelhar, em sua versão solar e mediterrânea, aos andares arquiteturais nórdicos dos porões de M, o vampiro de Dusseldorf, ou do palácio hindu do Túmulo indiano, riquíssimo em diversidade de níveis.

Entrevemos aí em todo caso que a herança, a filiação permanece uma grande questão aberta, um dos continentes a se explorar de uma história do cinema que não temeria bisbilhotar um pouco sob a perspectiva do que se passa entre os cineastas. Entre As Meninas de Velásquez e as de Picasso, uma história que trataria de analisar a qualidade do ar onde os dois pintores- e nós, seus espectadores, com eles- se encontram conjunta, geneticamente sob a influência de um mesmo programa.

O estranho caso da espécie do encontro de Lang e Godard em O desprezo constitui talvez jurisprudência na aplicação de uma nova lei, concernente aos direitos de sucessão em matéria de arte ( pois , é claro, não se trata mais aqui de direitos do autor, mas do artista): o legatário pode tornar-se o herdeiro de seu próprio herdeiro, ou mesmo o filho de seu próprio filho.


Notas:


1. O Desprezo em: Godard por Godard

2. O diferencia? Sim e não. É certo que Bardot, Piccoli e Jack Palance chegam em O desprezo ( e talvez todos os atores em Godard) a uma estranhíssima consistência de seu "ser aí" no filme. Bardot é talvez mais ela mesma que Camille Javal. Talvez não se deva jamais propriamente falar em personagens em Godard, já que nele os mistérios da encarnação estão longe de serem elucidados.


3. Trata-se de um programa da série Cineastas do nosso tempo, produzida por Janine Bazin e André Labarthe em 1965, sobre base de uma entrevista de Lang filmada por Godard em 1964.


4. Opiniões de Lang citadas por Luc Moullet em seu belo livro sobre Fritz Lang. É este livro que Bardot lê na banheira.


5. Lang e O desprezo, no Fritz Lang publicado pelo Cahiers du cinéma em 1984.


6. Il Disprezzo, 1954. Godard escrevia no texto sobre o livro já citado: "O romance de Moravia é um bonitinho e vulgar romance de estação rodoviária, cheio de sentimentos clássicos e ultrapassados, apesar da modernidade das situações. Mas é com esse gênero de romance que se faz com frequência os mais belos filmes".


7. O Desprezo em Godard por Godard


8. Recorrer naturalmente sobre este tema à obra publicada este ano por Christian Bourgois por Bernard Eisenschitz, Romance americano: as vidas de Nicholas Ray.


9. Cahiers du Cinéma, fevereiro 1957.


10. Rádio Cinéma, Televisão, outubro 1957.


11. Ficha redigida por Godard para UFOLEIS sobre O retorno de Frank James, citado por Moullet em sua obra sobre Lang.


Cahiers du Cinéma, número 437, novembro 1990.


Tradução: Luiz Soares Júnior.


domingo, 19 de dezembro de 2010

O mundo-olhar de Brian de Palma, Iannis Katsahnias


No princípio, é o olho. O olho de peixe morto de Marion Crane ( Janet Leigh) sob a ducha de Psicose: imagem guardiã de um túmulo ( guardiã do recalque em Hitchcock), e de sua abertura (imagem que autoriza o retorno luminoso do recalcado em De Palma). Imagem atraente tornada inquietante, e que ocupa um status extremamente elevado no horror: o “olho da consciência”: “Parece, com efeito, impossível com relação ao olho falar de outra coisa senão de sedução, escreve Bataille, nada sendo mais atraente nos corpos dos animais e dos homens. Mas a sedução extrema coincide provavelmente com os limites do horror”.1

No cinema de De Palma, o olho aberto da morte torna-se sucessivamente “ guloseima canibal” ( o olho do Fantasma/William Finley, saído de sua órbita em Phantom of the paradise), telepático ( os olhos azuis fosforescentes, dotados de poderes extra-lúcidos e maléficos de Gillian/Amy Irving, em A Fúria). Em Missão: impossível, o olho tornou-se câmera em um mundo regido pelo olhar.


A vacilação das aparências.


Um monitor no fundo de um cenário sombrio. A silhueta de um homem ( Jack Emilio/Estevez) que observa a cena transmitida no vídeo em preto e branco: um homem geme em russo: “Eu não me lembro disso. Não me lembro do que aconteceu.” Ao seu lado, o corpo ensangüentado de uma jovem. Um outro homem o pressiona: “Me diz o que eu quero saber e eu te tiro daí”.

Jack se inquieta. Sobre a tela de seu computador, ele vê as pulsações do coração da jovem diminuírem perigosamente. Se esta cena durar alguns segundos a mais, a mulher morrerá. A câmera de vídeo faz uma panorâmica para enquadrar Claire ( Emmanuelle Béart) ,a jovem, em close. A imagem, nebulosa a princípio, hesita, tateia, depois torna-se nítida. Tudo se dá neste instante onde o rosto de Claire chancela entre o flou e o nítido, onde ela navega entre a vida e a morte.

O homem interrogado acaba por falar, e é morto em seguida. Seu interrogador tira sua máscara e descobre seu verdadeiro rosto: é Etahn Hunt ( Tom Cruise), um agente da IMF ( Força da Missão Impossível). Close de uma injeção intravenosa que mergulha no braço de Claire para reanimá-la. Close em contra-plongé, focal curta, de Ethan, que se debruça sobre Claire quase morta, já morta. Sua inquietude revela um desejo que ele tenta ignorar, um desejo frustrado. Claire, a mulher de Jim Phelps ( Jon Voight), o patrão, o mentor, o pai espiritual de Ethan, é um mau objeto de desejo, um objeto interdito.

A frustração não é um fenômeno que possamos objetivar no sujeito sob a forma do desvio de um ato que o une a este objeto, diz Lacan. Não se trata de uma aversão animal. Por mais prematuro que seja o seu envolvimento, o sujeito ressente o mau objeto como uma frustração. E, em um mesmo movimento, a frustração é ressentida no outro. Há uma relação recíproca de aniquilação, uma relação mortal estruturada por estes dois abismos- ora o desejo se extingue, ora o objeto desaparece ( sublinhado meu)”. 2

A morte icônica de Claire a transforma em ícone, imagem aurática, próxima e distante ao mesmo tempo, intocável. Claire abre os olhos, contempla Ethan e, ao olhá-lo, o implica definitivamente. A partir deste momento e até o fim do filme, ela não cessará de inquietar o olhar de Ethan, de aparecer, de oscilar entre a vida e a morte, sonho e realidade. Móvel, ondulante, incapturável, Claire arrisca-se a cada instante a se perder, e Etahn com ela. Talvez precisássemos retornar a Laura, de Otto Preminger, para reencontrarmos uma tal representação do fantasma encarnado num espectro ( phantasme devenu fantôme).

A interpretação de Béart, sua forma de encontrar seu lugar em uma super-produção hollywoodiana, torna este jogo da dupla distância comovente. Pois, à imagem de seu personagem, ela arrisca-se a se perder a cada momento, perder-se nas engrenagens deste gigantesco mecanismo, para reencontrar-se mais adiante , in extremis.


O duplo olhar.


A abertura de Sisters: seguido por uma panorâmica de alto a baixo, Philip Wood ( Lisle Wilson), um Negro, recoloca sua calça num vestiário. A câmera dá um zoom para trás. No primeiro plano, Danielle Breton ( Margot Kidder), uma cega com óculos escuros e uma bengala branca, entra no quadro pela esquerda, estaca no meio, pousa sua bengala e começa a tirar a roupa. Philip se aproxima dela e fixa-lhe o olhar. A câmera faz um zoom dianteiro sobre seu rosto. A imagem se congela.

No plano seguinte, reencontramos a imagem congelada de Philip Wood numa tela de televisão- um quadro no quadro- sobre o qual vêm se desenhar um buraco de fechadura e a inscrição “Peeping Toms” ( Voyeurs). Trata-se de um programa de televisão. Então, tudo se redimensiona. Compreendemos que Danielle não era cega, e que ela se sabia olhada. Uma situação que poderia não passar de uma simples história de voyeurismo ( como se o voyeurismo pudesse ser simples!) , uma relação intersubjetiva entre um sujeito que olhasse e um sujeito olhado sabendo-se olhado, torna-se ainda mais complexa pela existência de um terceiro olhar: a câmera de televisão que registrava a cena.Esta cena instaura uma dialética do olhar. O que é importante aqui não é o que Philip Woods olha. É o fato de que outro alguém- a câmera de televisão, transformada em personagem fora de campo- o olha olhar.


O olhar objeto.


Esta relação entre aquele que olha-aquele que é olhado se torna mais complexa em Missão: impossível. A equipe de Jim Phelps deve penetrar no interior de uma festa na embaixada americana de Praga, com o objetivo de prender o espião Alexandre Golitsyn ( Marce Iuris), alguns minutos depois que este copiou em um disquete a lista secreta dos agentes americanos na Europa Central.

O ponto nodal desta cena, o que a estrutura e forma, são os óculos Visco: os óculos dotados de um microfone e de uma câmera miniaturizados, com a capacidade de transmitir aquilo que o personagem que o carrega vê e ouve a um monitor que se encontra a mais de um quilômetro de distância. Em um apartamento próximo da embaixada, Jim Phelps vê e ouve tudo, controla e coordena a operação. Nas mãos de De Palma, os óculos Visco não são apenas um simples truque, mas se tornam um instrumento que estabelece uma dialética do olhar, impulsiona-o até os seus limites e acaba por manipular o olhar do personagem, assim como do espectador.

Ethan Hunt penetra na embaixada sob a aparência do senador Waltzer. Durante todo o início da cena, seu rosto permanece oculto, pois a câmera adota seu ponto de vista. Apenas vemos o que aquele personagem (transformado em câmera) vê, e Jim Phelps também.

Mas o que importa aqui não é o fato de que Jim Phelps vê o que Ethan Hunt vê. Nesta relação, o essencial não consiste no que é visto. O que a estrutura é o que não é visto. O olhar subjetivo de Ethan Hunt é objetivado, dirigido, manipulado, impedido por Jim Phelps de ver o que realmente se passa: o grupo Phelps é vigiado por uma segunda equipe que tem por objetivo desmascarar o espião que se infiltrou há algum tempo na IMF.


A noite de Ethan Hunt.


A operação fracassa, e todos os membros da equipe são mortos um a um. Um único sobrevivente: Ethan. Seu nome próprio deve ser tomado ao pé da letra ( hunt: caça, busca). Tal como Édipo, Ethan Hunt parte em busca do culpado, aquele que montou esta maquinação para acusá-lo de ser um espião. Como Édipo, o culpado não é ele. Em Édipo Rei, quem é o culpado? Édipo, por ter matado seu pai e dormido com sua mãe? Não. Os culpados são seus pais, que o abandonaram na montanha para salvar a própria pele, já que um oráculo predira que ele mataria seu pai e dormiria com sua mãe.

Em Missão: impossível, o culpado é Jim Phelps, o pai espiritual de Ethan que joga Claire, sua jovem esposa, em seus braços para melhor desorientá-lo, para que ele se extravie nos meandros da noite negra de Praga, desacreditado, exilado, caçado, perseguido; ele, o caçador profissional, o virtuose da manipulação e do bluff, enganado, burlado, traído. Magnífica cena de errância e de perda, filmada em exterior em Praga, transformada em um labirinto onde a luz oscila entre a latência do azul-noite e a violência do laranja, onde o nevoeiro oculta um novo assassinato. Soberbo trabalho de Steven H. Burum, um câmera ao qual devemos a imagem memorável de filmes como The outsiders e Rumble fish ( Rusty James) de Coppola, ou Body double, The untouchables, Casualties of war, Raising Cain, Carlito’s Way de Brian de Palma.


O Livro de Jó.


Desacreditado, perdido, acusado pelo agente da CIA Kittridge ( Henry Czerny) de ter liquidado seus amigos para se apropriar do disquete contendo a lista dos agentes secretos americanos atuantes na Europa e vendê-la ao traficante de armas Max, Ethan entra no esconderijo do grupo. Sua única esperança para se livrar das acusações: lançar pela Internet uma mensagem a Max.

Ele tecla no computador “job 314”, o código que, segundo Kittridge, Max utiliza para esta operação. Não dá em nada. Em vão, ele tenta variações. No momento em que seu desespero atinge o pico, seu olhar tomba sobre um exemplar da Bíblia, posto, como por acaso, sobre um móvel diante dele. A iluminação e um zoom dianteiro destacam a Santa Escritura dentre os outros livros. E Ethan vê a luz: “job” ( Jó, trabalho, emprego) tem de ser tomado no sentido bíblico. Trata-se do Livro de Jó, mais precisamente do capítulo 3 ( Pereça o dia) e do versículo 14( “com reis, conselheiros da terra, que constroem mausoléus”). Assim como Jó, Ethan é um herói trágico traído por seu pai.

É preciso falar aqui de Tom Cruise, dizer o quanto o desnorteamento de seu personagem se imprime em cada gesto, cada movimento de seu corpo, o quanto o luto antecipado ou diferido do órfão parricida é visível sobre o seu rosto emagrecido.

O que conta o Livro de Jó? “ Incitado por Satã, escreve André Chouraqui, Elohîm permite que Jó perca seus filhos e seus bens, e que seja duramente atingido em seu corpo por um mal aparentemente incurável. O sofrimento do justo permite assim evocar o problema ontológico do mal. Uma questão central domina a obra: como apreciar o destino de Jó em relação às regras geralmente admitidas da retribuição? O sofrimento do justo deve nos fazer duvidar da ordem moral universal? O drama atinge as dimensões da tragédia: Jó é dilacerado na profundidade de seu ser; ele não compreende a justiça deste Elohîm ,que no entanto ele persiste a reconhecer e adorar. Jó, o Sábio é levado a se revoltar contra Jó, o Justo”. 3

No capítulo 3, Jó abre a boca e maldiz o dia em que nasceu: “Por que não morri eu na matriz, saído do ventre para agonizar? (...)Sim, agora eu estaria deitado e em paz; eu dormiria; eu repousaria, então, com os reis e os conselheiros da terra, que se constroem mausoléus”. A vida seria então a longa agonia que dura o lapso de tempo que separa duas mortes: a primeira é o nascimento.


Entre duas Mortes.


Todo o personagem de De Palma é um sonhador que, como que por acaso, acaba num pesadelo ( O que está te acontecendo? Você parece que teve um pesadelo?”, diz a jovem Asiática a Erikson/Michael J. Fox, no final de Casualties of War).

Ethan espera a resposta à mensagem enviada. A porta do apartamento se abre e Jim Phelps aparece resfolegante, coberto de lama, uma ferida no peito. Ele estende suas mãos ensangüentadas para Ethan: “Eu precisava de você. Eu precisava de você na ponte, e você não estava lá”. Presença fantasmagórica que cobre Ethan de recriminações, desvia as últimas palavras do Cristo- “Meu pai, meu pai, por que me abandonastes? “- para transformá-las em “Meu filho, meu filho, por que me abandonastes?”

Close de uma mão feminina que toca o ombro de Ethan. Ele se volta e encontra Claire face a face. O pesadelo continua. O breve lapso de tempo que separa estas duas aparições acaba por jogar Ethan no isolamento absoluto. Nenhuma destas experiências pode ser banalizada. As sensações contraditórias que dispõem do personagem neste instante são neutralizadas, deixando-o cego, situado numa dimensão muito distante daquela que o toca e daquele que tenta tocá-lo, em um mundo onde os gestos não possuem mais nenhum alcance. A segunda visão não anula a primeira. A barreira que os separa é porosa, permeável. Esta coloca Ethan no limiar entre dois sonhos. Tudo o que ele vê ou que aparece só pode ser um sonho dentro de um sonho.


Auto-destruição.


A única piscadela ( clin d’oeil) do filme que anuncia a série, antes de passarmos aos assuntos sérios ( pois , apesar de seu inegável humor, o filme é espantosamente grave, no limite do trágico): Jim Phelps está em um avião. Uma aeromoça se aproxima dele: “O senhor quer ver um filme, Mr. Phelps?- Não gosto de cinema, prefiro teatro, responde ele secamente- Mas um filme ucraniano não lhe diz nada?”, insiste ela, sublinhando a palavra “ucraniano”. Jim Phelps acaba por aceitar a fita de vídeo que a aeromoça lhe oferece, cassete que- é evidente-, não contém nenhum filme ucraniano, mas o anúncio de uma nova “missão impossível”, com a inevitável fórmula final: “Esta fita vai se auto-destruir em cinco segundos”. Phelps, como velho habitué deste ritual tornado clichê, mitiga a fumaça exalada pela fita que se auto-destrói, acendendo um cigarro.

A única coisa que De Palma retém da série é justamente esta idéia de auto-destruição. A narrativa de Missão: impossível se auto-anula à medida em que progride, aniquila a própria idéia de ficção. Cada nova cena anula a precedente. Cada nova etapa conduz a um impasse e acaba por construir um palácio de espelhos de cristal. Aquilo que vemos não é aquilo no qual cremos.

A cena da embaixada é revista e corrigida por Kittridge. Jim e Claire Phelps, que acreditávamos mortos, estão vivos. Max não é, como seu nome indica, um homem mas uma mulher ( Vanessa Redgrave). Jim Phelps volta à cena para contar a história sob um outro ponto de vista, igualmente falso.

O caráter labiríntico da narração e a impossibilidade de fixar a percepção sobre qualquer imagem atingem seu ponto culminante no momento onde Ethan viola o caixa forte da CIA. Esta peça protegida pelo sistema de vigilância mais sofisticado do mundo torna-se o interior do globo ocular, um olho no qual Ethan penetra passando pela pupila- o orifício de ventilação situado no telhado. Seguro unicamente por uma corda, ele flutua neste espaço branco asséptico, e o espectador também. Plongé e contra-plongé se confundem. Não sabemos mais se a câmera está em cima ou embaixo. O olhar está definitivamente desestabilizado.


Do gozo ( jouissance).


No fim do filme, Ethan Hunt afundado na poltrona de um avião que o conduz não sabemos paraonde. Parece esgotado. Neste momento, Ethan vem ocupar o lugar do espectador, que vivera duas horas de jouissance cadenciada, feita de fluxos e refluxos, de jorros descontínuos, de espera, de momentos orgásticos, de breves instantes de relaxamento, de picos e de quedas vertiginosas.

Missão: impossível esposa o movimento ondulatório da jouissance, que se eleva e aterrisa ao se deslocar- ou dando a ilusão de se deslocar-, extenuante e, no entanto, rapidamente recomposto.


Notas:


1. Georges Bataille, Obras completas I.

2. Jacques Lacan, O Seminário, Livro I: Os escritos técnicos de Freud.

3. A Bíblia, traduzida e apresentada por André Chouraqui.


Cahiers du Cinéma, número 507, novembro de 1996.


Tradução: Luiz Soares Júnior.


segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Só para avisar aos leitores daqui que o blog deu uma pausa por motivos de força maior, ou seja: muito trabalho na vida real. Mas a partir da próxima semana as coisas por aqui devem retomar uma certa regularidade.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Três Tourneur


Cineasta maldito, Jacques Tourneur o é de diversas formas: em primeiro lugar porque sistematicamente recusa-se a oferecer ao espectador qualquer ponto de apoio a partir do qual este poderia ter acesso a seus filmes, ou antes: só nos propicia de seu pensamento elementos aparentemente incoerentes, com freqüência inesperados. A explicação é simples; sua maneira de contar uma história consiste em dar uma imagem abreviada( raccourcie) da vida, obtida a partir da decomposição dos mais variados elementos da existência, depois recompondo-os de forma a acelerar certos movimentos, a evitar as abordagens supérfluas. Basta comparar a estrutura de suas cenas com as de um Hitchcock; em Os pássaros, duas imagens de morte brutal são propostas ao espectador com a mais perfeita precaução, o velho com os olhos perfurados, do qual pouco a pouco nos aproximamos, o carro que explode, depois de termos acompanhado a causa desta explosão. Em Tourneur, pelo contrário, a morte é uma coisa breve, irremediável, sem causa aparente. O menino baleado fatalmente à janela, em Wichita, da maneira mais inesperada que pudéramos conceber, é uma cena exemplar desta estética: enquanto que Hitchcock organiza ( encena) até mesmo as reações dos seus espectadores, Tourneur dá de sua obra, ao mesmo tempo, a visão mais brutal e mais elaborada possíveis, uma visão alucinada, já que acossada, recusada, mascarada.


Mostrar apenas movimentos inúteis- ou abortados tão logo iniciados-, simular o rigor quando trágica é a desordem, são características que me parecem desvelar uma impotência em captar a vida, ou antes: uma vontade de precipitar a morte. Appointement in Honduras é isto e muito mais, pois o filme começa sem que a emoção nele se instale, ou antes com a emoção que se retrai ( le coeur oté); vida petrificada que surpreende pela forma com que é destilada, crueldade inútil ( crocodilos e serpentes ameaçadores ao se lançarem, inofensivos ao final das contas), totalmente decorativa, poder-se-ia pensar. Mas há aí um partis pris constante em Tourneur: jamais mostrar um evento dramático quando o exigisse a situação; mas mostrá-lo quando o espectador estivesse desprevenido, quando ele não esperasse ou não esperasse mais, dizer a verdade quando esta tivesse desaparecido. Isto equivale a preceder o inelutável com o propósito de aboli-lo ( em vão), ou então a mostrá-lo como se não acreditássemos mais nele. É um cinema da “pegada” ( empreinte), onde os fins perseguidos jamais se situam no momento exato em que são buscados. Interstícios entre a aparência e a realidade, comédia e drama, vida e morte que constituem provas, não de uma impotência a mostrar o Todo, mas de um desejo de não mostrar nada. O que equivale a dizer: mostrar o que não é mais ou não será jamais, assinalar o irreal sem razão nenhuma, explorar o vazio e dele mostrar apenas o vazio. Este é um cinema novo, na medida em que não serve de forma alguma ao seu autor ( tão desesperado ao final do processo quanto antes). Sem nada cultivar, nada pode colher. Mas ele nos permite descobrir um outro valor: o de uma consciência opressa pelo desespero, o de uma tensão que não se distende jamais.


Eis em que o cinema de Jacques Tourneur é um dos mais abstratos que possamos imaginar: se notamos a ausência em seu cinema desta tensão que animaria as imagens petrificadas ( mesmo em movimento) de seus filmes, é porque cabe ao espectador animar com um novo movimento esta obra de onde a vida foi subtraída; subsistem apenas impulsos fracassados em direção a uma obra jamais realizada, e que poderia ter sido outra. A partir destes impulsos, devemos perseguir a obra, aproximarmo-nos dela ( por meio de nossa própria sensibilidade), visando este fim que ela jamais atingirá. Os finais de Anne of the Indies, Appointement in Honduras não são realistas; são até mesmo inimagináveis. Cabe a nós completar este filme, conduzi-lo à realização que ele poderia ter tido. Pois se o cinema de Tourneur é a princípio pensado e sentido, em seguida este é destruído e recomposto: trata-se para nós de retornar ao pensamento, à idéia inicial do autor, que o mesmo tentou subtrair a nosso olhar. Não nos espantaremos de verificar que, com freqüência, os personagens mais significativos sejam animados por movimentos cujo preciosismo Tourneur se empenha em sublinhar; acontece frequentemente também que uma cor adquira uma importância capital numa cena, às custas das ações importantes; aqui, é preciso sublinhar o papel dinâmico destas cores ( um exemplo marcante é o vestido amarelo de Ann Sheridan em Appointement, que apaga tudo o que está a seu redor), sobre as quais repousa todo o ritmo do filme. Estas são ao mesmo tempo símbolos ( o sangue vermelho sobre os lábios de Jordan) e estruturas. O anódino torna-se capital e ( como o artista) vacilamos diante destas coisas que se desvanecem: anima-se o Nada, desaparece a existência. Este verdadeiro silêncio é a expressão de um vazio desesperado que não se aparenta ao desespero de Daves, por exemplo, que não sabe como preencher a tela, sempre imensa para ele.


Os limites e a ambição de Tourneur estão em outro lugar: ver ( e dar a ver) o que não é, o que não somos, invertendo com este propósito o indispensável e o dispensável, modificando o curso das coisas, desejando mudar a vida. A imagem que ele nos propõe é, portanto, invertida, os elementos reunidos em proporções diferentes, o equilíbrio natural perturbado. Assim, em Anne of the Indies, impossíveis serão as relações entre uma mulher que recusa seu sexo e um homem que mascara sua virilidade. Como não pensar em Nicholas Ray, em Jerry Lewis, ambos obcecados por estas inversões, estas imagens desmentidas tão logo formuladas...


Por que os filmes de Tourneur são tão distanciados do espectador? Pois o que ele busca é não dizer nada a respeito daquilo que é, e isto consiste um pouco em dizer tudo o que não é, ou seja, a ausência. O sentido desapareceu. Se, no entanto, o signo permanece, é porque seus filmes propõem um universo animado unicamente pelos signos do non-sens. Compreende-se a dificuldade em sermos afetados por eles ( de forma plena, ao menos). Eles não passam de instantes dispersos, oferecidos à nossa visão como pedras preciosas, cintilantes de um brilho único, mas de tal forma que seria necessário analisar esta curiosa impressão de mal-estar que sentimos, ao mesmo tempo em que somos deslumbrados. Esta vem, talvez, do fato de que os atos são de chofre situados em seu estágio último, sem que nos seja mostrada a evolução que os conduzira até lá ( à diferença desta estética do insustentável cara a McCarey, e que consiste em nos apresentar, em toda a sua extensão, o movimento impossível, a aproximação indecente de pessoas estranhas umas às outras). É um cinema do instante, e no entanto este instante é sempre repartido. As relações corporais são raras, o erotismo concebido de maneira indireta ( distância) e fugitiva; as cenas de morte também ( só dou por exemplo esta mulher em Wichita, morta por uma bala, através de uma porta), ao mesmo tempo brutais e inacessíveis ( próximas nisto do gozo erótico).


Pois se existe uma distância entre todas as coisas, e em particular entre nós e o metteur em scène, esta razão não deve impedir-nos de ir a seu encontro: cabe a nós preencher o papel que este não pode assumir, de ser o metteur en scène.



Louis Skorecki

Cahiers du Cinéma, 1964

Tradução: Luiz Soares Júnior.

Ensaio de um crime, por Eric Rohmer


Archibald de la Cruz teve a feliz sorte de ver uma outra mão perpetrar crimes que uma não menos feliz sorte lhe impediu de levar a termo. Tal é em duas palavras o argumento do filme que Luis Buñuel realizou no México, há três anos. Como todo conto bem construído, este deixa à interpretação uma margem considerável. Devemos entender simplesmente, como o autor nos sugere numa breve cláusula- cuja ingenuidade só é disputada pelo esplendor de sua ilustração- que é conveniente não tentarmos complicar a vida, e assim mandar ao diabo escrúpulos e casuística? Ou, forçando um pouco a interpretação, devemos considerar os objetos femininos destes assassinatos como os diferentes símbolos dos tabus burgueses ou religiosos que todo homem que se dá ao respeito deve se apressar a abandonar?

Devemos enfim ver neste apólogo uma adição buñueliana à famosa obra de Thomas De Quincey: Do assassinato considerado como uma das Belas Artes, caro aos surrealistas de todos os matizes? Na dúvida, vamos nos ater às aparências, ou seja, às imagens, amplamente fascinantes, embora sejam isentas do cinismo que um Hitchcock ou um Stroheim pudessem ter-lhes imprimido. Mas deixemos a Buñuel seu universo próprio, sobretudo quando temos a chance de encontrá-lo melhor “calçado” ( charpenté) do que de hábito.Eu acabei de empregar o termo “ingênuo”. Não foi com má intenção. A crueldade de nosso herói é a mesma das crianças que torturam um animal ou maltratam um brinquedo: e, de fato, é exatamente sobre um brinquedo- um manequim- que esta crueldade vai se exercer. Sadismo? Estamos a léguas disso. A morte ( lembrem-se da fusão da boneca no forno) parece restituir a vida ao rosto morto: o olho brilha, movimenta-se, a carne palpita, relaxa, à medida em que se decompõe, e percebemos bem que, neste momento, Archibald, que possui o coração mais puro do que acreditara, apaixona-se pela moça que servira de modelo à figura de cera. Da mesma forma, a face “embonecada” da jovem noiva se animará por um segundo: quando o ex-amante empunhar contra ela o revólver e fazer fogo...

Se insisto sobre esses detalhes, é porque busco sempre em Buñuel- cujos “dadas” sociais ou filosóficos me incomodam frequentemente por seu caráter primário- o momento onde o traço ultrapassa a intenção da mão que o delineia. Deplorei muito a ausência destes momentos escolhidos em seus dois últimos filmes ( e sobretudo em Cela s’apelle l’aurore), por não ter sido satisfeito para além de meus desejos. E isto na medida em que a visão anterior e privada de Archibaldo havia dado justamente fundamento às minhas exigências.

Não há sátira melhor do que a que se nutre da sobriedade de elementos ordinários. Clero e polícia figuram em bom lugar na ação; o golpe lançado contra estes é adolescente, mas vivo, elegante, sem precauções oratórias. Muito bem-vinda igualmente a caricatura dos turistas americanos: nenhum ou quase nenhum exagero.

Prossigamos nos elogios. A arrogância um tanto risível dos personagens se acorda com sua classe e meio social. Os efeitos mais preciosos, os gestos mais plasticamente concertantes só participam discretamente deste estatismo, que não é em geral o menor pecado de Buñuel. Assim como liberara o herói, o manequim libertou Buñuel de seu complexo de imobilidade, vítima expiatória do crime de lesa-Majestade ao cinema, que é o de conceber a beleza segundo as normas de Baudelaire.


É por este motivo que passarei rapidamente pelos méritos mais evidentes do filme, os pictóricos. E no entanto, este décor moderno com seus brancos e negros untuosos, estes bibelots barrocos, estas roupas sofisticadas, este magnífico parque do final do filme, são em grande parte responsáveis pela fascinação exercida sobre nós por estes crimes imaginários ou reais , luxuosos e cintilantes como uma vitrine de joalheria. Que importa, afinal, a significação do símbolo? O que nos é dado a ver contenta suficientemente um apetite de essência muito delicada para ser insalubre. Aí reside, penso, a verdadeira moral da fábula.

Já devem ter adivinhado que, de todos os filmes, antigos ou modernos, de Buñuel, Archibald de la Cruz é aquele que mais estimo, o mais prazeroso e bem acabado. Eu o prefiro até mesmo a El, onde o ar que circulava não possuía esta limpidez cristalina. Ali, o entomologista mascarava o poeta; percebia-se um certo desprezo pelo personagem. Aqui, Buñuel é o cúmplice amável de seu amável herói, se não de intenção ao menos de fato. E sabemos bem que, no cinema, não são as intenções que importam.



Eric Rohmer


Arts, outubro 1957


Tradução: Luiz Soares únior.

sábado, 3 de julho de 2010

Abaixo-assinado pela abertura dos aqrquivos da ditadura militar. Todo mundo que aspira à cidadania ( que não é inata nem natural!, sempre bom lembrar) tem que assinar.


http://www.oab-rj.org.br/forms/abaixoassinado.jsp


sexta-feira, 28 de maio de 2010

Uma brincadeira de crianças. Sobre Misterioso objeto ao meio-dia


Misterioso objeto ao meio-dia segue o percurso de uma equipe de cinema na Tailândia que, a cada etapa de sua trajetória, solicita a anônimos para que improvisem uma história. O ponto de partida da narrativa é dado pela primeira pessoa encontrada, uma vendedora ambulante de peixes; em seguida, cada narrador amador é informado do estado em que ficara a narrativa , e a continua à sua maneira. Dois regimes de imagens se alternam no filme; o regime “documentário” dos habitantes das vilas em sua vida cotidiana e filmados na iminência de improvisar seu segmento do conto; e um regime de “ficção”, tradução imediata, com personagens, da narrativa que está sendo improvisada. Misterioso objeto ao meio-dia é um filme alegre, que suscita um prazer lúdico e uma fruição infantil do cinema: isto se dá por meio do jogo de pistas orquestrado pelo autor entre documentário e ficção, entre imagem e som, entre o filme e sua fabricação.

Dentre as inumeráveis leituras possíveis do filme, escolhamos duas. Podemos marcar uma cisão entre “Misterioso objeto” e “ao meio-dia”, e assim reproduzir a estrutura clivada do filme. Como Eternamente sua e Mal tropical, ele é dividido em duas partes bem desiguais: o conto e sua elaboração pelos habitantes das vilas, cujo fim é indicado por um título em forma de créditos, e uma espécie de coda 1 , de apêndice sem intrigas, delimitado e intitulado pelo sibilino carton “Ao meio-dia”. “Misterioso objeto” seria o título da primeira parte, e teria duas significações. Ele pode designar o misterioso objeto que uma narradora introduz no conto: uma bala que, ao cair do bolso do professor, se transforma em um rapaz. O objeto misterioso é também o próprio conto, cadáver requintado ( cadavre exquis) 2 de cinema, monstro estético produzido pelo encontro sobre a mesa de montagem da narrativa oral tradicional, do teatro amador e do cinema moderno. “Ao meio-dia” seria o título de um curto documentário sobre jogos infantis ao meio-dia: algumas crianças jogam futebol da escola, outras se divertem com um cachorro no quintal de casa, situado numa clareira da floresta.

Segunda leitura: o misterioso objeto ao meio-dia é o carrinho de plástico que as crianças amarram no pescoço do cachorro, enquanto uma mulher s instiga a ir lavar as mãos antes de almoçar. Colocar um brinquedo no pescoço de um cachorro é fazer uma versão infantil do “cadavre exquis”: ligar dois elementos heterogêneos e ver o que produz o seu encadeamento.

A coda documentária expõe a arte poética do filme ou, se preferirem, figura um auto-retrato do cineasta enquanto criança que brinca. Primeiro ponto: as ficções afloram nos terrenos baldios dos tempos mortos da vida cotidiana. Segundo ponto: fazer aflorar uma ficção, consiste em fazer raccord entre fragmentos de vida que não se encadeiam, sem procurar preencher os vazios. Terceiro ponto: inventar semelhantes histórias é um jogo de crianças. O cinema de Weerarasethakul encontra sua fonte na memória da infância, ou seja, num tempo onde a vida era apenas tempos mortos, onde o mundo não era ainda o teatro saturado de nossas preocupações , mas uma caixa de brinquedos da qual podíamos dispor livremente para ousar inventar colagens, inventar relações. Weerasethakul não perdeu o fio deste tempo, e seu cinema no-lo oferece. Ele surpreende nosso hábitos de cinéfilos adultos restituindo ao cinema a juventude despreocupada de uma arte capaz de todas as hibridações: a iniciação amorosa toma emprestado as rotas dos contos ancestrais ( Mal dos trópicos), desenhos desajeitados são impressos na superfície narrativa de uma escapada amorosa ( Eternamente sua), legendas permitem a macacos falarem, etc


Colocar um carrinho de plástico no pescoço de um cachorro é também fazer uma montagem áudio-visual. A fuga amedrontada do animal, fonte do prazer infantil, é causada menos pelo brinquedo do que pelo ruído que ele emite ao se arrastar e perambular pelo chão.A invenção consiste em montar um som e uma imagem que a priori não “vão bem” juntas, e ver o que produz a sua junção.

A montagem do som e da imagem é o gesto motor de um filme cujo fim consiste em encadear o registro documentário de uma seqüência de improvisações orais e os fragmentos “encenados” ( mis en scène) da ficção improvisada. Ao invés de simplesmente justapor o documentário e a ficção, de fazê-los alternar numa lógica de ilustração ou de revezamentos, Weerasethakul utiliza a disjunção entre imagem e som para organizar a confusão entre estes dois registros. Várias vezes, o espectador não sabe dizer se o que assiste é de caráter documental ou ficcional. Apenas o som pode guiá-lo... ou perdê-lo.


Este poder do som se mostra mais evidente na primeira passagem à ficção. Depois do carton “Era uma vez”, o filme começa com um longo travelling tomado do interior de um carro em movimento. Esta abertura possui o valor de um programa estético e dramático: ela coloca, ligando-os, as aventuras do conto oral e o princípio de disjunção áudio-visual. O desfile contínuo da paisagem urbana é acompanhado pelo som fora de campo do rádio do carro: sobre um fundo de canção pop sentimental, uma voz masculina narra uma história de amor fracassado, depois recita uma mensagem publicitária. Um outro homem toma a dianteira – adivinhamos, pela mudança no registro da voz, que se trata do condutor do carro falando num auto-falante: “A cavala tá chegando! Direto de Mae Khong! Cavala ao vapor e cavala salgada!” Nos fundos do furgão está sentada uma mulher. Depois de alguns planos de diálogos entre os vendedores e os camponeses, a vendedora de peixes, de frente para a câmera, começa a falar de sua infância. É uma lembrança dolorosa. Pouco sensível à comoção da narradora, o interlocutor fora de campo- compreenderemos mais tarde que se trata da equipe de cinema encarregada de coletar os fragmentos do conto coletivo- pede-lhe para contar uma outra história, “não importa qual história, um romance ou outra coisa”. Aparentemente constrangida, a vendedora demora a continuar. Sem ruptura sonora, sobre o fundo do mesmo som ambiente, a mudança de plano transporta-nos para o interior de uma casa: um rapazinho está sentado diante de uma mesa, uma mulher olha pela janela no plano de fundo. Depois de alguns segundos, ouvimos novamente a voz do vendedor de peixes , ligeiramente abafada pela distância: “A cavala tá chegando! A cavala de Mae Klong!” Enquanto a mulher deixa a janela para ficar próxima ao rapaz sentado à mesa, o vendedor prossegue com seu discurso. Som e imagem parecem sincrônicos, a continuidade sonora incita a interpretar a montagem-imagem no sentido da continuidade: simplesmente passamos para o interior da casa perto da qual estacara o vendedor de peixes, cuja voz entra pela janela, diante da qual se mantinha a mulher, sem dúvida atraída pelo ruído do furgão. Até que ouvimos novamente a voz da vendedora: “Digamos que havia uma casa. E nela um rapaz doente e uma professora”. O nível desta voz surpreende: ela é mixada muito intensamente para estar vindo do exterior, do fora de campo. O ponto de escuta é o mesmo que o do plano precedente: o interior do furgão. As palavras da vendedora, ao redobrar o visível, modificam a posteriori a compreensão da montagem e revelam a passagem, no corte, a um outro regime de imagem. A impressão de continuidade era falsa: aqui começa a narrativa improvisada do conto e, simultaneamente, sua encenação cinematográfica. O som não era sincrônico, ele faz persistir, no fora de campo, o universo documentário sobre as imagens mudas da ficção.

Ao superpor a captação documentária da improvisação oral e a recreação ficcional do conto, Weerasethakul realiza realiza um fantasma de cinema e um sonho de criança: aquele de um encadeamento imediato do visível sobre o oral, da imagem sobre a palavra. A potência performática da palavra é atualizada na economia do filme pelo poder do som sobre a imagem. Em várias ocasiões, a imagem é colocada em suspensão, indeterminada, entre os dois regimes. Então, é o som que é encarregado , com um retardo mais ou menos longo, de qualificar a imagem, de fazê-la se colocar de um lado ou de outro da fronteira porosa entre ficção e documentário.

A disjunção áudio-visual abre assim um espaço comum aos dois regimes do filme. As ficções não são concebidas ex nihilo em um espaço separado do mundo, mas são tomadas pelas malhas da realidade cotidiana, à espreita de sua realização. O percurso da equipe de cinema pela Tailândia age como um revelateur. A ficção do conto eclode espontaneamente à sua passagem. Improvisar um conto parece então o gesto mais natural do mundo: lançamo-nos nesta tarefa enquanto preparamos o jantar, depois o vizinho se engaja no processo. A única condição a esta cristalização espontânea reside na disponibilidade oferecida pelo tempo morto. É preciso saber “tomar/ dar um tempo”, distanciar a trama da vida cotidiana, suspender as ocupações para nos tornarmos disponíveis à potência ficcional que cada um carrega em si. Esta qualidade de presença no mundo não é dada a qualquer um: os tailandeses anônimos que desfilam diante da câmera impressionam pelo jogo que sabem introduzir nas engrenagens de suas vidas.

A passagem sem descontinuidade do documentário à ficção aparece explicitamente no filme. As convenções de uso querem que o making of seja um objeto em separado, filmado por um outro realizador, sob um outro ângulo, distinguido do filme por uma espécie de imagem mais “docu”. Em um plano de Misterioso objeto, ficção e making of da ficção se enlaçam em uma mesma duração, segundo o mesmo ponto de vista. A criança extra-terrestre saída do carro está sentado em uma cadeira, outras pessoas no chão. Um estratagema invisível de montagem faz desaparecer, depois reaparecer o extra-terrestre. O professor, de pé, termina um monólogo com estas palavras: “Mas bem, eu vou te contar esta história mais tarde”. Depois de alguns segundos, um rapaz parcialmente sentado se levanta, sai do recinto por uma abertura à direita do campo, reúne algumas folhas grampeadas, e entra novamente. O extra-terrestre subitamente se dirige à câmera e pergunta: “você filmou mesmo? Foi bom, terminou?” Uma discussão começa entre os atores e um homem fora do campo; quando ele entra no campo, reconhecemos Weerasethakul. Nenhum “cut!” fora pronunciado para assinalar o fim da tomada, a interrupção da ficção. A continuidade se apóia na retomada, depois da passagem ao making of , do “efeito especial” utilizado alguns segundos antes na ficção.

Não é mais o personagem do extra-terrestre que desaparece, mas um simples ator- fôra seu script que ele havia tomado entre as mãos durante os poucos segundos flutuantes entre a ficção e o documentário. Neste plano, o jogo entre o som e a imagem é invertido em relação à primeira passagem à ficção. É a imagem que produz a continuidade, enquanto que a descontinuidade é produzida pela trilha sonora, pela passagem dos atores do diálogo escrito à conversação livre com a equipe do filme. Mas é sempre o som que vem suscitar a ambigüidade, qualificar uma imagem desdobrada, suspensa entre a ficção e sua fabricação.

Walter Benjamin apresenta o “contador de histórias” como uma espécie em vias de desaparição nos tempos do romance moderno e do cinema. O conto não é tecnologicamente reprodutível; ele se transmite oralmente. Ao contrário do romancista, recolhido em sua solidão para escrever, o contador conta histórias entre os outros homens, sua narrativa não está separada de sua vida: “o que ele conta torna-se experiência naqueles que escutam sua história”. Misterioso objeto prova que o cinema, longe de desqualificar a forma oral de transmissão de experiências, constituída pelo conto, pode, pelo contrário, prolongá-la, tomar por sua própria conta a tarefa de encadear- uma história com outra, a ficção e a vida, a oralidade e as imagens. O filme de Weerasethakul não cessa de encaixar os contos uns nos outros. O conto principal é precedido de duas narrativas, uma escutada no rádio, a outra dita pela vendedora de peixes. A criança que termina a história da professora e do extra-terrestre não pode se impedir de implicá-la em um outro conto: uma história de tigre-feiticeiro, embrião de Mal dos trópicos- filme cuja abertura poderia ser o fim de um conto sobre ao qual este filme se liga...e assim sucessivamente, até o último encadeamento, o do carrinho no pescoço do cão, ponto de partida possível para um outro conto. Emaranhado na trama da vida cotidiana, dela se deslindando em direção ao maravilhoso para sem cessar retomá-la, o cinema de Weerasethakul assemelha-se ao conto, tal como descrito por Walter Benjamin: “é a memória que tece o fio que em definitivo forja todas as histórias. Pois estas se ligam todas entre si, como os grandes contadores de histórias, particularmente as Orientais, sempre se empenharam em sublinhar. Em todos eles vive uma Scheherazade, para quem cada episódio de uma história evoca imediata e irreversivelmente outra”.



Cyril Neyrat, Vertigo número 27 , revue de cinéma


Tradução: Luiz Soares Júnior.



Notas:



  1. Coda: Palavra italiana que designa o segmento com que se termina uma música.

2. Cadavre exquis: Jogo literário inventado pelos surrealistas que consiste na composição de um texto ou desenho por várias pessoas, sem que nenhuma seja informada do elemento trazido pelo colaborador precedente. Assim, no romance coletivo “L’amiral flottant”, cujo primeiro capítulo foi escrito por Chesterton, nenhum dos autores conhecia a continuação da história, e deve, segundo Michel Lebrun, se empenhar a deslindar a situação problemática com a qual o predecessor concluíra o capítulo precedente e, por seu turno, a complicar o máximo possível o presente capítulo, a fim de colocar o próximo autor na mesma dificuldade de execução.