quarta-feira, 7 de julho de 2010

Três Tourneur


Cineasta maldito, Jacques Tourneur o é de diversas formas: em primeiro lugar porque sistematicamente recusa-se a oferecer ao espectador qualquer ponto de apoio a partir do qual este poderia ter acesso a seus filmes, ou antes: só nos propicia de seu pensamento elementos aparentemente incoerentes, com freqüência inesperados. A explicação é simples; sua maneira de contar uma história consiste em dar uma imagem abreviada( raccourcie) da vida, obtida a partir da decomposição dos mais variados elementos da existência, depois recompondo-os de forma a acelerar certos movimentos, a evitar as abordagens supérfluas. Basta comparar a estrutura de suas cenas com as de um Hitchcock; em Os pássaros, duas imagens de morte brutal são propostas ao espectador com a mais perfeita precaução, o velho com os olhos perfurados, do qual pouco a pouco nos aproximamos, o carro que explode, depois de termos acompanhado a causa desta explosão. Em Tourneur, pelo contrário, a morte é uma coisa breve, irremediável, sem causa aparente. O menino baleado fatalmente à janela, em Wichita, da maneira mais inesperada que pudéramos conceber, é uma cena exemplar desta estética: enquanto que Hitchcock organiza ( encena) até mesmo as reações dos seus espectadores, Tourneur dá de sua obra, ao mesmo tempo, a visão mais brutal e mais elaborada possíveis, uma visão alucinada, já que acossada, recusada, mascarada.


Mostrar apenas movimentos inúteis- ou abortados tão logo iniciados-, simular o rigor quando trágica é a desordem, são características que me parecem desvelar uma impotência em captar a vida, ou antes: uma vontade de precipitar a morte. Appointement in Honduras é isto e muito mais, pois o filme começa sem que a emoção nele se instale, ou antes com a emoção que se retrai ( le coeur oté); vida petrificada que surpreende pela forma com que é destilada, crueldade inútil ( crocodilos e serpentes ameaçadores ao se lançarem, inofensivos ao final das contas), totalmente decorativa, poder-se-ia pensar. Mas há aí um partis pris constante em Tourneur: jamais mostrar um evento dramático quando o exigisse a situação; mas mostrá-lo quando o espectador estivesse desprevenido, quando ele não esperasse ou não esperasse mais, dizer a verdade quando esta tivesse desaparecido. Isto equivale a preceder o inelutável com o propósito de aboli-lo ( em vão), ou então a mostrá-lo como se não acreditássemos mais nele. É um cinema da “pegada” ( empreinte), onde os fins perseguidos jamais se situam no momento exato em que são buscados. Interstícios entre a aparência e a realidade, comédia e drama, vida e morte que constituem provas, não de uma impotência a mostrar o Todo, mas de um desejo de não mostrar nada. O que equivale a dizer: mostrar o que não é mais ou não será jamais, assinalar o irreal sem razão nenhuma, explorar o vazio e dele mostrar apenas o vazio. Este é um cinema novo, na medida em que não serve de forma alguma ao seu autor ( tão desesperado ao final do processo quanto antes). Sem nada cultivar, nada pode colher. Mas ele nos permite descobrir um outro valor: o de uma consciência opressa pelo desespero, o de uma tensão que não se distende jamais.


Eis em que o cinema de Jacques Tourneur é um dos mais abstratos que possamos imaginar: se notamos a ausência em seu cinema desta tensão que animaria as imagens petrificadas ( mesmo em movimento) de seus filmes, é porque cabe ao espectador animar com um novo movimento esta obra de onde a vida foi subtraída; subsistem apenas impulsos fracassados em direção a uma obra jamais realizada, e que poderia ter sido outra. A partir destes impulsos, devemos perseguir a obra, aproximarmo-nos dela ( por meio de nossa própria sensibilidade), visando este fim que ela jamais atingirá. Os finais de Anne of the Indies, Appointement in Honduras não são realistas; são até mesmo inimagináveis. Cabe a nós completar este filme, conduzi-lo à realização que ele poderia ter tido. Pois se o cinema de Tourneur é a princípio pensado e sentido, em seguida este é destruído e recomposto: trata-se para nós de retornar ao pensamento, à idéia inicial do autor, que o mesmo tentou subtrair a nosso olhar. Não nos espantaremos de verificar que, com freqüência, os personagens mais significativos sejam animados por movimentos cujo preciosismo Tourneur se empenha em sublinhar; acontece frequentemente também que uma cor adquira uma importância capital numa cena, às custas das ações importantes; aqui, é preciso sublinhar o papel dinâmico destas cores ( um exemplo marcante é o vestido amarelo de Ann Sheridan em Appointement, que apaga tudo o que está a seu redor), sobre as quais repousa todo o ritmo do filme. Estas são ao mesmo tempo símbolos ( o sangue vermelho sobre os lábios de Jordan) e estruturas. O anódino torna-se capital e ( como o artista) vacilamos diante destas coisas que se desvanecem: anima-se o Nada, desaparece a existência. Este verdadeiro silêncio é a expressão de um vazio desesperado que não se aparenta ao desespero de Daves, por exemplo, que não sabe como preencher a tela, sempre imensa para ele.


Os limites e a ambição de Tourneur estão em outro lugar: ver ( e dar a ver) o que não é, o que não somos, invertendo com este propósito o indispensável e o dispensável, modificando o curso das coisas, desejando mudar a vida. A imagem que ele nos propõe é, portanto, invertida, os elementos reunidos em proporções diferentes, o equilíbrio natural perturbado. Assim, em Anne of the Indies, impossíveis serão as relações entre uma mulher que recusa seu sexo e um homem que mascara sua virilidade. Como não pensar em Nicholas Ray, em Jerry Lewis, ambos obcecados por estas inversões, estas imagens desmentidas tão logo formuladas...


Por que os filmes de Tourneur são tão distanciados do espectador? Pois o que ele busca é não dizer nada a respeito daquilo que é, e isto consiste um pouco em dizer tudo o que não é, ou seja, a ausência. O sentido desapareceu. Se, no entanto, o signo permanece, é porque seus filmes propõem um universo animado unicamente pelos signos do non-sens. Compreende-se a dificuldade em sermos afetados por eles ( de forma plena, ao menos). Eles não passam de instantes dispersos, oferecidos à nossa visão como pedras preciosas, cintilantes de um brilho único, mas de tal forma que seria necessário analisar esta curiosa impressão de mal-estar que sentimos, ao mesmo tempo em que somos deslumbrados. Esta vem, talvez, do fato de que os atos são de chofre situados em seu estágio último, sem que nos seja mostrada a evolução que os conduzira até lá ( à diferença desta estética do insustentável cara a McCarey, e que consiste em nos apresentar, em toda a sua extensão, o movimento impossível, a aproximação indecente de pessoas estranhas umas às outras). É um cinema do instante, e no entanto este instante é sempre repartido. As relações corporais são raras, o erotismo concebido de maneira indireta ( distância) e fugitiva; as cenas de morte também ( só dou por exemplo esta mulher em Wichita, morta por uma bala, através de uma porta), ao mesmo tempo brutais e inacessíveis ( próximas nisto do gozo erótico).


Pois se existe uma distância entre todas as coisas, e em particular entre nós e o metteur em scène, esta razão não deve impedir-nos de ir a seu encontro: cabe a nós preencher o papel que este não pode assumir, de ser o metteur en scène.



Louis Skorecki

Cahiers du Cinéma, 1964

Tradução: Luiz Soares Júnior.

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