Misterioso objeto ao meio-dia segue o percurso de uma equipe de cinema na Tailândia que, a cada etapa de sua trajetória, solicita a anônimos para que improvisem uma história. O ponto de partida da narrativa é dado pela primeira pessoa encontrada, uma vendedora ambulante de peixes; em seguida, cada narrador amador é informado do estado em que ficara a narrativa , e a continua à sua maneira. Dois regimes de imagens se alternam no filme; o regime “documentário” dos habitantes das vilas em sua vida cotidiana e filmados na iminência de improvisar seu segmento do conto; e um regime de “ficção”, tradução imediata, com personagens, da narrativa que está sendo improvisada. Misterioso objeto ao meio-dia é um filme alegre, que suscita um prazer lúdico e uma fruição infantil do cinema: isto se dá por meio do jogo de pistas orquestrado pelo autor entre documentário e ficção, entre imagem e som, entre o filme e sua fabricação.
Dentre as inumeráveis leituras possíveis do filme, escolhamos duas. Podemos marcar uma cisão entre “Misterioso objeto” e “ao meio-dia”, e assim reproduzir a estrutura clivada do filme. Como Eternamente sua e Mal tropical, ele é dividido em duas partes bem desiguais: o conto e sua elaboração pelos habitantes das vilas, cujo fim é indicado por um título em forma de créditos, e uma espécie de coda 1 , de apêndice sem intrigas, delimitado e intitulado pelo sibilino carton “Ao meio-dia”. “Misterioso objeto” seria o título da primeira parte, e teria duas significações. Ele pode designar o misterioso objeto que uma narradora introduz no conto: uma bala que, ao cair do bolso do professor, se transforma em um rapaz. O objeto misterioso é também o próprio conto, cadáver requintado ( cadavre exquis) 2 de cinema, monstro estético produzido pelo encontro sobre a mesa de montagem da narrativa oral tradicional, do teatro amador e do cinema moderno. “Ao meio-dia” seria o título de um curto documentário sobre jogos infantis ao meio-dia: algumas crianças jogam futebol da escola, outras se divertem com um cachorro no quintal de casa, situado numa clareira da floresta.
A coda documentária expõe a arte poética do filme ou, se preferirem, figura um auto-retrato do cineasta enquanto criança que brinca. Primeiro ponto: as ficções afloram nos terrenos baldios dos tempos mortos da vida cotidiana. Segundo ponto: fazer aflorar uma ficção, consiste em fazer raccord entre fragmentos de vida que não se encadeiam, sem procurar preencher os vazios. Terceiro ponto: inventar semelhantes histórias é um jogo de crianças. O cinema de Weerarasethakul encontra sua fonte na memória da infância, ou seja, num tempo onde a vida era apenas tempos mortos, onde o mundo não era ainda o teatro saturado de nossas preocupações , mas uma caixa de brinquedos da qual podíamos dispor livremente para ousar inventar colagens, inventar relações. Weerasethakul não perdeu o fio deste tempo, e seu cinema no-lo oferece. Ele surpreende nosso hábitos de cinéfilos adultos restituindo ao cinema a juventude despreocupada de uma arte capaz de todas as hibridações: a iniciação amorosa toma emprestado as rotas dos contos ancestrais ( Mal dos trópicos), desenhos desajeitados são impressos na superfície narrativa de uma escapada amorosa ( Eternamente sua), legendas permitem a macacos falarem, etc
Colocar um carrinho de plástico no pescoço de um cachorro é também fazer uma montagem áudio-visual. A fuga amedrontada do animal, fonte do prazer infantil, é causada menos pelo brinquedo do que pelo ruído que ele emite ao se arrastar e perambular pelo chão.A invenção consiste em montar um som e uma imagem que a priori não “vão bem” juntas, e ver o que produz a sua junção.
A montagem do som e da imagem é o gesto motor de um filme cujo fim consiste em encadear o registro documentário de uma seqüência de improvisações orais e os fragmentos “encenados” ( mis en scène) da ficção improvisada. Ao invés de simplesmente justapor o documentário e a ficção, de fazê-los alternar numa lógica de ilustração ou de revezamentos, Weerasethakul utiliza a disjunção entre imagem e som para organizar a confusão entre estes dois registros. Várias vezes, o espectador não sabe dizer se o que assiste é de caráter documental ou ficcional. Apenas o som pode guiá-lo... ou perdê-lo.
Este poder do som se mostra mais evidente na primeira passagem à ficção. Depois do carton “Era uma vez”, o filme começa com um longo travelling tomado do interior de um carro
Ao superpor a captação documentária da improvisação oral e a recreação ficcional do conto, Weerasethakul realiza realiza um fantasma de cinema e um sonho de criança: aquele de um encadeamento imediato do visível sobre o oral, da imagem sobre a palavra. A potência performática da palavra é atualizada na economia do filme pelo poder do som sobre a imagem. Em várias ocasiões, a imagem é colocada em suspensão, indeterminada, entre os dois regimes. Então, é o som que é encarregado , com um retardo mais ou menos longo, de qualificar a imagem, de fazê-la se colocar de um lado ou de outro da fronteira porosa entre ficção e documentário.
Não é mais o personagem do extra-terrestre que desaparece, mas um simples ator- fôra seu script que ele havia tomado entre as mãos durante os poucos segundos flutuantes entre a ficção e o documentário. Neste plano, o jogo entre o som e a imagem é invertido em relação à primeira passagem à ficção. É a imagem que produz a continuidade, enquanto que a descontinuidade é produzida pela trilha sonora, pela passagem dos atores do diálogo escrito à conversação livre com a equipe do filme. Mas é sempre o som que vem suscitar a ambigüidade, qualificar uma imagem desdobrada, suspensa entre a ficção e sua fabricação.
Walter Benjamin apresenta o “contador de histórias” como uma espécie em vias de desaparição nos tempos do romance moderno e do cinema. O conto não é tecnologicamente reprodutível; ele se transmite oralmente. Ao contrário do romancista, recolhido em sua solidão para escrever, o contador conta histórias entre os outros homens, sua narrativa não está separada de sua vida: “o que ele conta torna-se experiência naqueles que escutam sua história”. Misterioso objeto prova que o cinema, longe de desqualificar a forma oral de transmissão de experiências, constituída pelo conto, pode, pelo contrário, prolongá-la, tomar por sua própria conta a tarefa de encadear- uma história com outra, a ficção e a vida, a oralidade e as imagens. O filme de Weerasethakul não cessa de encaixar os contos uns nos outros. O conto principal é precedido de duas narrativas, uma escutada no rádio, a outra dita pela vendedora de peixes. A criança que termina a história da professora e do extra-terrestre não pode se impedir de implicá-la em um outro conto: uma história de tigre-feiticeiro, embrião de Mal dos trópicos- filme cuja abertura poderia ser o fim de um conto sobre ao qual este filme se liga...e assim sucessivamente, até o último encadeamento, o do carrinho no pescoço do cão, ponto de partida possível para um outro conto.
Cyril Neyrat, Vertigo número 27 , revue de cinéma
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Notas:
- Coda: Palavra italiana que designa o segmento com que se termina uma música.
2. Cadavre exquis: Jogo literário inventado pelos surrealistas que consiste na composição de um texto ou desenho por várias pessoas, sem que nenhuma seja informada do elemento trazido pelo colaborador precedente. Assim, no romance coletivo “L’amiral flottant”, cujo primeiro capítulo foi escrito por Chesterton, nenhum dos autores conhecia a continuação da história, e deve, segundo Michel Lebrun, se empenhar a deslindar a situação problemática com a qual o predecessor concluíra o capítulo precedente e, por seu turno, a complicar o máximo possível o presente capítulo, a fim de colocar o próximo autor na mesma dificuldade de execução.
Sem mais palavras:excelente.
ResponderExcluirhttp://ordet1.blogspot.com/2010/05/sud-pralad-apichatpong-weerasethakul_28.html