quinta-feira, 29 de abril de 2010

Lost Highway: o isolamento sensorial segundo Lynch

A leitura do roteiro de Lost highway, que acaba de ser lançado, é muito instrutiva. Revela-nos que a versão final do filme de David Lynch é o resultado de um refinado trabalho de cortes. Todas as seqüências com caráter explicativo foram excluídas. Todas as junções narrativas foram cuidadosamente eliminadas. O filme ,é claro, ganhou em potência elíptica. Esta “poda” narrativa lhe permitiu sobretudo atingir uma perturbadora opacidade, que procede de uma série de golpes de força rítmicos absolutamente envolventes. Deste ponto de vista, Lost highway é certamente um dos filmes contemporâneos que mais suscitou interrogações da parte de um espectador desorientado, e que busca se situar. Podemos assim presumir que Lynch projetou, com este filme profundamente inovador, criar uma relação totalmente inédita com o espectador.
Por um lado, o filme distribui uma multiplicidade de signos, de índices, de enigmas, de lapsos que, por meio de um jogo de pistas, espelham uma dimensão ( doublure, dobra) secreta da realidade; esta, tal qual um inconsciente muito ativo, se manifestaria permanentemente de forma descontínua, e encobriria a vida com um leve véu paranóico. É a função conspiradora e esotérica do roteiro. Tudo em Lost highway, aliás como também em Twin Peaks, o filme e a série, remete a um complot inexprimível, feito de premonições e de percepções extra-sensoriais, o que os aparenta tanto a uma certa tendência do cinema moderno, a do sentido suspenso ( ver a recente programação da Cinemateca Francesa em torno do tema da conspiração), quanto à lógica do romance-folhetim, de que a série X Files ( exibida no M6) é um avatar absolutamente apaixonante, e cuja estética deve muito à série Twin Peaks. Os signos flutuam e não mais se ligam uns aos outros. A narrativa não está mais em primeiro plano, mas tem essencialmente uma função rítmica ou climática. Notemos que esta forma de abstração lírica não é absolutamente o apanágio de um cinema de autor, ou de artista, mas encontra insuspeitáveis ressonâncias no cinema de ação. De The last action hero ( John McTiernan) ao recente e curioso Au revoir à jamais ( Renny Harlin), passando por Die Hard 3 ( McTiernan ainda) ou L’Effaceur ( Charles Russel), a distribuição de signos enigmáticos e a ausência de uma ligação aparente entre eles tornou-se uma verdadeira figura de estilo. A ausência de raccord no nível espacial encontra enfim sua correspondência no nível mental. Em Lost Highway, o complot é sem fim, sem fundo, o inimigo está no interior do país ou do cérebro, e as significações deliram. Pois toda a arte de Lynch, que atinge seu auge em Lost Highway, consiste em fazer a América delirar- seu puritanismo, suas soap-operas, suas perversões ocultas, seus complots- ou seja, fazê-la sair de seus esconderijos.
Por outro lado, Lynch busca um contato hiper-sensorial com seu espectador; ele trabalha no sentido de colocá-lo em um certo estado de receptividade, fazendo-o simultaneamente se desorientar ( perdre pied) e encontrar uma nova relação com fluxos de percepção excessivamente sutis, que se aparentam, é claro, aos que nos é possível atingir através do uso de uma droga. É a função musical ou cerimonial da mise en scéne. Há, deste ponto de vista, um evidente parentesco entre o cinema de Kenneth Anger e o de David Lynch. Em ambos, o metteur en scéne é uma espécie de xamã, de médium que busca suscitar o transe no espectador, com o objetivo de manter despertas regiões anestesiadas de seu cérebro. Isto é particularmente verdadeiro no caso das cenas de amor em Lost Highway, verdadeiras cerimônias inquietantes , e que fazem assomar não apenas os fluxos eróticos mas cósmicos. A música, tanto em Anger quanto em Lynch, desempenha também um papel fundamental. Anger aliás usou a canção Blue velvet vários anos antes de Lynch. Em Lost highway, cada trecho musical, do genial I’m deranged de Bowie a This magic moment de Lou Reed, passando pela sublime Insensatez de Antonio Carlos Jobim, sem esquecer todas as intervenções de Trent Raznor ( que já concebera a trilha sonora de Natural born killers de Oliver Stone), funciona ao mesmo tempo como um comentário da seqüência correspondente e como uma intensificação da ação que decorre. Lynch, com a cumplicidade de Badalamenti, cria assim uma verdadeira narrativa musical paralela, com seus cuts brutais e suas revoadas líricas. Assim como a música é absolutamente visual, a mise em scéne torna-se musical. Desde Blue velvet, Lynch tem a tendência a fazer durar cada vez mais as sequências, a estirá-las, a infundir-lhes uma metástase e a considerá-las como entidades autônomas que são tratadas musicalmente. Em Lost highway, esta dimensão hipnótica e musical da mise en scéne é de tal forma interna ao filme que dir-se-ia que a arte de Lynch está às vezes mais próxima de certos músicos conceituais- como Brian Eno, Tricky ou Bjork, que cria uma realidade musical fascinante por seu ultrapassamento das contradições entre tecnologia e instrumentação tradicional- que do cinema.
No ponto de encontro de todas estas funções, há o filme, realidade em si que não possui outro referente senão ele mesmo. Para compreender Lost highway, o pior lugar seria o ocupado pelo espectador-detetive ( lugar de que os policiais no filme, sempre pasmos, são os substitutos ideais), que desejaria a todo preço decifrar ou interpretar o filme através de um discurso, um saber, uma estrutura unívoca, quer esta seja analítica, policial, cinefílica, mística ou simplesmente filosófica, mas sempre exterior a este film-boîte1. Não que este filme-máquina não possa acolher toda a espécie de significações , mas apenas para eletrizá-las e fazê-las girar; é absolutamente necessário entrar no filme de Lynch como no interior de um organismo vivo, nele se abrigar, de habitá-lo e ser por ele habitado, de assombrá-lo e ser assombrado por ele. A figura do anel de Moebius, com suas duas faces que se voltam para si mesmas, evocada por Michel Chion em sua excelente monografia sobre Lynch, jamais foi tão adequada do que quando aplicada a Lost Highway. O jogo de dualidades, de ressonâncias, de ecos que constituem o próprio fundo do filme não nos diz outra coisa. Tudo é duplo em Lost highway- os personagens, as situações, os objetos-, e cada elemento só pode ser percebido em função de uma rede de correspondências próprias ao filme. O espectador é tomado em um circuito integrado, um círculo involutivo no interior do qual ele deve criar suas próprias referências. Ainda mais que em Level 5, Lost highway talvez seja este puzzle, invocado por Chris Marker, cujo desenho não remete mais a nenhum modelo, mas unicamente a si.
O circuito temporal de Lost highwayw é muito estranho. Embora a idéia da narrativa seja finalmente muito linear e suponha uma sucessão temporal cronológica, tudo se passa como se as relações entre o passado, o presente e o futuro não obedecessem mais a regras de subordinação. Sem revolucionar de maneira explícita a cronologia, Lynch torna impossível a identificação do momento. A substituição de identidade entre Fred Madison e Pete Dayton é o pivot do filme, mas sem seguida nada nos garante que o que é situado cronologicamente depois não tenha se passado antes, pois o fim do filme remete à sequência da abertura. Mais precisamente, o tempo da narrativa, em Lost highway, constitui ainda um tempo perfeitamente interno a si mesmo, cujo desenrolar obedece a regras que não tem nada em comum com as do tempo da crônica. É um tempo espacializado. Como o Homem-Mistério, o tempo possui de alguma forma o dom da ubiqüidade. Mas ele é fechado sobre si mesmo apenas em aparência, pois pode permanentemente integrar informações que o fazem mudar de direção. Neste sentido, o cineasta mais próximo de Lynch seria talvez o Bergman que, em meados dos anos 60, forjou filmes-cérebro, cuja lógica própria é a de uma máquina produtora de imagens e de um espiral de tempos internos a estas mesmas imagens. A aproximação não é fortuita, já que Lynch é um grande admirador de Bergman, a tal ponto que o rosto do Homem-Mistério em Lost Highway assemelha-se à máscara da Morte em Sétimo selo. Dir-se-ia assim que se Twin Peaks era para Lynch um equivalente possível da Hora do lobo, Lost highway é um pouco o seu Persona, por seu jogo sobre a dualidade e a dissolução do tempo e da identidade que este jogo pressupõe. No mundo anglo-saxônico, apenas Kubrick e Cronenber souberam criar cristais de tempo tão fascinantes. 2001 e Shining produziram em sua época o mesmo efeito de sideração e desorientação. Videodrome e Crash igualmente. O precursor desta estruturação do tempo é, evidentemente, Hitchcock que, com Vertigo, tinha criado uma linha temporal perfeitamente autônoma, já fundada sobre a repetição e a dualidade. Mas Vertigo, que claramente é a matriz do filme de Lynch ( que nos propõe uma versão invertida, na qual a morena é frígida e a loira explosiva), como tantos outros, permanecia, apesar de sua extraordinária potência poética, ainda ligado a uma cronologia muito tradicional. Enquanto que Lost Highway, assim como Shining antes dele, ou Crash bem recentemente, poderia ser visto como um filme-instalação, que nos contempla tanto quanto é contemplado, que nos persegue tanto quanto nós o encaramos. Neste sentido, o trabalho de Lynch é tão próximo de Hitchcock quanto de artistas contemporâneos como Bill Viola ou Gary Hill. Ou mais exatamente: ele é uma releitura de Hitchcock no tempo das instalações especulativas. . As câmeras-cassetes de vigilância em Lost highway são como naves exploradoras, sondas de imagens que criam um horizonte virtual, um pouco à maneira das instalações de Gary Hill. Em outros momentos, a utilização da multi-projeção e da superimpressão evoca diretamente a arte de Bill Viola. Lost highway é uma fita de sonhos, como a estrada perdida que vemos desfilar a toda velocidade nos créditos, mas é uma fita que teria integrado, nos tempos do vídeo e da eletrônica, os avanços e retrocessos rápidos. Assim, pode-se, a todo momento do filme, entrarmos em contato com não importa qualquer outro instante do filme. Dom de ubiqüidade, ainda e sempre...
Se o cinema de Lynch é abstrato, é à força de ser figurativo. Carregado de todas as imagens americanas, das mais artísticas- o fascínio de Lynch por Edward Hopper não é desmentido aqui- às mais triviais- a publicidade e, claro,a pornografia-, passando pela fotografia, as séries televisivas, ou ainda algumas obras fulgurantes ( A morte num beijo ou A marca da maldade, ou mesmo seus próprios filmes, Eraserhead e Blue Velvet, sem esquecer todos os outros que foram citados). No entanto, Lost highway é o contrário de um filme-citação. Longe do maneirismo ou da referência, dir-se-ia que Lynch integrou todas estas imagens em um fundo indiferenciado que faz coexistirem múltiplas espessuras, a fim de melhor fazer assomarem suas próprias figuras. A figuração, que é o grande assunto do cinema americano ( ver Mars attacks! De Tim Burton, filme que tira sua força de uma arte estritamente figurativa), toma em Lynch uma dimensão particularmente saturada. Este excesso de figuração, cujo emblema mais intenso será o personagem de Patrícia Arquette, leva à iconoclastia ( a desfiguração ou o esfacelamento), que igualmente é ultrapassada em direção a uma abstração que passa pela “descarga” de todas as figuras, e se aparenta muito nitidamente ao processo cibernético de compressão de dados. Tendo assim realizado sua própria revolução, Lost Highway pode desta maneira flutuar no éter, aberto a todas as virtualidades, máquina de pensamento que marca a espantosa irrupção de um grande cinema figurativo-abstrato.

Thierry Jousse
Cahiers du Cinéma, número 511
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. Film boîte: Filme caixa, fechado em si mesmo, tendo a si mesmo como referente.

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