domingo, 19 de dezembro de 2010

O mundo-olhar de Brian de Palma, Iannis Katsahnias


No princípio, é o olho. O olho de peixe morto de Marion Crane ( Janet Leigh) sob a ducha de Psicose: imagem guardiã de um túmulo ( guardiã do recalque em Hitchcock), e de sua abertura (imagem que autoriza o retorno luminoso do recalcado em De Palma). Imagem atraente tornada inquietante, e que ocupa um status extremamente elevado no horror: o “olho da consciência”: “Parece, com efeito, impossível com relação ao olho falar de outra coisa senão de sedução, escreve Bataille, nada sendo mais atraente nos corpos dos animais e dos homens. Mas a sedução extrema coincide provavelmente com os limites do horror”.1

No cinema de De Palma, o olho aberto da morte torna-se sucessivamente “ guloseima canibal” ( o olho do Fantasma/William Finley, saído de sua órbita em Phantom of the paradise), telepático ( os olhos azuis fosforescentes, dotados de poderes extra-lúcidos e maléficos de Gillian/Amy Irving, em A Fúria). Em Missão: impossível, o olho tornou-se câmera em um mundo regido pelo olhar.


A vacilação das aparências.


Um monitor no fundo de um cenário sombrio. A silhueta de um homem ( Jack Emilio/Estevez) que observa a cena transmitida no vídeo em preto e branco: um homem geme em russo: “Eu não me lembro disso. Não me lembro do que aconteceu.” Ao seu lado, o corpo ensangüentado de uma jovem. Um outro homem o pressiona: “Me diz o que eu quero saber e eu te tiro daí”.

Jack se inquieta. Sobre a tela de seu computador, ele vê as pulsações do coração da jovem diminuírem perigosamente. Se esta cena durar alguns segundos a mais, a mulher morrerá. A câmera de vídeo faz uma panorâmica para enquadrar Claire ( Emmanuelle Béart) ,a jovem, em close. A imagem, nebulosa a princípio, hesita, tateia, depois torna-se nítida. Tudo se dá neste instante onde o rosto de Claire chancela entre o flou e o nítido, onde ela navega entre a vida e a morte.

O homem interrogado acaba por falar, e é morto em seguida. Seu interrogador tira sua máscara e descobre seu verdadeiro rosto: é Etahn Hunt ( Tom Cruise), um agente da IMF ( Força da Missão Impossível). Close de uma injeção intravenosa que mergulha no braço de Claire para reanimá-la. Close em contra-plongé, focal curta, de Ethan, que se debruça sobre Claire quase morta, já morta. Sua inquietude revela um desejo que ele tenta ignorar, um desejo frustrado. Claire, a mulher de Jim Phelps ( Jon Voight), o patrão, o mentor, o pai espiritual de Ethan, é um mau objeto de desejo, um objeto interdito.

A frustração não é um fenômeno que possamos objetivar no sujeito sob a forma do desvio de um ato que o une a este objeto, diz Lacan. Não se trata de uma aversão animal. Por mais prematuro que seja o seu envolvimento, o sujeito ressente o mau objeto como uma frustração. E, em um mesmo movimento, a frustração é ressentida no outro. Há uma relação recíproca de aniquilação, uma relação mortal estruturada por estes dois abismos- ora o desejo se extingue, ora o objeto desaparece ( sublinhado meu)”. 2

A morte icônica de Claire a transforma em ícone, imagem aurática, próxima e distante ao mesmo tempo, intocável. Claire abre os olhos, contempla Ethan e, ao olhá-lo, o implica definitivamente. A partir deste momento e até o fim do filme, ela não cessará de inquietar o olhar de Ethan, de aparecer, de oscilar entre a vida e a morte, sonho e realidade. Móvel, ondulante, incapturável, Claire arrisca-se a cada instante a se perder, e Etahn com ela. Talvez precisássemos retornar a Laura, de Otto Preminger, para reencontrarmos uma tal representação do fantasma encarnado num espectro ( phantasme devenu fantôme).

A interpretação de Béart, sua forma de encontrar seu lugar em uma super-produção hollywoodiana, torna este jogo da dupla distância comovente. Pois, à imagem de seu personagem, ela arrisca-se a se perder a cada momento, perder-se nas engrenagens deste gigantesco mecanismo, para reencontrar-se mais adiante , in extremis.


O duplo olhar.


A abertura de Sisters: seguido por uma panorâmica de alto a baixo, Philip Wood ( Lisle Wilson), um Negro, recoloca sua calça num vestiário. A câmera dá um zoom para trás. No primeiro plano, Danielle Breton ( Margot Kidder), uma cega com óculos escuros e uma bengala branca, entra no quadro pela esquerda, estaca no meio, pousa sua bengala e começa a tirar a roupa. Philip se aproxima dela e fixa-lhe o olhar. A câmera faz um zoom dianteiro sobre seu rosto. A imagem se congela.

No plano seguinte, reencontramos a imagem congelada de Philip Wood numa tela de televisão- um quadro no quadro- sobre o qual vêm se desenhar um buraco de fechadura e a inscrição “Peeping Toms” ( Voyeurs). Trata-se de um programa de televisão. Então, tudo se redimensiona. Compreendemos que Danielle não era cega, e que ela se sabia olhada. Uma situação que poderia não passar de uma simples história de voyeurismo ( como se o voyeurismo pudesse ser simples!) , uma relação intersubjetiva entre um sujeito que olhasse e um sujeito olhado sabendo-se olhado, torna-se ainda mais complexa pela existência de um terceiro olhar: a câmera de televisão que registrava a cena.Esta cena instaura uma dialética do olhar. O que é importante aqui não é o que Philip Woods olha. É o fato de que outro alguém- a câmera de televisão, transformada em personagem fora de campo- o olha olhar.


O olhar objeto.


Esta relação entre aquele que olha-aquele que é olhado se torna mais complexa em Missão: impossível. A equipe de Jim Phelps deve penetrar no interior de uma festa na embaixada americana de Praga, com o objetivo de prender o espião Alexandre Golitsyn ( Marce Iuris), alguns minutos depois que este copiou em um disquete a lista secreta dos agentes americanos na Europa Central.

O ponto nodal desta cena, o que a estrutura e forma, são os óculos Visco: os óculos dotados de um microfone e de uma câmera miniaturizados, com a capacidade de transmitir aquilo que o personagem que o carrega vê e ouve a um monitor que se encontra a mais de um quilômetro de distância. Em um apartamento próximo da embaixada, Jim Phelps vê e ouve tudo, controla e coordena a operação. Nas mãos de De Palma, os óculos Visco não são apenas um simples truque, mas se tornam um instrumento que estabelece uma dialética do olhar, impulsiona-o até os seus limites e acaba por manipular o olhar do personagem, assim como do espectador.

Ethan Hunt penetra na embaixada sob a aparência do senador Waltzer. Durante todo o início da cena, seu rosto permanece oculto, pois a câmera adota seu ponto de vista. Apenas vemos o que aquele personagem (transformado em câmera) vê, e Jim Phelps também.

Mas o que importa aqui não é o fato de que Jim Phelps vê o que Ethan Hunt vê. Nesta relação, o essencial não consiste no que é visto. O que a estrutura é o que não é visto. O olhar subjetivo de Ethan Hunt é objetivado, dirigido, manipulado, impedido por Jim Phelps de ver o que realmente se passa: o grupo Phelps é vigiado por uma segunda equipe que tem por objetivo desmascarar o espião que se infiltrou há algum tempo na IMF.


A noite de Ethan Hunt.


A operação fracassa, e todos os membros da equipe são mortos um a um. Um único sobrevivente: Ethan. Seu nome próprio deve ser tomado ao pé da letra ( hunt: caça, busca). Tal como Édipo, Ethan Hunt parte em busca do culpado, aquele que montou esta maquinação para acusá-lo de ser um espião. Como Édipo, o culpado não é ele. Em Édipo Rei, quem é o culpado? Édipo, por ter matado seu pai e dormido com sua mãe? Não. Os culpados são seus pais, que o abandonaram na montanha para salvar a própria pele, já que um oráculo predira que ele mataria seu pai e dormiria com sua mãe.

Em Missão: impossível, o culpado é Jim Phelps, o pai espiritual de Ethan que joga Claire, sua jovem esposa, em seus braços para melhor desorientá-lo, para que ele se extravie nos meandros da noite negra de Praga, desacreditado, exilado, caçado, perseguido; ele, o caçador profissional, o virtuose da manipulação e do bluff, enganado, burlado, traído. Magnífica cena de errância e de perda, filmada em exterior em Praga, transformada em um labirinto onde a luz oscila entre a latência do azul-noite e a violência do laranja, onde o nevoeiro oculta um novo assassinato. Soberbo trabalho de Steven H. Burum, um câmera ao qual devemos a imagem memorável de filmes como The outsiders e Rumble fish ( Rusty James) de Coppola, ou Body double, The untouchables, Casualties of war, Raising Cain, Carlito’s Way de Brian de Palma.


O Livro de Jó.


Desacreditado, perdido, acusado pelo agente da CIA Kittridge ( Henry Czerny) de ter liquidado seus amigos para se apropriar do disquete contendo a lista dos agentes secretos americanos atuantes na Europa e vendê-la ao traficante de armas Max, Ethan entra no esconderijo do grupo. Sua única esperança para se livrar das acusações: lançar pela Internet uma mensagem a Max.

Ele tecla no computador “job 314”, o código que, segundo Kittridge, Max utiliza para esta operação. Não dá em nada. Em vão, ele tenta variações. No momento em que seu desespero atinge o pico, seu olhar tomba sobre um exemplar da Bíblia, posto, como por acaso, sobre um móvel diante dele. A iluminação e um zoom dianteiro destacam a Santa Escritura dentre os outros livros. E Ethan vê a luz: “job” ( Jó, trabalho, emprego) tem de ser tomado no sentido bíblico. Trata-se do Livro de Jó, mais precisamente do capítulo 3 ( Pereça o dia) e do versículo 14( “com reis, conselheiros da terra, que constroem mausoléus”). Assim como Jó, Ethan é um herói trágico traído por seu pai.

É preciso falar aqui de Tom Cruise, dizer o quanto o desnorteamento de seu personagem se imprime em cada gesto, cada movimento de seu corpo, o quanto o luto antecipado ou diferido do órfão parricida é visível sobre o seu rosto emagrecido.

O que conta o Livro de Jó? “ Incitado por Satã, escreve André Chouraqui, Elohîm permite que Jó perca seus filhos e seus bens, e que seja duramente atingido em seu corpo por um mal aparentemente incurável. O sofrimento do justo permite assim evocar o problema ontológico do mal. Uma questão central domina a obra: como apreciar o destino de Jó em relação às regras geralmente admitidas da retribuição? O sofrimento do justo deve nos fazer duvidar da ordem moral universal? O drama atinge as dimensões da tragédia: Jó é dilacerado na profundidade de seu ser; ele não compreende a justiça deste Elohîm ,que no entanto ele persiste a reconhecer e adorar. Jó, o Sábio é levado a se revoltar contra Jó, o Justo”. 3

No capítulo 3, Jó abre a boca e maldiz o dia em que nasceu: “Por que não morri eu na matriz, saído do ventre para agonizar? (...)Sim, agora eu estaria deitado e em paz; eu dormiria; eu repousaria, então, com os reis e os conselheiros da terra, que se constroem mausoléus”. A vida seria então a longa agonia que dura o lapso de tempo que separa duas mortes: a primeira é o nascimento.


Entre duas Mortes.


Todo o personagem de De Palma é um sonhador que, como que por acaso, acaba num pesadelo ( O que está te acontecendo? Você parece que teve um pesadelo?”, diz a jovem Asiática a Erikson/Michael J. Fox, no final de Casualties of War).

Ethan espera a resposta à mensagem enviada. A porta do apartamento se abre e Jim Phelps aparece resfolegante, coberto de lama, uma ferida no peito. Ele estende suas mãos ensangüentadas para Ethan: “Eu precisava de você. Eu precisava de você na ponte, e você não estava lá”. Presença fantasmagórica que cobre Ethan de recriminações, desvia as últimas palavras do Cristo- “Meu pai, meu pai, por que me abandonastes? “- para transformá-las em “Meu filho, meu filho, por que me abandonastes?”

Close de uma mão feminina que toca o ombro de Ethan. Ele se volta e encontra Claire face a face. O pesadelo continua. O breve lapso de tempo que separa estas duas aparições acaba por jogar Ethan no isolamento absoluto. Nenhuma destas experiências pode ser banalizada. As sensações contraditórias que dispõem do personagem neste instante são neutralizadas, deixando-o cego, situado numa dimensão muito distante daquela que o toca e daquele que tenta tocá-lo, em um mundo onde os gestos não possuem mais nenhum alcance. A segunda visão não anula a primeira. A barreira que os separa é porosa, permeável. Esta coloca Ethan no limiar entre dois sonhos. Tudo o que ele vê ou que aparece só pode ser um sonho dentro de um sonho.


Auto-destruição.


A única piscadela ( clin d’oeil) do filme que anuncia a série, antes de passarmos aos assuntos sérios ( pois , apesar de seu inegável humor, o filme é espantosamente grave, no limite do trágico): Jim Phelps está em um avião. Uma aeromoça se aproxima dele: “O senhor quer ver um filme, Mr. Phelps?- Não gosto de cinema, prefiro teatro, responde ele secamente- Mas um filme ucraniano não lhe diz nada?”, insiste ela, sublinhando a palavra “ucraniano”. Jim Phelps acaba por aceitar a fita de vídeo que a aeromoça lhe oferece, cassete que- é evidente-, não contém nenhum filme ucraniano, mas o anúncio de uma nova “missão impossível”, com a inevitável fórmula final: “Esta fita vai se auto-destruir em cinco segundos”. Phelps, como velho habitué deste ritual tornado clichê, mitiga a fumaça exalada pela fita que se auto-destrói, acendendo um cigarro.

A única coisa que De Palma retém da série é justamente esta idéia de auto-destruição. A narrativa de Missão: impossível se auto-anula à medida em que progride, aniquila a própria idéia de ficção. Cada nova cena anula a precedente. Cada nova etapa conduz a um impasse e acaba por construir um palácio de espelhos de cristal. Aquilo que vemos não é aquilo no qual cremos.

A cena da embaixada é revista e corrigida por Kittridge. Jim e Claire Phelps, que acreditávamos mortos, estão vivos. Max não é, como seu nome indica, um homem mas uma mulher ( Vanessa Redgrave). Jim Phelps volta à cena para contar a história sob um outro ponto de vista, igualmente falso.

O caráter labiríntico da narração e a impossibilidade de fixar a percepção sobre qualquer imagem atingem seu ponto culminante no momento onde Ethan viola o caixa forte da CIA. Esta peça protegida pelo sistema de vigilância mais sofisticado do mundo torna-se o interior do globo ocular, um olho no qual Ethan penetra passando pela pupila- o orifício de ventilação situado no telhado. Seguro unicamente por uma corda, ele flutua neste espaço branco asséptico, e o espectador também. Plongé e contra-plongé se confundem. Não sabemos mais se a câmera está em cima ou embaixo. O olhar está definitivamente desestabilizado.


Do gozo ( jouissance).


No fim do filme, Ethan Hunt afundado na poltrona de um avião que o conduz não sabemos paraonde. Parece esgotado. Neste momento, Ethan vem ocupar o lugar do espectador, que vivera duas horas de jouissance cadenciada, feita de fluxos e refluxos, de jorros descontínuos, de espera, de momentos orgásticos, de breves instantes de relaxamento, de picos e de quedas vertiginosas.

Missão: impossível esposa o movimento ondulatório da jouissance, que se eleva e aterrisa ao se deslocar- ou dando a ilusão de se deslocar-, extenuante e, no entanto, rapidamente recomposto.


Notas:


1. Georges Bataille, Obras completas I.

2. Jacques Lacan, O Seminário, Livro I: Os escritos técnicos de Freud.

3. A Bíblia, traduzida e apresentada por André Chouraqui.


Cahiers du Cinéma, número 507, novembro de 1996.


Tradução: Luiz Soares Júnior.


Nenhum comentário:

Postar um comentário