quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Sobre uma arte ignorada

Há um mal-entendido sobre o cinema. Digo: no coração mesmo da elite que faz profissão de elaborar ou de compreender a arte. Uma extrema confusão preside seus julgamentos e seus trabalhos. Uma falta de abertura inclina uns a considerar o cinema como um divertimento menor que abandonamos rapidamente para retornar às coisas sérias, tais como a literatura. Uma falha de exigência incita outros a povoar seu panteão em cinqüenta anos de uma centena de gênios, e a descobrir uma obra importante por semana. Estes são os mais perigosos, pois a espécie dos primeiros se apagaria por si mesma sob o peso do tempo e da evidência, caso ela não se achasse fortificada pela parca seriedade dos segundos. E dentre esses últimos a discórdia não é menos viva. Não tendo idéia do que buscam, como eles persuadiriam alguém a amar o cinema? Enquanto as artes milenares dispõem de um termômetro pouco a pouco ajustado pelos consumidores ativos, minoria que acaba impondo seu gosto sobre a passividade da maioria – donde um acordo estatístico sobre os fins e sua realização –, o espectador de cinema está entregue a si mesmo, jogado nu em sua poltrona, virgem de hábitos e de leis. Ele precisa a cada vez percorrer todo o caminho, reinventar as tabelas de valores, enquanto o apreciador de Música ou de Poemas, que os séculos liberaram da tarefa de julgar, deixa-se conduzir confiantemente a seu prazer. Ele não é mais levado pela cultura a uma reverência cujo protocolo o tempo fixou, essa cultura ao contrário entrava sua compreensão de uma arte que para possuir seus recursos próprios deve necessariamente não derivar dos mesmos critérios interiores[1] dos quais ela nos dá o modelo. O espectador de cinema extrai de si mesmo exigência e lucidez, ele se forma e amadurece só em contato com as obras; não há trapaça possível. O cinema é um potente revelador. Daí a mistura e o ruído que surpreendem às vezes em habitués das salas obscuras, onde o passivo e o ativo divididos em mil partes contraditórias têm a mesma potência de voz. Já que, no entanto, desenham-se linhas de partilha, uma maioria sobressai, e esta é naturalmente a da imobilidade mais míope.
Propõe-se esboçar aqui uma análise da res cinematographica considerada em seu ser e sob os pressupostos que a mascaram. O cinema nasce com esforço, ele se procura e nós o procuramos, ele toma lentamente consciência de si mesmo através de seus avatares. Essa arte é a que mais exige disponibilidades, flexibilidade, aquela cujo deus adorado no dia anterior deve poder ser renegado no dia seguinte. Imaginemos o espectador ideal à beira da tela, monstro de inocência e de rigor...
O cinema começa com o sonoro.
Pode parecer estranho e mesmo contrário às proposições precedentes que a propósito dessa arte adolescente e de evolução acelerada venhamos a falar de “essência”. Pareceria que diante das figuras sucessivas que ele assume, deveríamos nos contentar em aguardar, sem procurar defini-lo. Entretanto, seria interditado pensar que dessas premissas estaríamos no direito de tirar certas implicações permanentes, porquanto contidas no modo da apreensão cinematográfica do real? De fato, essas implicações aparecem e desaparecem como um fio na trama histórica do cinema, separando o joio do trigo, pondo em plena luz as formas aberrantes e as estruturas essenciais.
A arte sempre havia sido uma mise en scène do mundo, ou seja, uma chance dada à realidade contingente e inacabada de se locupletar, de um golpe preciso, segundo os desejos do homem. Mas esse mundo não podia ser apreendido senão por um meio termo, era preciso recriá-lo em uma matéria indireta, transpô-lo, proceder por alusões e convenções, na impossibilidade de uma possessão imediata. Linguagem, tela e cores, mármore, sonoridades, convenções teatrais eram o lugar da alquimia onde o mundo cambiava sua forma contra sua verdade. Nessas condições, a obra se media em valor absoluto independentemente de sua técnica, a renovação desta não engendrando um progresso, mas a simples exploração de um domínio novo. Dito de outro modo, a arte criando sua própria matéria não era suscetível de aperfeiçoamento, e as obras mais primitivas, por definição, igualavam as mais refinadas.
Ora, no fim do século XIX, um evento considerável vem bagunçar esses dados. O meio de captar a realidade diretamente, sem mediação, sem essas convenções cuja necessidade Valéry tinha compreendido muito bem quando se trata de recriar pelas forças do homem, fora descoberto. Um olho de vidro e uma memória de bromato de prata deram ao artista a possibilidade de recriar o mundo a partir daquilo que ele é, portanto de fornecer à beleza as armas mais agudas do verdadeiro.
O princípio do cinema como modo de apreensão é fundado sobre o registro passivo das deformações do espaço. Uma idéia que teve curso outrora queria que o cinema puro fosse mudo, que somente o jogo das imagens pudesse dar conta dessa arte que se tomava por uma espécie de pintura móvel. Isso era não enxergar duas coisas: a primeira, que o som é uma implicação necessária das premissas visuais do cinema; a segunda, que a linguagem metafórica das imagens mudas correspondia à obrigação de falar na ausência do som, e não a uma finalidade interna. Que, muito pelo contrário, uma tal deformação das aparências traía a vocação original da câmera, eis o que experimentamos hoje no espetáculo das caretas e da gesticulação desses fantasmas, e das sobre-impressões, das trucagens que conduziam a sétima arte sobre as vias de um onirismo de camelô, sem medida comum com a revelação cortante de que ele tem o poder.
Pretender que o som seja uma conseqüência previsível de A chegada de um trem à estação Ciotat não é um paradoxo[2]. O registro das aparências visuais devia criar a necessidade de uma apreensão completa do real, pelo movimento de sua dialética com o mundo: indo rumo às formas sensíveis, ele era sentido em sua separação do universo sonoro como algo obstruído no caminho, incompleto, em devir rumo a uma plenitude que se apoderaria de todas as formas. Enquanto os técnicos buscavam o procedimento que faria do cinema o que ele tendia a ser, os cineastas tentavam suplantar seu mutismo de duas maneiras bem diferentes. A primeira, ao orientar a imagem rumo à significação puramente plástica, o que levava ao monstruoso híbrido de uma arte da apreensão objetiva da aparência dedicada ao registro do falso[3] (híbrido do qual o “caligarismo” é a manifestação mais típica e mais insuportável): ao fazê-lo, o cinema perdia sua extraordinária originalidade para se pôr na esteira das artes cuja matéria não é o mundo, mas a metáfora do mundo. A segunda, ao fatiar o escoamento das imagens com intertítulos, como Griffith ou Stroheim. Notemos que essa última solução preservava a franqueza essencial de nossa arte: um filme de Griffith não é um cinema que traiu o cinema, é um cinema ao qual falta a palavra, um cinema atento a seu ser e localizado sobre a via central de seu porvir. Dessa via que passa por Griffith, Stroheim, Murnau, divergem, conforme vimos, múltiplos vieses de garagem – plástico, pictórico, trucagens surrealistas, expressionismo alemão, e todos esses filmes sofríveis, ditos de “vanguarda” ou “experimentais”, que são o último sobressalto de uma estética minada por sua contradição interna.
Assim, uma arte cuja singularidade é estar fundada sobre a técnica no sentido mecânico da palavra se acha, por esse fato, suscetível de progresso, noção incompatível com a concepção tradicional da arte. Seu primeiro princípio, o olho registrador, indica sua vocação de posicionar o homem diante do mundo, e por conseguinte sua realização ideal, que é estar dotado de sentidos tão sutis quanto os sentidos humanos[4]. Quanto menos esses sentidos estão afinados, mais a obra dá uma sensação de inacabamento e de mal-estar. É preciso ousar dizer que o cinema começa com o sonoro. Aquilo a que costumamos chamar as obras-primas do mudo são apenas as etapas de um desabrochamento; trata-se de recolocá-las em sua perspectiva balbuciante, aproximativa, de qual teria sido o gênio de seus autores. Esse gênio não está em causa, mas os meios a seu serviço. Imaginemos os Girassóis de Van Gogh desenhados com giz, ou Mozart diante de seu tam-tam. E mesmo assim, os girassóis de giz se acomodariam a esse postulado, o virariam a seu favor; Mozart inventaria uma linguagem batendo sobre a pele esticada. Mas não há linguagem a inventar com o olho irrefutável, não há convenções a estabelecer de partida; se eu planto minha câmera em um canto e os atores vêm a seu turno declamar diante dela com gestos de teatro, eu não “faço cinema”, eu transformo o espectador em um paralítico ao qual uma trupe beneficente vem fazer uma representação. Eu não o coloco em contato direto com o mundo, eu lhe ofereço o que o teatro já lhe oferecia, mas seqüestrando-lhe a motivação, o ritual, para não deixar senão o resultado e a partir daí restituir-lhe seu artifício, como se minha câmera estivesse parada diante da cena a fim de considerá-la de fora. Com efeito, o espectador sente confusamente que esse olho congelado, posto sobre essas formas, objetiva-as, despe-as de seu valor de linguagem, põe a nu sua mentira que não procede mais de uma comunicação metafórica porquanto a cumplicidade foi rompida entre o olhar e o objeto. Em outros termos, toda deformação da realidade com fins de expressão, condição das artes tradicionais, pelo fato de que ela chega ao espectador de cinema através da objetividade da câmera, se revela como mentira. O painel elizabethano onde está inscrita a palavra “Floresta” sobre a cena é a melhor imagem da floresta. Esse mesmo painel, filmado, será apenas um painel e a ausência evidente da floresta. É que o lugar ideal não é proposto diretamente ao olhar prevenido, ele o é por meio de um olhar intermediário cuja inocência e insensibilidade corroem na passagem sua vontade de expressão. A heresia que mais atrapalhou o desenvolvimento do cinema foi tomá-lo por um simples jogo de imagens suscetível de todas as combinações possíveis (exemplo: as sobre-impressões), esquecendo o ponto de partida dessas imagens: um olhar sobre o mundo sensível. Desse esquecimento resulta quase inteiramente o caráter caduco de uma grande parte da produção de antes da guerra. Cada vez que uma combinação entra em conflito com sua condição original (assim o vento que sopra do espelho em L’Âge d’Or), o imenso poder de credibilidade da fotografia se volta contra si mesmo para denunciar a inverossimilhança, multiplicado pela aparência do verdadeiro. O que poderia ser poesia nas palavras, porque a linguagem está apta a refletir as combinações ilimitadas do espírito, é apenas trucagem nos limites do olhar. Notemos que o cinema deixa atrás de si os “cinéfilos” e não se permite mais tais monstruosidades que os amadores ainda veneram. Haveria uma análise a fazer, que excederia o propósito desse estudo, das excrescências que sufocaram num certo momento uma arte intoxicada de si mesma e crendo explorar seus recursos enquanto se destacava de sua verdade profunda. Assim os ensaios de câmera subjetiva que, ao introduzir à força o espectador no espetáculo, propõem-lhe um duplo que ele não reconhece.
A tomada de consciência progressiva de sua natureza própria, somada à faculdade de aperfeiçoamento técnico na franqueza e na adequação ao real, acarreta uma conseqüência irritante: à medida que o cinema progride, as obras antigas se desvalorizam em proveito das novas. Há no público de cinema uma superstição das velhas obras-primas que se explica de diferentes modos. O primeiro, por sentimentalismo: teríamos pena de renegar suas primeiras e entusiasmantes descobertas, mesmo se o charme se escondeu diante do aprofundamento do conhecimento e da maturidade do gosto. Uma outra razão dessa superstição é que, a despeito da evidência, não admitimos a diferença o cinema e as outras artes, e imaginamos que entre um filme do período da infância e um filme adulto existe uma mesma relação que entre uma escultura primitiva e uma escultura de Houdon. Mas isso é não enxergar que de uma parte nós estamos em presença de duas era da humanidade, duas concepções do mundo se exprimindo através de meios invariáveis, enquanto na outra temos o mesmo homem, antes paralisado, mudo, atingindo perturbações visuais, depois em possessão de todas as suas faculdades. Enfim, uma terceira razão é que o cinema mudo oferece mais prestígio ao neófito, é mais facilmente acessível pela exterioridade de seu estetismo. Podemos entender, no curso da projeção desses filmes de papel timbrado e de sombras chinesas, donde um bom exemplo é Marcel l’Herbier, espectadores suspirarem após os felizes tempos de um cinema repleto de maravilhas para os olhos. Não se pode debochar demais. Nós todos fomos mais ou menos esse espectador de alma simples. O inquietante não é começar por lá, mas lá permanecer, estagnação onde se compraz a maior parte dos “cinéfilos”, raça estranha, pastora, dócil nos modos, em divórcio flagrante com o cinema no reconhecimento de sua pureza e de suas aproximações do ponto de perfeição.
Tudo está na mise en scène.
A cortina se abre. A noite se faz na sala. Um retângulo de luz vibra em sua presença diante de nós, e é logo invadido por gestos e sons. Nós estamos absorvidos por esse espaço e esse tempo irreais. Mais ou menos absorvidos. A energia misteriosa que suporta com alegrias diversas (bonheurs divers) a enxurrada de sombra e de claridade e sua espuma de ruídos se chama mise en scène. É sobre ela que repousa nossa atenção, ela que organiza um universo, que cobre uma tela; ela, e nenhuma outra. Como a correnteza das notas de uma peça musical. Como o escoamento das palavras de um poema. Como os acordos ou dissonâncias de cores de um quadro. A partir de um assunto, de uma história, de “temas”, e mesmo do último tratamento do roteiro, como a partir de um pretexto ou de um trampolim, eis o jorramento de um mundo do qual o mínimo que podemos exigir é que ele não torne vão o esforço que o fez nascer. A mise en place dos atores e dos objetos, seus deslocamentos no interior do quadro devem tudo exprimir, conforme vemos na perfeição suprema dos dois últimos filmes de Fritz Lang, O Tigre de Bengala e Sepulcro Indiano.
Documentário ou Féerie?
A arte se insere em uma falha. Toda atividade é o produto de uma falta, o movimento de um desequilíbrio rumo ao equilíbrio. O fazer é um deslizamento ontológico rumo à satisfação imóvel. Produzir arte significa construir com o já existente um existente novo que de alguma forma exorciza o artista. Quando Lênin profetiza que os povos felizes não mais terão arte, ele entrevê sob os nus da utopia uma verdade, mas a enfraquece numa aplicação que só dá conta de sua parte mais superficial. O homem terá sempre necessidade da arte porque o jogo ultrapassa em muito a condição social: ele diz respeito ao Eu mais íntimo em suas relações de antagonismo e de acordo com o Resto. A arte é a religião da lucidez.
Recriar um mundo que ao mesmo tempo exorciza o artista e gratifica o espectador, por uma coincidência da vontade de potência do primeiro e do desejo de ordem do segundo no seio de assombrações comuns, reconciliar, tal parece o fim da arte enquanto ato destinado por sua essência de ato a preencher um vazio. À questão “Por que existe arte?” sucede a questão “Como existe arte?”. Como esse fim pode ser atingido e o espectador se sentir preenchido? É preciso, evidentemente, que haja a substituição mais total possível do imaginário pelo real presente, uma absorção da consciência pelo espetáculo, uma proximidade à beira do idêntico, antítese do distanciamento brechtiano que arruína o poder do espetáculo para restaurar o vazio no coração do espectador.
O artista faz obra de arte para se livrar, para apaziguar suas contradições, para se agradar e se seduzir, para se esquecer em um mundo onde ele cessa de “não estar no mundo”, para “sair do inferno”. Seja por uma descida a esse inferno para conhecer-lhe o fundo, se fascinar de seus excessos ao adorná-los dos prestígios da angústia e do medo, prestígios naquilo que os seres que lá mergulham nos propõem do homem uma imagem incandescente que nos projeta para fora de nossa banalidade cotidiana, em um universo onde a alma se dilata, se rasga e ganha a medida de seus possíveis. Apertado por um nó de angústia e de exaltação, o ser é revelado a si mesmo, projetado fora de si rumo a um eu mais autêntico cuja paixão o preenche e o justifica, o seqüestra em uma vertigem onde ele se reconquista em sua totalidade. A contradição levada a seu ponto extremo se resolve em sua tomada de consciência e sua contemplação, que a alça ao sagrado de uma necessidade, portanto de um aquiescimento, de um equilíbrio, de uma paz. É toda a vocação do trágico na arte. O afrontamento, a “crise” visa a uma torção do ser sobre si mesmo, onde tendo sido percorrido o círculo completo, o ser se reencontra no início em sua nudez luminosa e apaziguada. – Seja por uma negação do inferno, uma emergência simultânea na alegria, na luz, na calma, ou pelo movimento do prazer. Que tudo aquilo que não deriva dessa ordem do sublime seja nulo, inútil e sem interesse, que toda arte que não é exclusivamente íntima e passional, dedicada ao excesso, preciosa, aristocrática, seja frívola e derrisória, é ao mesmo tempo a evidência de nosso desejo e uma conseqüência lógica da função existencial da arte.
E, portanto, se o cinema fosse tomado como uma sensibilidade insensível, um olhar impassível sobre o mundo, esse caráter poderia espessar ainda, se houvesse necessidade, o mal-entendido que quer fazer da arte um reflexo passivo da realidade integral, enquanto precisamente essa atividade é nascida da necessidade de reformá-la, de se reconciliar com ela. Colocar o homem diante da imagem de um mundo que ele espera exorcizar por meio dessa imagem (do contrário, não há necessidade de imagem, o mundo basta) é o projeto contraditório do “realismo”[5]. Zavattini representa esse projeto em seu estado de absurdidade explícita, o documentário de uma mediocridade, 90 minutos para nada, pois não valeria a pena alugar uma poltrona do teatro para ver o que a rua nos oferece com o mérito de ser real.
Mas inversamente, toda imagem que escapa à realidade não responde de partida ao papel definido por sua existência mesma, enquanto essa existência é suscitada por uma falta na realidade, que não pode, portanto, ser remediada senão por objetos aferentes a ela e se lhe integrando – encarada, nem em sua proliferação casual e banal, nem em um direcionamento rumo ao impossível ou ao falso, mas em suas possibilidades de equilíbrio entre o mundo e o homem. Desse modo os pleonasmos do realismo, assim como os sonhos dos falsos poetas formam ambos fossos-limites entre os quais toda atividade estética deve estar contida sob o risco de escurecer na estupidez ou na inutilidade.
A essência do cinema como arte não é ser mais documentário ou mais feérie, se o documentário se limita a restituir as aparências incontroladas e se a Feérie autoriza a mentira, a trucagem e os artifícios de estetas; mas sim, ao mesmo tempo, o documentário e a feérie, tratando-se da beleza imposta pela evidência do olho irrecusável.
Vertigens e cintilações.
A substituição de seus possíveis dilatados pela armadura da banalidade-cotidiana abre o espectador a uma plenitude que se trata de circunscrever em função das modalidades particulares do cinema.
Porquanto o cinema é um olhar e um ouvido mediadores entre o espectador e as aparências, porquanto a organização das aparências e sua apreensão mais eficaz constituem a mise en scène, como esta será em si beleza, isto é, exorcismo de malefícios e canto? A resposta é: pela seleção das aparências, a narrativa sobre um retângulo branco de certos movimentos privilegiados do universo. Dito de outro modo, sobretudo naquilo que elas têm de mais íntimo, as ações e reações de um homem em um cenário. A proximidade mais aguda do corpo do ator veiculará as assombrações e a vontade de sedução, engendrando uma direção de gestos raros, uma arte da epiderme e das entonações de voz, um universo carnal – noturno ou ensolarado. Não uma demonstração, uma sentença, o suporte sacrificado de uma operação superficial do intelecto, mas a linha melódica, com seus crescendos, suas pausas, suas irrupções, movimentos secretos do ser, nos concernindo ao mais vivo de nós mesmos pelas vias do perigo e da exaltação. O ponto de chegada do cinema, atingido em raros instantes pelos grandes dentre os grandes – Losey, Lang, Preminger e Cottafavi –, consiste em despir o espectador de toda distância consciente para precipitá-lo em um estado de hipnose mantido por um encantamento de gestos, de olhares, de ínfimos movimentos do rosto e do corpo, de inflexões vocais, no seio de um universo de objetos radiantes, injuriantes ou benéficos, onde alguém se perde para se reencontrar engrandecido, lúcido e apaziguado. A paixão exclui a indulgência. O acesso a essa mise en scène de vertigens e de cintilações, que se abre a uma liturgia ou à contemplação de uma ordem cósmica reencontrada, pode explicar por que noventa e cinco por cento da produção cinematográfica nos parece inexistente, miserável e sem relação com o cinema. Que, após conhecer tais transportes, venhamos a recusar todos os filmes que não visam a esse sublime, que se limitam a colocar sórdidos problemas ou a contar histórias “com imagens” numa confusão dos meios e do fim, abandonando ao acaso ou a uma repetição de procedimentos mecânicos o que deve ser dominado por uma intuição do coração e uma precisão cuja menor falha rompe a curva de febre, não surpreenderia senão aqueles que se satisfazem com pouco e que, crendo defender uma arte, sugerem-lhe a idéia mais baixa.
A Fascinação.
A absorção da consciência pelo espetáculo se nomeia fascinação: impossibilidade de se arrancar das imagens, movimento imperceptível rumo à tela de todo o ser tencionado, abolição de si nas maravilhas de um universo onde até mesmo morrer se situa no extremo do desejo. Provocar essa tensão rumo à tela aparece como o projeto fundamental do cineasta. Em decorrência, o movimento, domínio específico de nossa arte, deve se adensar de um jogo ou se encher de uma graça tais que ele impede a irrupção da consciência crítica no encadeamento dos atos filmados. Recriando a cada instante nossa expectativa, as metamorfoses contínuas do sensível desenham no espaço o traçado de uma música inelutável e imprevista. No limite, não sabemos mais nada da história que desfila diante de nós, de seu passado, de seu porvir possível, em uma coincidência absoluta de nosso tempo com o tempo imaginário, em uma presença ausente, uma espécie de esquema abstrato que é a beleza pura liberta das condições que a sustentam. Assim, em certas circunstâncias excepcionais da vida, ficamos fora de nós mesmos, como estrangeiros a nossa ação, inteiramente requisitados pelo exterior.
A montagem transparente.
Essa fascinação sempre foi a meta dos cineastas. Suas divergências provêm simplesmente das diversas concepções que eles têm dos seus meios. As teorias sobre montagem que outrora apareceram ilustram seu peso. Tratava-se de imprimir à sucessão das imagens um ritmo análogo ao ritmo musical, de modo a submeter a consciência espectatorial a uma arquitetura determinada, impondo-lhe linhas de força, parâmetros que substituíssem uma necessidade interna pelo acaso. As primeiras pesquisas de Gance, as de Eisenstein, ou a polivisão que é uma montagem espacial perpendicular à montagem temporal, traduzem essa preocupação em aumentar a eficácia do plano por sua disposição em um organismo calculado, como as notas de uma melodia se põem mutuamente em valor. O erro dessas teorias (erro de toda teoria preexistente a uma obra) é quebrar o natural, aqui ao colocar o espectador diante da contradição de uma apreensão do real ao mesmo tempo objetiva e subjetiva: não é a lógica dramática da cena que conduz a tela a liberar sua visão em uma continuidade onde o descontínuo dos planos se dissolve por essa lógica mesma, mas a intervenção exterior e brutal de uma vontade que se superpõe ao olhar da câmera e este, de transparente, puramente mediador que deveria ser, se opacifica, se embaralha, até restabelecer entre o espectador e o espetáculo a distância que se propunha a abolir. Esse erro é devido, conforme já destacamos em uma outra ocasião, a uma identificação abusiva do cinema com as artes tradicionais. Se o cinema coloca o homem face à realidade objetiva, toda ruptura de sua impassibilidade com fins expressivos trai precisamente seus fins. A arte da montagem, que se confunde então com a decupagem[6], consiste, portanto, em tornar os cortes efetuados na massa informe do real tão invisíveis quanto possível.
Agora que o prazer do jogo novo desapareceu, como suportar esses choques de planos, ou essas metáforas intercaladas, como as ovelhas de Chaplin após um plano de multidão? A própria montagem paralela toma velocidades insistentes demais para ser ainda admissível. A única montagem (ou decupagem, se consideramos a operação em sua origem) adequada ao modo de apreensão cinematográfica da realidade é aquela que adere, justo à identidade completa, ao desenvolvimento de uma série dramática dada, por seleção e justaposição de planos essenciais, como um olhar que iria sempre direto ao que importa na marcha de um evento. Assim, o espectador não é posto em face de vários espetáculos ao mesmo tempo, ou de uma análise do espetáculo por um olho absurdo que transgride as leis da atenção, situações que o distanciam brutalmente do espetáculo ao defini-lo por contradição com este último; ele está diante do espetáculo, diante do mundo, o mais próximo do mundo, graças à docilidade, à ductilidade de um olhar que o seu desposa de tal modo que o esquece. Esse olhar não tem a ubiqüidade de que conscientemente ou não o espectador se separa, ele não salta, não desliza como uma serpente, ignora as curvas, as quedas, as provocações, tudo isso que os cinéfilos um pouco retardados chamam de “movimentos de câmera fantásticos”. Ele é clássico ao extremo, ou seja, exato, motivado, equilibrado, uma transparência perfeita através da qual a expressão nua encontra sua mais eficaz intensidade.
DeMille superior a Hitchcock.
Uma vez devolvidos ao domínio da má literatura os ângulos insólitos, os enquadramentos bizarros, os movimentos de câmera gratuitos, em suma, todo o arsenal revelador de impotência, obtemos essa franqueza, essa lealdade sobre o corpo do ator que é o único segredo da mise en scène. Para bem compreender, basta se referir ao recente Vertigo de Hitchcock, ou ainda a um certo plano de O Homem Errado, como exemplos do que não se deve fazer. O redemoinho da câmera em torno do rosto de Henry Fonda para exprimir sua angústia, ou as colorações sucessivas de James Stewart em meio ao pesadelo da vertigem, procedem da mesma impotência diante do ator, ao suplantar uma incapacidade de revelar suas virtualidades passionais – do interior – por uma crispação de tudo aquilo que não é o ator, de tudo aquilo que está fora dele, da mesma forma que os escritores medíocres forçam o estilo e brutalizam as palavras para tentar dar a sentir o que eles não sentem. É aliás interessante escutar da boca de Hitchcock a descrição dessa mise en scène trucada: “Na maior parte do tempo pedimos (ao ator) que atue com calma e naturalidade (...), deixando à câmera a tarefa de adicionar quase todos os efeitos[7] e de enfatizar os pontos importantes. Eu diria que o melhor ator de cinema é aquele que sabe melhor não fazer nada”[8]. Não saberíamos mais explicitamente declarar que não se tem nada a mostrar além de uma certa maneira de mostrar o que não há. Voltemo-nos agora a um ancestral de Hitchcock, Eisenstein: “O realizador não considera nunca o ator como um verdadeiro ser humano, ele imagina o que será o filme e escolhe cuidadosamente o material ao fazer evoluir o ator de modos diferentes e ao decidir, em função do intérprete, as posições da câmera”. E eis a razão dessas grandes máquinas de tela e de cartolina. Pudemos verificar graças à segunda parte de Ivan, o Terrível, a fragilidade da mise en scène de Eisenstein, colosso de pés de argila. Como em Welles, cujo modernismo agressivo e a originalidade gratuita recobrem um expressionismo velho de um quarto de século, ela desenvolve um baixo-alívio atormentado e fingido, galeria de monstros pitorescos, barroca se o barroco se define por uma abundância ornamental do signo sufocando a significação. A obra de Eisenstein nos faz inelutavelmente pensar nos pintores e nos literatos que, não sabendo desenhar um homem, desenham um esqueleto e crêem fazer metafísica.
Se agora damos a palavra ao inocente da cidadezinha, Cecil B. DeMille, o que ouvimos? “Eu devo conhecer a fundo cada ator, enquanto pessoa, assim como seus métodos, e adaptar minha própria concepção do filme a essa personalidade. Eu devo lhes oferecer minha ajuda, meus conselhos, devo guiá-los quando eles me solicitam e lhes oferecer também simpatia e compreensão...”[9]. Essa linguagem nos tira das brutalidades precedentes, e explica o prazer que podemos ainda experimentar em Sansão e Dalila, enquanto Eisenstein, Hitchcock ou Welles se distanciam cada vez mais, na noite de um cinema bárbaro que é apenas a convulsão de um olhar sobre objetos medíocres, ao passo que o cinema deve ser uma contemplação de objetos raros e sem preço.
Preeminência do ator
Dentre os objetos cuja nomenclatura constituiriam um catálogo precioso, refinado – jóias gravadas em fogo sobre peles foscas, carros riscando o espaço com traços flamejantes, jardins em flor, robes entreabertos, aldeias à beira mar, ou ainda, numa outra série, navios longilíneos, choques de armas, robes esvoaçantes, casacos rasgados sobre o peito do herói – o objeto privilegiado é, portanto, a imagem de nós mesmos, o ator. Porque o cinema é um olhar que se substitui ao nosso para nos dar um mundo em acordo com nossos desejos, ele nos colocará sobre rostos, corpos radiantes ou feridos mas sempre belos, dessa glória ou desse fracasso que testemunham uma mesma nobreza original, de uma raça eleita que, com embriaguez, reconhecemos nossa, último avanço da vida rumo a deus. Não, como em Rossellini, a aproximação tateante da criatura rumo a um criador, tema exterior à mise en scène, mas o homem tornado deus na mise en scène, pela revelação de seus poderes, brecha aberta bruscamente na superfície das coisas e nos arrebatando. Hino à glória dos corpos, o cinema reconhece o erotismo como sua motivação suprema. Queremos dizer com isso que o cinema não escolheu o erotismo dentre outras vias possíveis, mas que estando dada sua dupla condição de arte e de olhar sobre a carne, ele estava dotado ao erotismo como reconciliação do homem com sua carne. (Enquanto a literatura oferece um terreno favorável às florações mais cerebrais do amor-sentimento, as palavras residindo por natureza no coração da fascinação dos psiquismos, mas se revelando signos muito mais pálidos da fascinação dos corpos.) A busca obsessiva de uma equação que reúne os termos equilibrados de uma carne e de um mundo converge para esse plano de Contos da Lua Vaga em que o amante se estende sobre a relva, banhado de sol, na admiração tranqüila do prazer, exclamando: “Ah! Isso é divino!”. E é de fato o reflexo do divino, possessão perfeita do mundo e de si mesmo, momento comparável a uma água pura desposando os contornos do vaso. Losey, Preminger, Cottafavi, Don Weis, Lang, Walsh, Fuller, Ludwig, Mizoguchi [10], somente eles souberam em graus inigualáveis o segredo dessa empreitada sobre o ator e o cenário que Murnau ou Griffith não podiam levar até o fim, e que Hawks, Hitchcock, Renoir, Rossellini apenas entreviram sem a controlar[11]. Quanto a Bresson, parece que ele quis controlá-la sem entrevê-la.
Essa revelação não é obtida pela câmera a partir do acaso e do vazio, como espera a maior parte dos cineastas, ela se faz merecer por um trabalho preciso sobre os atores em função de suas virtualidades. A escolha dos atores é portanto capital, e no fim das contas um filme nulo e completamente desprovido de ambição, se ele comporta um ator essencial (exemplo: O Egípcio, em que Bella Darvi está sublime), é mais atraente que um filme ambicioso cujos atores são mal escolhidos. (Exemplo: Renoir utilizando Valentine Tessier em Madame Bovary, portanto seu melhor filme). Um ator essencial é aquele cujo rosto, voz e corpo são profundamente tingidos de uma capacidade passional e de uma sedução. A arte do metteur en scène consiste então em provocar essa natureza para que ela exploda ou radie, por uma espécie de simpatia direta e fulgurante, donde deriva que cada metteur en scène possui seus atores benéficos, como cada escritor é apegado a certos seres da linguagem mais que a outros, como cada pintor é atraído por uma cor. Face ao azar e aos motivos grosseiros que engendram as escolhas da maioria dos cineastas, que se colocam diante dos atores como a anta de Buridan, ponhamos a fidelidade de Preminger a um tipo de mulheres, Jean Simmons, Gene Tierney, Maggie McNamara (sobre um mínimo gesto), reencontrada ulteriormente através de Kim Novak e Jean Seberg, mulheres feridas, secretas e refugiadas em um mundo de infância, de onde elas lançam através da fixidez de seu rosto apelos apaixonantes que absorvem o abismo de seus olhos. Ou aquela de Losey em duas linhas contrárias que se juntam em uma busca comum da felicidade, uma de mulheres iluminadas docemente de uma luz de calma e de pudor, de razão e de ternura, outra de panteras convulsivas ultrapassando em um momento púrpuro as barreiras que as separam da selva e do bem-estar. Um exemplo inverso e também convincente poderia em uma única fórmula resumir o que precede: Fellini se casou com Giulietta Masina, logo seus filmes são grotescos. O que seria preciso demonstrar.
O Mal-entendido.
Georges Sadoul, recentemente, provocou-me querela a propósito de algumas frases sobre Preminger onde eu tinha exprimido a idéia de uma identidade entre filmes em aparência tão diversos quanto Angel Face, Saint Joan ou Bonjour Tristesse. Se nessas linhas eu me faço entender, tais reprovações derivam manifestamente de uma concepção do “autor de filmes” inadmissível e sem cabimento, no nível do roteiro e das idéias gerais, a partir da qual se pode dizer que René Clair ou Chaplin são autores malgrado o caráter débil, sumário e mecânico de sua apreensão concreta da realidade. Crer que basta a um cineasta escrever seu roteiro e seus diálogos, e orientar segundo temas definidos e repetidos os atos de seus personagens, para ser “autor de filmes” é um dos erros de base que forjam autoridade ainda hoje em uma crítica enevoada pela literatura e cega à luz lancinante da tela[12]. A derrota dos intelectuais diante dos filmes que não propõem à incerteza de seu julgamento a armadura de uma temática preexistente se verifica graças ao cinema de aventura. Essas obras arejadas, sedutoras, amparadas de todos os prestígios da cor, do espaço e dos sentimentos fortes, das quais Walsh permanece o mestre incontestável (muito mais solar que Hawks), das quais o único tema é o herói, seus amores, suas vitórias ou sua morte, por sua ausência de justificação, sua gratuidade dionisíaca[13], seu classicismo cósmico, fazem eles perderem o chão e chegarem ao cúmulo de se desculpar pelo prazer que sentiram. São cegueiras desse tipo que permitem a René Clair, ainda ele, afirmar que as “obras-primas” da tela grande estão saindo de moda; acrescentemos: precisamente porque elas foram consagradas por uma crítica e um público onde reina a confusão dos valores! Mas Griffith, mas Murnau, mas Stroheim – todas as reservas feitas à insuficiência de sua técnica – não saem de moda, e O Ladrão de Bagdá, filme mudo de Walsh com Douglas Fairbanks, permanece visível, enquanto ao redor dele tudo caiu. Da mesma forma podemos predizer sem grande perigo de ser desmentidos que Welles, Kazan, Visconti, Antonioni e outros senhores atuais se tornarão intoleráveis em vinte anos (eles o são desde sempre aos mais sensíveis); quanto a Bergman, antes mesmo de rodar seu primeiro filme ele já era démodé.
O que torna idênticos e quase intercambiáveis – senão no grau da beleza, ao menos no caminho de aproximação da beleza – filmes tão diferentes pela fonte, pela anedota e pelo “clima” quanto aqueles que pontuam a carreira de Preminger é um certo modo de olhar os atores e os objetos, idéia certamente intraduzível para inúmeros amantes de filmes, que não compreendem primeiramente por que o fato mesmo, o fato bruto, de mencionar – algum conceito que aí se re-acopla – o nome de Bernard Shaw ao falar de Saint Joan é a cegueira de uma ignorância, poderíamos dizer ontológica, do cinema enquanto tal.
A noção de autor de filmes se define, portanto, pelo império que o cineasta exerce ou não exerce sobre a matéria mesma de sua arte, sobre aquilo que a tela nos oferece, sobre a luz, o espaço, o tempo, a presença insistente dos objetos, o brilho do suor, a espessura de um cabelo, a elegância de um gesto, o abismo de um olhar. Enquanto isso, a quase-totalidade da crítica se dedica ainda ao roteiro, o que equivale a comentar Le Radeau de la Méduse e a definir Géricault citando as peripécias do naufrágio e a idade do capitão. Assim, a pesquisa e a síntese das equivalências de roteiros em Hitchcock (as transferências de culpabilidade, por exemplo) não interessam em nada ao que vemos sobre a tela e que somente conta. O tema da transferência dá lugar a situações que em si mesmas engendram uma mise en scène cujas próprias constantes são o que retêm nossa atenção. Analisar a obra de um cineasta é mostrar em que seu acesso aos temas fundamentais da mise en scène, ordenados em torno da presença corporal dos atores em um cenário, é ou não é capaz de nos fascinar. Como ele desvela o desejo, o ódio, a violência, o medo, a ternura, como olha a cidade, as árvores ou o mar. Essas noções requerem o uso da metáfora e um caminho que torce a linguagem para dar conta de seres estéticos novos.
É preciso concluir, se comparamos esses princípios elementares à sua aplicação, que o cinema é tão desconhecido hoje quanto era a pintura no fim do último século. Reprovamos a nossos pais terem colocado Meissonnier antes de Cézanne, mas não vemos nosso século de luzes preferir as Noites Brancas de Visconti às Aventuras de Hadji de Don Weis? Surpreende-se que as obras levadas num dia aos píncaros sejam insuportáveis ou ignoradas no dia seguinte, sem compreender que isso não ocorre por uma fatalidade misteriosa, mas simplesmente porque a maior parte dos espectadores não aprendeu ainda a olhar, e filtra as imagens através de uma consciência inadaptada às realidades da tela.

Michel Mourlet
Traduzido por Luiz Carlos Oliveira Jr.



[1] Não se tratam evidentemente dos critérios de finalidade, transcendentes à obra e comuns a toda forma de arte.
[2] Esse parágrafo que eu acreditava dever defender da imprecisão foi escrito quando eu tinha achado sua melhor justificação em um artigo de André Bazin, compilado em Qu’est-ce que le cinéma? e intitulado “O Mito do Cinema Total”. Citemos: “Tudo me parece ocorrer como se devêssemos inverter aqui a causalidade histórica que vai da infraestrutura econômica às superestruturas ideológicas e considerar as descobertas técnicas fundamentais como acidentes felizes e favoráveis, mas essencialmente secundários em relação à idéia preliminar dos inventores. O cinema é um fenômeno idealista. A idéia a partir da qual os homens o fizeram existia toda pronta em seu cérebro, como no céu platoniano, e o que nos atinge é bem mais a resistência tenaz da matéria à idéia do que as sugestões da técnica à imaginação do explorador”. E mais adiante: “Se as origens de uma arte deixam perceber alguma coisa de sua essência, podemos considerar os cinemas mudo e sonoro como as etapas de um desenvolvimento técnico que realiza pouco a pouco o mito original dos exploradores. Compreende-se, nessa perspectiva, que seja absurdo tomar o cinema mudo por uma espécie de perfeição primitiva da qual o realismo do som e da cor progressivamente se distanciaria”.
[3] Cf. a definição de Valéry, contemporânea dessa época: “O cinema é a arte de fazer o falso com o verdadeiro”.
[4] Importância da fotografia: de sua qualidade depende em parte a sensação do volume espacial, o grão da luz, os jogos tênues da epiderme.
[5] “Fazer o verdadeiro” não é um fim mas um meio, o meio de fazer aceitar o fim que é a beleza. Uma beleza que não é verdadeira não é mais tolerável do que uma verdade que não é bela. O cinema cristaliza e realiza toda a vontade de verdade difusa nas outras artes, ele é, nesse sentido, seu epítome. Mas ele se torna sua derrisão caso estacione nesse degrau e fabrique, por exemplo, “reportagem vivida”...
[6] Trata-se apenas de uma simples operação de colagem, à exceção – totalmente material – das cenas rodadas fora de sua ordem cronológica.
[7] Grifos meus.
[8] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 66.
[9] Cahiers du Cinéma n° 66, p. 69.
[10] Haveria lugar sem dúvida para citar também Ida Lupino e Edgar Ulmer, ainda que muito pouco conhecidos, La Déesse des Incas de Frantz Eichtorm, sem esquecer Allan Dwan e alguns clarões em Douglas Sirk e Richard Fleischer.
[11] Reconheçamos nossa dívida perante a crítica “hitchcocko-hawksiana”, que sobretudo com Éric Rohmer, Jacques Rivette e Philippe Demonsablon foi a primeira a preparar o terreno, ainda que ela pareça hesitar em tirar as conseqüências de suas premissas.
[12] Isso não significa que o roteiro não tenha importância. A mise en scène se funda sobre as situações e depende de cada um que todas as situações não engendrem uma mesma revelação do ator. É por isso que falo de trampolim. Somente importa a altura do salto, mas ela depende da elasticidade do ponto de apoio tanto quanto das pernas.
[13] Distingamos essa gratuidade sobre o plano dos temas e da mise en situation, que pode ir justo a uma grande independência face às exigências de roteiro, e se confunde com a simples alegria de filmar um momento raro do universo, e a gratuidade que eu reprovava em Welles por exemplo, gratuidade esta de mise en scène; assim os contra-plongées sistemáticos e inúteis, ou a utilização, segundo seus próprios dizeres, de tal objetivo porque seus colegas não o empregam.

Uma Lucidez Viril


Sabemos que há muito tempo alguns amadores tenazes, todos colaboradores ou simpatizantes desta revista[1], afirmam que Raoul Walsh, velho cineasta lotado de obras, é um dos principais criadores de uma arte cuja novidade não favorece o entendimento. É preciso, para compreender as razões de um tal julgamento, ter visto com os olhos da maior exigência e igualmente da maior simplicidade filmes como Gentleman Jim, Colorado Territory, Pursued ou The Naked and the Dead, que constituem tão-somente o exercício da nobreza e do natural, esse “tão-somente” representando a forma da mais alta ambição de um artista. Se o acordo de um gesto e de um espaço é a solução e a conquista de todo problema e de todo desejo, a mise en scène será uma tensão rumo a esse acordo, ou sua imediata expressão. A arte é uma conquista de si mesmo, primeiramente, e do mundo, se possível; daí três condições necessárias: um método rigoroso, um orgulho sem o qual nada de vasto é concebido ou sequer tentado e um grande respeito pelo verdadeiro. Que uma dessas três condições apresente falha, e a obra carecerá do equilíbrio indispensável à sua função e à sua eficácia.
Da produção imensa e sem igual de Walsh, um certo número de filmes se destaca, que responde a essas idéias e mesmo as provoca. Seu respeito da realidade, o cineasta o definiu colocando o princípio de que há apenas uma forma de pôr em cena um dado personagem em uma dada situação. Isso equivale a dizer que a organização ideal da matéria visível e sonora em função das premissas livremente estabelecidas pelo roteiro possuiria um caráter de necessidade incontornável análogo à ebulição da água a cem graus. Compreendemos que o reconhecimento, a descoberta dessa solidez dos fenômenos no seio de sua própria criação, exige do artista a liberdade e a clareza de espírito totais: as chances de erro, em vista da única verdade, são infinitas. O orgulho está na busca dessa verdade, mas é a humildade que a encontra. Fazer-se completa transparência, olhar puro, poroso aos fenômenos, é a sabedoria do classicismo e o segredo de uma juventude inalterada.

Quanto ao método, ele é simples; ainda assim é preciso a ele se ater. Não mostrar de uma cadeia de eventos senão o indispensável a seu desenvolvimento e sua compreensão; mostrá-lo da forma mais direta; sempre permanecer ligado ao centro. Construir, em outros termos, uma arquitetura cuja beleza global nasce da exatidão do papel atribuído a suas partes.
A arte de Walsh é clássica naquilo que ela manifesta e impõe, para além de toda crispação, a virtude de uma impassibilidade soberana invisivelmente atrelada aos reflexos da elegância, da raça, da nobreza física e moral. A lucidez viril de seu propósito não é do domínio dos conformismos demagógicos, mas, diferentemente, de uma continuidade profunda da aristocracia do coração.

Michel Mourlet

[1] Présence du Cinéma
Traduzido por Luiz Carlos Oliveira Júnior.

Sua Única Saída, Raul Walsh

Sua Única Saída é um dos poucos filmes - um punhado - que demonstram de maneira definitiva os poderes do cinema, quando se encontra nas mãos de um artista genial, como aqui Raoul Walsh. De um lado western psicanalítico, poema e afresco cósmicos de outro, o território e a ambição do filme são imensos, quase ilimitados. A trajetória da sina de um personagem atormentado pelo peso de seu passado (tema walshiano por excelência) permite a Walsh estabelecer e explorar um universo que começa nas profundezas do coração de um homem e vai se perder em algum lugar no infinito.
Narração concreta, física, de um ódio mais denso que a pedra (o de Grant Callum pela família dos Rand), Sua Única Saída é também uma imaterial história de fantasmas onde, por exemplo, uma noiva vestida de branco sonha cumprir, na noite de suas núpcias, um improvável projeto de vingança contra aquele com quem acabou de casar. E a tragédia do herói e da heroína, tal como é descrita aqui, é que precisarão triunfar não somente sobre a hostilidade bem concreta de seus inimigos, como também de seus próprios sonhos, de seus pesadelos e de todas as obsessões que conduzem seus imaginários. No cinema, desfrutar de gênio, para um diretor, é antes de tudo e principalmente ser capaz de o partilhar com os outros. Em Sua Única Saída, Max Steiner nos dá a quintessência de suas partituras: uma música soturna, épica, grandiosa, que contém também um lirismo secreto. Os céus negros, os rochedos, os interiores precariamente iluminados por James Wong Howe são gravuras diante das quais, por instantes, a arte plástica de um Dreyer se assemelha a um esboço de debutante. Quanto aos atores, Robert Mitchum tem o olhar impenetrável daqueles que não conseguiram decifrar o enigma de seus destinos; ao seu redor, Teresa Wright ,e sobretudo Judith Anderson, se sacrificam a uma ênfase teatral, a uma solenidade vinda do fundo dos tempos, mas que se encontram tanto uma quanto outra rejuvenescidas, reinventadas pelo cinema.

Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles.
Tradução: Bruno Andrade.

O Rio Sagrado, Jean Renoir

Após vários anos passados na América, que não constituem sob o plano criativo um período crucial de sua obra, Renoir não retorna diretamente à Europa (onde realizará os quaisquer filmes essenciais que encerrarão sua carreira). Ele faz um atalho pela Índia, sobre a qual não se esquiva de exprimir um olhar de ocidental, e nos confia esse filme magnífico que marca a um só tempo uma pausa na sua obra e uma dilatação filosófica de suas perspectivas. O Rio Sagrado é representativo da dupla ambição que anima os maiores cineastas do pós-guerra: ir ao mais profundo da intimidade dos seus personagens e ressituá-los - eles e suas experiências - numa visão global e planetária da realidade. Sob esse ponto de vista, O Rio Sagrado é o mais rosselliniano dos filmes de Renoir. Graças a um roteiro refinado e sólido que une com uma maravilhosa fluidez um grande número de elementos díspares, o filme instala seu objetivo numa série de níveis: sentimental, familiar, social, racial, filosófico, espiritual e metafísico.
Da mesma forma, os espaços onde se situa a história vão do mais íntimo ao mais cósmico: o coração de Harriet, a família inglesa, as beiras do rio e o próprio rio, a Índia e o mundo. Em todos esses aspectos, o filme é uma homenagem ao esplendor das aparências, à sabedoria da vida e à unidade do grande Todo. Com relação a essa unidade, o indivíduo, no seu foro interior, na sua história pessoal, pode se sentir separado, exilado, mas esta é uma ilusão perigosa que deve desaparecer e dar lugar ao reconhecimento do equilíbrio superior dos ciclos vitais, ao consentimento à ordem natural das coisas e à coerência do universo. A consolação suprema vem, aos olhos de Renoir, do fato que no universo a parte é tão importante quanto o todo, é realmente, na sua humilde proporção, o todo; e essa convicção se reforça no decurso de sua estadia na Índia. A ambição filosófica do filme encontra seu correlato no minucioso êxito estético de sua realização. A distância entre os atores (profissionais ou não-profissionais) e os personagens que interpretam se encontra em O Rio Sagrado por assim dizer reduzida a zero. Não seria esse o sonho de todo diretor? O documentário e o ficcional aliam-se na história e recriam ao nível formal esta unidade que o filme defende no nível metafísico.
Quanto à foto de Claude Renoir, considerada a justo título com a de A Carruagem de Ouro como uma das mais memoráveis da história do cinema, ela encarna nas suas nuances e na sua riqueza o propósito do autor, a gratidão que sente em relação ao universo e a perfeita serenidade que se propõe a atingir.
Jacques Lourcelles, Dictionnaire du cinéma - Les films

Tradução: Bruno Andrade
Melville e seus discípulos, Nicolas Saada


Desde os anos 60, o interesse de Holywood e do mundo pelo cinema francês parecia ter se fixado principalmente sobre Godard e Truffaut: Godard era o moderno, Truffaut o sensível, ambos tendo se tornado o ponto de referência último de certos grandes cineastas americanos, que não cessaram de citá-los em seus filmes. Com Melville, redescobriu-se um elo perdido que, com Becker, Franju e Bresson, marcava uma transição histórica no cinema francês entre a tradição de antes da guerra e a Nouvelle Vague.

Melville é talvez o mais americano dos cineastas franceses: do cinema noir, ele reteve o fetichismo das armas e das roupas, a lógica quase fratricida da guerra de gangs e da lei do meio. Seus personagens parecem evoluir em um mundo paralelo, indiferentes ao tempo que passa e à sociedade, que acaba por aprisioná-los e matá-los. Por sempre ter feito referência quase direta aos mitos do grande cinema americano, Melville foi confundido, de forma equivocada, com uma figura nostálgica, presa ao passado, enquanto seu projeto tendia na verdade a deslocar os signos do filme noir no contexto depressivo do cinema de gênero à francesa

Nos filmes policiais de Melville, tudo a priori é clarividente: jazz, impermeáveis e stetsons. Mas por trás destas referências imediatas, dissimula-se uma relação muito particular ao cenário, ao quadro ( cadre) e à encenação. Os percursos de Melville sempre o encaminharam em direção a um crescente perfeccionismo, uma precisão de todos os instantes na progressão narrativa, de sua geografia e de seus personagens. Seu estilo com o tempo tornou-se cada vez mais misterioso, impalpável, e sua influência mais surda, distante. É por isso que pálidos imitadores focalizaram-se essencialmente sobre detalhes menores, tais como as roupas, a música e sobretudo uma certa “pose”, elementos que substituíam de forma desajeitada a essência de seu cinema, profundamente insolente e melancólico.
Melville manifestava a impossibilidade da existência do gênero através de personagens isolados e perdidos, ligados a ideais absolutamente ultrapassados.Esta idéia de errância, de perdição se reencontra nas cenas filmadas na floresta em Os profissionais do Crime ( Le deuxième souffle) ou O círculo vermelho: sequências de fuga para frente ( dianteira, “fuite em avant”) dos personagens. Estes últimos só parecem encontrar seu lugar num mundo desértico ou mental, do qual o quarto-caverna de Jeff em O samurai é uma imagem marcante.

Não é por acaso que o cinema de Hong-Kong foi um dos raros a integrar de forma excelente o universo dos filmes de Melville. Espremidos entre a tradição sufocante de uma China que os rejeita e o absurdo de uma megalópole que reproduz freneticamente o funcionamento das grandes capitais ocidentais, os heróis de John Woo são feitos da mesma matéria dos desenraizados de Melville.
Eles não pertencem a nenhuma verdadeira História, e se isolam em uma visão romântica do mundo que os conduz à sua perdição. É o caso do Assassino, personagem tão excepcional quanto ultrapassado, consciente de seu isolamento. John Woo também reteve de Melville a extrema inteligência de seus dispositivos geográficos: em uma das mais belas seqüências de Os profissionais do Crime, um personagem inspeciona cuidadosamente a situação de um cômodo onde perigosos gângsters, entre eles Denis Manuel, marcaram um encontro com ele. Minuciosamente, ele busca um lugar onde poderia dissimular uma arma sem que eles saibam. Em seguida, Denis Manuel fará o mesmo e descobrirá o revólver escondido. Em John Woo, o espaço é cuidadosamente esquadrinhado pelos personagens, a fim de ser utilizado em caso de confronto. O território é marcado, assinalado, e possibilita uma espécie de cumplicidade com o espectador, como em Better tomorrow, onde Chow-Yun Fat esconde um revólver em um corredor que o conduz diretamente para um covil de gângsters.

Mas se Melville colcoava seus heróis em paisagens urbanas, vazias e desencarnadas, verdadeiros lençóis se estendendo a perder de vista ( imóveis com corredores infinitos, avenidas desérticas filmadas na aurora, os recintos das escadarias abandonadas), John Woo abole o espaço através da montagem, único meio de quebrar os estreitos limites desta cidade-mundo que é Hong Kong. Esta ligação radical à forma parte de uma mesma constatação de fracasso, aquele da impossibilidade de inscrever no tecido social a presença de silhuetas quase anacrônicas.

No Estados Unidos, a influência de Melville permaneceu muito parcial, mais visível em cineastas cinéfilos como Scorsese que, com Travis Bickle em Táxi driver, oferece uma variação em torno do personagem abandonado e solitário do Samurai. Bickle e Jeff Costelo ( Alain Delon) possuem em comum o desejo de não deixar nada nas mãos do acaso: vejamos como Bickle esconde cuidadosamente nas mangas de sua roupa revólveres e punhais.
A sombra de Melville está mais presente nas seqüências rodadas no apartamento de Bickle: como Jeff Costello, ele se isola numa espécie de covil separado do mundo.

Esta idéia está presente quase 15 anos mais tarde, em Ajuste final (Miller’s Crossing), dos Irmãos Coen, filme profundamente mellviliano, tanto pelo tema quanto pela forma, extremamente contida. O herói do filme, interpretado por Gabriel Byrne, é um cruzamento entre o Delon do Samurai e o Belmondo de Técnica de um delator. Como Jeff, ele se fecha em um apartamento deserto, que se torna pura projeção de seu espírito. Assim como em Técnica de um delator, ele nos faz acreditar em sua traição, com o propósito de desvelar a identidade dos traidores que gravitam em torno de seu melhor amigo. Ajuste final retoma uma das imagens preferidas de Melville, a da imensa floresta, indiferente à violência dos homens. Uma das mais belas sequências do filme é aquela em que Gabriel Byrne deixa John Turturro viver: os Coen o filmam correndo freneticamente no meio das árvores, repetindo o plano fulgurante da fuga de Gian Maria Volonté no início de Círculo vermelho.

Foi um dos aspectos mais decorativos do cinema de Melville, transmitido sem dúvida à sua geração pelo intermédio de John Woo, que inspirou Tarantino. Com Cães de aluguel, Tarantino parece ter se concentrado sobre os detalhes mais imediatos do cinema de Melville, principalmente a roupa preta, verdadeiro uniforme de gângester. Tarantino certamente deve ter se lembrado do belíssimo plano da autoestrada, filmado em pleno dia por Melville nos Profissionais do crime: vemos, no quadro, os quatro cúmplices marchando lado a lado em direção à caminhonete blindada.

Le Bernin, à vista dos quadros de Nicolas Poussin, dizia, designando com o dedo a testa, que este pintava “ dali, daquele ponto ali” ( de là). Da mesma forma, em Melville, a visão do gênero torna-se uma espécie de meditação. Talvez por este motivo muitos tenham confundido em seu cinema a melancolia com a nostalgia. Ele se inscreveu em uma tradição profundamente francesa, e tentou reinterpretar uma idade de ouro ( âge d’or) desaparecida.
Tradução de Luiz Soares Júnior.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Andrei Roublev

1967 - URSS (175’). Real: Andrei Tarkovsky. Roteiro: Andrei Tarkovsky, Andrei Mikhalkov Kontchalovski. Foto: Vadim Youssov (Sovscope, alguns planos em cores). Música: Vjatcheslav Outchinnikov. Intérpretes: Anatoli Solonitzine (André ublev), Nikolai Sergeev (Teophane), Irma Raouch (a louca), Nicolai Bourliaiev (Boriska), Ivan Lapikov (Kyril), Iouri Nazarov (o duque), Sos Sarkissian (o cristo), Nikolai Bourliaiev (Boris).

O extremo formalismo do estilo de Tarkovski prolonga a tradição eisensteiniana e se separa radicalmente das duas principais tendências do cinema russo nos anos 60 e 70: a representação analítica e realista do presente (linha Panfilov); o desejo de reencontrar os laços profundos que unem o presente ao passado (linha Kontchalovsky e Mikhalkov). Assumindo o risco do esoterismo e mesmo da complacência esotérica, Tarkovski se interessa antes de tudo por estes impressionantes movimentos de câmera que petrificam o espaço de uma maneira sólida e surpreendente, às suas pesquisas de ambiências apocalípticas e extra-temporais. O tema abordado - a procura tateante de um humanismo espiritual, única trincheira contra a barbárie, o paganismo e os excessos da religião - lhe permite mergulhar nesta Idade Média indiferenciada onde se banha a maioria de seus filmes. Neste espaço fantasmagórico que é uma espécie de “berço do Ser”, o homem parece estar em gestação, criatura embrionária e ainda aprisionada no limo original, mas antes de tudo bestial, do qual é preciso arrancá-lo - e esta tarefa parece infinita - , a fim de que ele alcance um dia a consciência moral. A consciência tão somente. Na vanguarda deste esforço humano e sobre-humano se encontra o artista (Andrei Roublev, ou mesmo o jovem construtor de sinos), que arrasta atrás de si uma multidão de fantasmas, dos quais ele é ao mesmo tempo o pastor, o intérprete e a emanação suprema.

Jacques Lourcelles. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

Sob o Signo de Capricórnio

Under Capricorn - 1949. USA (112’). Prod. Warner Bros. Transatlantic Pictures (Sydney Bernstein e Alfred Hitchcock). Real. Alfred Hitchcock. Roteiro: James Bridie, Hume Cronyn, a partir de R. de Helen Simpson. Foto: Jack Cardiff (Technicolor). Música: Richard Addinsell. Intérpretes: Ingrid Bergman (Lady Henrietta Flusky), Joseph Cotten (Sam Flusky), Michael Wilding (Charles Adare), Margaret Leighton (Milly), Jack Watling (Winter), Cecil Parker (Sir Richard), Denis O’Dea (Corrigan).

Entre Rebecca e Vertigo, um destes devaneios românticos de Hitchcock onde um retrato feminino constitui o fundo da intriga. O roteiro foi escolhido por Hitchcock por agradar a Ingrid Bergman, uma das vedetes holywoodianas mais incensadas da época. Por um emprego sistemático e admiravelmente fluido dos planos longos e dos movimentos de câmera - técnica retomada do seu Festim diabólico, mas aqui com uma outra finalidade -, por uma lentidão e uma solenidade desejadas da intriga, uma dramatização mais discreta que de hábito, uma elipse quase total das cenas de ação, Hitchcock dá a seus personagens e às relações que se encadeiam entre eles uma estranha espessura romanesca. O que se passa no interior de seus corações é a verdadeira matéria do filme. Os temas hithcockianos do falso culpado e da confissão salvadora adquirem um papel muito insólito na economia da intriga, uma vez que o falso culpado o é voluntariamente e o conteúdo da confissão repousa na verdade sobre a revelação de um sacrifício do qual o beneficiário não deseja mais ser o único conhecedor. Todos os personagens vivenciam seus grandes sentimentos até o limite, e uma série de sacrifícios recíprocos encadeia uns aos outros de forma mais sólida que em um complot. Mesmo o anjo negro do filme (a governante Milly) age levada por um sentimento de amor profundo que, sem de forma alguma absolvê-la, às vezes a coloca ao nível dos outros personagens.

Sob o signo de Capricórnio é também um dos mais belos Technicolor da história do cinema. Soberba música de Richard Addinsell, o compositor de Sea devils.Incompreendido pelo público e pela crítica (com a exceção dos redatores da Cahiers du Cinéma), detestado naquele momento por Hitchcock, que viu no insucesso do filme um grande motivo de vergonha (o que demonstra, afinal, muita humildade de sua parte), este filme, onde a palavra tem uma extrema importância, especialmente como uma forma de exorcismo do passado, é uma das jóias de sua obra.

Bibliografia: deve-se ler o admirável artigo de Jean Domarchi consagrado ao filme, “A obra-prima desconhecida”, publicado no número 39 de Cahiers du Cinema (outubro de 1954, reeditado em 1980), primeiro panorama publicado sobre o cineasta. “Se a literatura moderna não tem mais o tempo de contar uma história e se o mito do anti-herói é um pretexto cômodo para resolver problemas que interessam unicamente aos técnicos, quem, pergunta Domarchi, quem se encarregará de narrar ao homem a sua própria história?”.

Jacques Lourcelles. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

They Live by Night

1949 - Usa (95’). Prod. RKO (John Houseman). Real. Nicholas Ray. Roteiro: Charles Scheene, Nicholas Ray, a partir de “Thieves Like Us”, de Edward Anderson. Foto: George F. Diskant. Música: Leigh Harline. Int: Cathy O’Donnel (Keechie), Farley Granger (Bowie), Howard da Silva (Chickmaw), Jay, C. Flippen (T. Dub), Helen Craig (Mattie), Will Wright (Mobley), Ian Wolfe (Hawkins).

Primeiro filme de Nicholas Ray, inscrito no campo ao mesmo tempo estrito e aberto a todas as transgressões do filme noir. Desde sua primeira obra, e de uma forma quase espontânea, Ray torna-se um expert na transgressão de gêneros. Ele negligencia, ainda mais que Huston em The asphalt jungle, a ação propriamente dita, escamoteia várias cenas espetaculares e passa de lado pela briga onde Howard da Silva (Chickamaw) encontra a morte. O que lhe interessa é mergulhar seu casal de jovens inocentes, Bowie e Keechie, em um mundo noturno e violento, composto quase unicamente de lugares de passagem (motel, sala de espera, auto-estrada), onde se esvaem a melancolia e a angústia dos personagens que os atravessam. O relevo selvagem dos personagens secundários, Chickamaw o cego, Mattie a delatora, que em si mesmos interessam pouco a Nicholas Ray, lhe servirá para exaltar a juventude e a vulnerabilidade dos dois heróis, descritos com este tom de lirismo terno e empolgante que nunca teve tanta força quanto em seu estilo.

Como em muitos de seus filmes, trata-se aqui essencialmente de uma obra poética, ou seja, uma obra na qual a figura da metáfora orienta toda intriga do filme, tanto em seus desenvolvimentos quanto em seus parênteses. A desorientação, a inadaptação ao meio (a um meio degradado, apodrecido) que caracteriza os dois heróis representa a melhor imagem que Ray encontrou para exprimir o exílio interior do homem e este sentimento de estranhamento (étrangeté) a tudo , e em primeiro lugar a eles mesmos, que sentem certos seres ao longo de sua vida.

Nota: John Houseman, que na RKO deu a primeira chance a Nicholas Ray e foi um dos produtores mais criativos de Hollywood recorda (em Cahiers du Cinema, 143) que o filme foi conservado 3 anos nos arquivos da firma, assim como The set-up de Robert Wise. “Finalmente, quando Hughes decidiu vender a companhia, tiraram estes filmes dos arquivos e os colocaram no mercado”. They live by night foi completamente ignorado em sua primeira estréia americana como um filme B, e só foi realmente conhecido bem mais tarde, graças à TV. Neste ínterim, porém, a Europa havia descoberto o filme e Nicholas Ray. É preciso acrescentar que, apesar de algumas superficiais semelhanças de roteiro, o filme não tem nada a ver com You only live once (que Ray não tinha ainda visto na época) nem com Gun crazy (Joseph Lewis, 1948). Remake sob o título Thieves like us por Robert Altman em 1974.

Jacques Lourcelles. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

Os Amantes Crucificados

Chikamatsu Monogatari 1954 (Japão, 102’). Prod. Daiei, Kyoto (Masaichi Nagata). Real. Renji Mizoguchi. Roteiro: Yoshikata Yoda, Matsutaro Mawaguchi, a partir de Daikyoji Sekireki, de Chikamatsu Monzaemon. Foto: Kazuo Miyagawa. Música: Fumio hayasaka. Int: Kazuo Hasegawa (Mohei), Kyoko Kagawa (Osan), Eitaro Shindo (Ishun), Sakae Ozawa (Sukeemon), Yoko Imanmida (Otama), Haruo Tanaka (Doki), Chieko Naniwam (Oko).

O feudalismo descrito por Mizoguchi: um universo onde cada um tem seu lugar fixado na hierarquia dos deveres e do respeito, onde cada ato é realizado como se fosse em praça pública, onde a ordem assim estabelecida tende a eliminar toda vida privada e liberdade. Mas esta reaparece no amor e no jogo imprevisto das paixões. É uma liberdade trágica que recria, entre os amantes, deveres e um respeito que tornam irrisórios os determinados pela ordem social. No plano estético, semelhante universo convém idealmente a Mizoguchi. Para ele, o “ser” dos personagens só pode existir na intensidade e na tragédia. Cada gesto e entonação, cada sentimento dos dois heróis surge em um presente que é a Eternidade, onde o anedótico, o superficial, o finito não encontram lugar. Intensamente felizes e infelizes, os amantes crucificados transgridem as leis de seu universo social e estão para além de todo e qualquer julgamento. Eles nos aparecem como os únicos verdadeiros seres vivos do filme e, sob este título, exercem fascinação tanto sobre os outros personagens quanto sobre o espectador. A arte, a certeza (dir-se-ia que toda “falta de jeito”- maladresse- lhe é desconhecida), a determinação tranqüila com os quais Mizoguchi põe em obra esta fascinação nos enquadramentos, no grão da foto ou no jogo dos intérpretes fazem dele, ao menos em seu último período, o cineasta por excelência: uma espécie de igual, de contemporâneo na eternidade de um Goethe ou Shakespeare, aos quais, aliás, o material literário aqui utilizado poderia ser comparado.

Jacques Lourcelles. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

O Anjo do Mal

Pick up on south street 1953. Usa (83’). Prod. Fox (Jules Schermer). Real. Samuel Fuller. Roteiro: Samuel fuller, a partir de uma história de Dwight Taylor. Foto: Joe Macdonald. Música: Leigh Harline. Int: Richard Widmark (Skip Mccoy), Jean Peters (Candy), Thelma Ritter (Moe), Murvyn Vye (Capt. Dan Tiger), Richard Kiley (Joey), Willis B. Bouchey (Zara), Milburn Stone (Winoki).

Admirável lição de cinema da qual cada plano é marcado pela sensibilidade vibrante de Fuller, Anjo do mal é ao mesmo tempo o mais impessoal e mais autoral de seus filmes. Ele se inscreve na veia documentária do filme noir, ou seja: é um filme que utiliza diversas externas e descreve uma investigação que poderia dar um excelente artigo de jornal.

Quando era jornalista, Fuller com frequência andou pelos meios marginais aqui representados. Os méritos de Pick up são aqueles de um bom filme de ação, sacudidos ainda pelo frêmito elétrico que Fuller impõe a todas as suas histórias: caracterização aguda dos protagonistas secundários, e mesmo das "pontas" (o homem se empanturrando de arroz que vende informações para Jean Peters e cata com pauzinhos as notas que ela põe sobre a mesa); tempo vivo e às vezes ofegante; sábia utilização da profundidade de campo e de longos movimentos de câmera, com o fim de dar à ação sua dose justa de pimenta e realismo. (Aliás, o barroco de Fuller privilegia sempre os planos muito comprimidos ou muito largos, em detrimento dos planos médios).

Não esqueçamos também o humor, um certo humor sardônico e insolente que não é exclusividade de Fuller (ver os filmes de Don Siegel) e que tem um duplo efeito contraditório, muito freqüente no cinema hollywoodiano do pós-guerra; num certo grau, este humor distancia o espectador do filme. Mas ao mesmo tempo liga este espectador de modo mais eficaz à ação, solicitando sua cumplicidade. Fuller, aliás, deixa de lado este humor quando lhe parece adequado, ou seja, no meio da história.

Podemos julgar a respeito de seu talento, virtuosidade e controle do filme pelo fato de que a cena mais engraçada e a seqüência mais trágica da intriga tenham por protagonista o mesmo personagem, a velha Moe (interpretada pela perfeita Thelma Ritter, cujas composições foram inesquecíveis em Lettres to three wives, The mating season de Mitchell Leisen, 1951, e Janela indiscreta, etc).

Na primeira destas sequências, ela vende Widmark à polícia, segundo seus hábitos “profissionais”. Na segunda seqüência, ela se deixa assassinar, velha mulher fatigada, corajosa e íntegra à sua maneira, clamando pela morte como uma libertação.

Passemos ao aspecto mais estritamente “fulleriano” do filme. Toda a ação é vista segundo a perspectiva de dois exluídos socialmente, dois personagens que “de nada valem”, segundo os valores burgueses da sociedade; vistos, portanto, como traidores destes mesmos valores.

A semelhança profunda que existe entre Jean Peters, a aventureira e Richard Widmark, o batedor de carteiras (passado suspeito, dinamismo e vitalidade poderosos, situação precária de sobrevivência na selva das cidades) torna crível a paixão fulminante – “coup de foudre”- que eles, entre uma porrada e outra , passam a sentir um pelo outro. (Aliás, eles não vão parar de “se pegar” ao longo do filme).

O ponto de vista de Fuller é o de mostrar uma certa solidariedade, uma certa integridade entre estes personagens marginais, assumindo mais ou menos sua condição e adeptos semi-conscientes de uma moral que eles poderiam facilmente voltar contra os pilares sociais.

Personagens deslocados, desorientados, constantemente em desequilíbrio entre o universo dos bons e dos maus e sem pertencer propriamente a nenhum desses, eles permitem ao autor exprimir, no seio de seu pessimismo explosivo, uma visão moral e anti-convencional do mundo.

O anti-comunismo tratado no filme serve de critério de julgamento acerca da relativa putrefação dos personagens. Aqueles aos quais Fuller particularmente se identifica, como o batedor de carteiras interpretado por Widmark, se postam no limite do mal absoluto, mas jamais ultrapassam esta tênue fronteira. Quando são tentados a fazê-lo, seu anjo bom os impede (cena onde Jean Peters arrasta Richard Widmark).

Talvez por serem estes personagens os mais “superexpostos”, são também - dramática e moralmente - os mais tocantes.

Nota: Em uma sequência de emissão televisiva Cinéma Cinémas, Fuller comenta na moviola os primeiros planos de seus filmes e indica, em especial, que a estação do metrô e a cabine são, contra toda espectativa, cenários construídos no estúdio.

Jacques Lourcelles. Tradução de Luiz Soares Júnior.

Rio Bravo

Eu detesto westerns. Eis a razão de adorar Rio Bravo. O gênero me aborrece porque, embora os sentimetos que ele retrate sejam admiráveis, quase sempre baseiam-se em princípios, não em fatos. A discreta direção do filme está preocupada com algo além de si mesma – problemas pessoais, políticos, técnica. Ela nega o espírito do verdadeiro western e toma partido de seu inverso: ênfase, decoro, lirismo. Rio Bravo é também basicamente antagônico a um Johnny Guitar. Não há nada intrinsicamente poético a par do filme, embora o fim que resulte seja um tipo de poesia. Como sempre ocorre em Hawks, as regras do jogo são respeitadas, pelo menos até o ponto definido por Hawks como suficiente. Rio Bravo é um filme extremamente original, um faroeste sobre confinamento em que não há índios, paisagens ou cenas de perseguição. Ele realiza algo raro na redescoberta da essência do gênero, e o faz a partir de um caminho fora do comum (considerando que Red River e Big Sky chegam ao mesmo resultado sem romper com a tradição). E traz à mente a lembrança de um thriller como To Have and Not Have ou de um melodrama como Barbary Coast. Mas por que Hawks assinaria este western, afinal? Porque permitiria ao diretor apresentar ações que não são ordinariamente vistas todo dia no mundo, pela natureza de seres fora do padrão. Eu não sou um xerife, ou Angie Dickinson, ou um faraó; nem mesmo alguns de vocês. Hawks ainda nos mostra que o atrativo de tais indivíduos não está relacionado com aquilo que seria de se esperar (o mundo da aventura, o extraordinário). O Hawks classicista sempre rejeitou estes valores, satirizou-os, conduziu-os ao ridículo, até mesmo ignorando-os em The Thing. Contudo, aceita igualmente o trivial: um homem é um xerife do mesmo modo que é um peão ou um condutor de metrô. Há vários disparos em Rio Bravo, mas nenhum deles real, nenhum deles apresenta qualquer valor dramático verdadeiro. Os incessantes disparos acabam somente por se tornarem monótonos, e eles eliminam todo suspense. Cada gesto repetido anula seu predecessor. E a inteligência blasé de Wayne, longe de contemplar o ato, por alguma razão imediatamente fixa a extensão de possíveis conseqüências. Como Wayne o faz é uma questão de telepatia, similar ao modo prévio dos heróis hawkianos possuírem olhos atrás de suas cabeças.



Luc Moullet, Cahiers du cinema, Julho de 1959. Tradução de Felipe Medeiros.

Apocalypse Now (Eles Vivem, de John Carpenter)

O filme se abre num clima de errância que caracteriza o cinema de Carpenter e sua filiação ao western e aos seus heróis solitários. O herói é John Nada (interpretado por Rodney Piper, ex-lutador) que chega, bolsa nas costas, a Los Angeles para encontrar um emprego. Nada, sem abrigo nem trabalho, é recebido por uma pequena comunidade de desempregados e vagabundos, localizada próxima a uma igreja, onde entrará em contato com resistentes que lutam impetuosamente contra invasores misteriosos que controlam a população. John Nada é, evidentemente, o próprio John Carpenter que, desde seu grande fracasso comercial, “Aventureiros do Bairro Proibido”, voltou à produção B após seu purgatório em diferentes majors hollywoodianas. É assim, com nada, que Carpenter recomeça. Se é possível arriscar esta analogia, é porque Carpenter seguiu um trajeto (produção B-televisão-majors-produção B) comparável ao de seu personagem em “Eles Vivem”.

Em 1982, Carpenter declarou a Cahiers du Cinéma (nº 339), a propósito de seus primeiros passos com as majors: “Uma parte do charme de Assalto a 13ª DP ou de Halloween devia-se ao fato de que não havia dinheiro suficiente para mostrar as coisas. Ao contrário, hoje me dão dinheiro para mostrá-las, então é necessário fazê-lo”.

Mostrar: o próprio tema de “Eles Vivem” (e a função de seu herói); certamente um tema cinematográfico, mas também, para Carpenter, uma preocupação moral que o aproxima de Fritz Lang. “Eles Vivem” ilustra, na verdade, o velho adágio languiano segundo o qual a aparência não é a realidade, o visível não é a verdade. Provocação de Carpenter ao espectador que não consegue mais fazer a triagem das imagens que lhe são enviadas cotidianamente. Nada é ao início bastante ingênuo, crédulo (como poderia ter sido Carpenter no início dos anos 80 antes de seu fracasso nas majors): “Eu acredito na América, eu estou dentro do sistema”, declara ao início do filme. Depois, graças aos óculos escuros fabricados pela resistência (a produção B), espécies de “decodificadores portáteis”, Nada terá a prova de que não se pode confiar no sistema: este que rege a América de hoje é nada mais que o fruto de um vasto complô fomentado por extraterrestres (auxiliados por humanos sem escrúpulos) que embrutecem a população lhes transmitindo mensagens subliminares primárias (“não pensem”, “não reflitam”, “submetam-se”, “consumam”, “reproduzam-se”, “o dinheiro é seu Deus”). Este horror da realidade é mostrado bastante curiosamente através de imagens em preto e branco, que revelam esta visão decodificada do mundo. Carpenter poderia ter recorrido a outros estratagemas visuais: na verdade, este preto e branco pertence a um cinema de ontem (Hawks, citado por Carpenter como um pai em sua cinefilia) que joga nova luz sobre a face absolutamente inumana da América deste fim de anos 80. A fonte de emissão destas mensagens é naturalmente a televisão e seus programas (outro câncer do cinema americano) que a resistência tenta sabotar, em vão, através de transmissões clandestinas: John Nada e seu colega negro Frank vão destruir, fuzis às mãos, a estação televisiva. Assim, “Eles Vivem” é também a história de uma mini-insurreição que se pode interpretar ao mesmo tempo como política e, em outra medida, como de cinefilia.

Esta gravidade da proposta de Carpenter nunca é, felizmente, explicitada verbalmente no filme. Em total adequação com seu tema, Carpenter prefere mostrar, através de longas seqüências quase mudas, a extensão do mal ao criar um sentimento de inquietude e agonia constante, arte na qual ele se tornou mestre (assim como na utilização da trilha, tão opressora quanto possível). O resultado de “Eles Vivem” é deslumbrante, notadamente em seu controle do scope, formato ingrato que Carpenter emprega para isolar os personagens alienando-os no quadro, acentuando este efeito ao fimá-los em espaços fechados, com perspectivas de profundidade limitada (ruelas, corredores, becos).

Quanto ao aspecto “guéguerre” que alguns censuram no filme (a luta a mão armada entre os resistentes e os invasores), ele não faz com que Carpenter caia nas armadilhas do filme de gênero (filme de ação). Todas estas batalhas são dominadas por uma distância plástica que as transforma em verdadeiros ballets, ritmados por uma montagem, em certos instantes, digna do melhor cinema soviético: um insert, magnífico, dos canos das metralhadoras marca a maioria destas seqüências. A cena pivô do filme, uma briga de mais de dez minutos entre John Nada e seu colega Frank (que ele obriga a usar os famosos óculos) ilustra dois princípios hitchcock-hawksianos. O primeiro, hitchcockiano, é que tudo deve ser utilizado para as necessidades de uma cena (como o avião de “Intriga Internacional” que fumiga Cary Grant). O intérprete de Nada, Rodney Piper, é um ex-lutador: e nesta lógica ele deve, a um momento ou outro, brigar. O segundo, herdado das brigas iniciáticas dos filmes de Hawks ou Ford, é menos uma homenagem que uma necessidade: trata-se, para Frank, o negro, de sofrer a dor a fim de melhor ver. Diante da papa em que se tornou o cinema comercial americano, este mal é necessário: já o era para o herói de “Comando Assassino” de Romero, e também o é para aqueles de Carpenter. “Eles Vivem” soube reencontrar esta beleza e este discurso da produção B americana, que se podia dar por desaparecidos: isto é excepcional.

Nicolas Saada, Cahiers du Cinéma, abril de 1989. Tradução de José Roberto Rocha.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Aquila Nera, Riccardo Freda

1946. Itália (106'). Prod: CDI/Lux Film. realização: RICCARDO FREDA. Roteiro: Mario Monicelli, Stefano Vanzina e Riccardo FREDA, a partir da novela Doubrovski, de Alexandre Pushkin. foto: Rodolfo Lombardi. Música:Franco Casavola. Int: Rossano Brazzi (Vladimir Doubrovski), Irasema Dilian (Mascha Petrovitch), Gino Cervi (Kirilla petrovitch), Rina Morelli (Irene), Harry Feist (Serge Ivanovitch) Paollo Stoppa (um bandido), Inga Gort (Maria).

Terceira adaptação da novela de Pushkin “Doubrovski”, depois da adaptação de Clarence Brown com Valentino (1925) e do russo Alex Ivanovsky (1937). Segundo filme de capa e espada de Freda, O Águia negra participa do renascimento do gênero, renascimento iniciado pelo diretor antes mesmo da queda do fascismo, com seu Don Cesare de Bazan.

O filme é um imenso sucesso comercial: esteve em primeiro lugar no circuito italiano de 1946, primeiro ano no qual a Itália retoma uma produção quantitativamente normal, com 46 longas-metragens. Daí vem sua dupla importância para a obra de Freda, importância esta confirmada por suas escolhas, e para a evolução de uma parte do cinema italiano.

Diametralmente oposto ao neo-realismo nascente, assim como ao caligrafismo moribundo de Soldati e Castellani, o espírito e o dinamismo da mise-en-scéne de Freda abrem caminho a uma renovação triunfal do filme de aventuras, seguindo diretamente o fio desta tradição heróica e espetacular, consubstancial a toda história do cinema italiano.

Freda se serve do filme de aventuras para exaltar as forças da vida, ao contrário dos cantos fúnebres do caligrafismo (basta comparar seu filme a Um colpo di pistola, outra adaptação de Pushkin, dirigida por Castellani).

Freda se interessa também a dar todo o relevo possível a personagens de heróis individualistas, forjando seus destinos com as próprias mãos e contra todos os obstáculos. Nisso também ele se encontra na contra-corrente. Ele vira as costas ao acinzentado (grisaille) unanimista do neo-realismo, à sua resignação mais ou menos confessa, assim como à sua prodigiosa faculdade de atenção ao presente.

Antes de tudo, sua obra é a de um estilista de qualidades múltiplas, cujas preferências e tomadas de posição vão frequentemente no sentido do gosto do grande público.

Sábio ritmo do découpage; estilização esplêndida da reconstituição plástica; cenas de ação coletiva, duelos e perseguições com um frenético brio; fantasia e poder: por que estas qualidades seriam exclusividade do cinema americano?

Toda a obra de Freda, desde suas origens, se rebela contra esta idéia. Este realizador tentou provar que a velha Europa, mesmo recém-saída de um conflito mundial que em muitos sentidos a desvitalizou, possuía ainda uma fonte ardente, que ela era capaz de ilustrar de maneira criativa e vigorosa uma história que, tais como as de Dumas, Dante e Hugo - adaptados em seguida pelo mesmo diretor-, lhe pertence de direito.

Nota: Cinco anos mais tarde, Freda vai dirigir uma continuação extremamente brilhante para este filme, chamada La vendetta di Aquila Nera (1951).

Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

ADVENTURE IN MANHATTAN, Edward Ludwig

1936. USA (73’). Prod. Columbia. Realização: Edward Ludwig. Roteiro: Sidney Buchman, Harry Sauber, Jack kirkland, baseado em uma história de Joseph Krumgold, sugerida por “Purple and Fine Linen”, de May Edington. Foto: Henry Freulich. Música:Maurice Stoloff. Intérpretes: Jean Arthur ( Claire Peyton), Joel McCRea ( George Melville), Reginald Owen (Blackton Gregory), Herman Bing (Tim, o rapaz do café), Victor Kilian (Marc Gibbs), Robert Warwick ( Phillip).

Antes de encontrar seu domínio de eleição - o filme de aventuras exóticas e solares - onde triunfará nos anos 50, Edward Ludwig, um dos grandes diretores desconhecidos do cinema hollywoodiano, hesitou longamente entre diversos gêneros. De 1932 a 1944, vários de seus filmes (The man who reclaimed his head, 1934, ou The man who lost himself, 1941) testemunham seu gosto vivíssimo pelo insólito, assim como sua indecisão sobre o tipo de filme que melhor lhe convinha. Adventure in Manhattan é a mais bem realizada obra desta época que conhecemos dele.

Ludwig toma como campo da ação (mas não é nada além de um campo, um cadre) este meio de jornalistas exuberantes e tagarelas ,tão caro à Columbia dos anos 30, e desenha as premissas de uma falsa comédia americana que é também uma falsa comédia policial. O tema real da intriga é o combate sem misericórdia entre dois estetas, mutuamente respeitosos, se enfrentando por meio de ficções e estratagemas interpostos: um melodrama mórbido oculta uma farsa e uma pequena vingança; uma representação teatral extremamente dramática facilita um assalto. O gosto de afirmar sua superioridade conduz cada um dos protagonistas à solidão, altiva e criminal para um, irônica e insolente para o segundo.

Vamos reencontrar algo deste orgulho aristocrático nos personagens de aventureiros criados mais tarde por Ludwig. Aqui, o espectador é constantemente surpreendido por uma intriga rica em sequências de fundo duplo, em enigmas engenhosamente construídos e resolvidos. Ludwig avança a passos largos em sua narração, sem se importar de uma verossimilhança imediata. Ele despreza igualmente sublinhar seus jogos de prestidigitador, o que lhes aumenta a eficácia. Ludwig arrasta atrás de si um espectador intrigado e maravilhado por esta facilidade, esta estranha sobriedade de grande contador de histórias.

Jacques Lourcelles. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

FEMMES, FEMMES, Paul Vecchiali

1974. France - (120’). Prod. Unité Trois, Stephan Films (Jean Feixe t Paul Vecchiali). Réal. Paul Vecchiali. Roteiro: Vecchiali , Nöel Simsolo. Foto: Georges Strouvé. Música: Roland Vincent.Intérpretes: Hélene Surgère (Hélène), Sonia Saviange (Sonia), Michel Delahaye (o médium), Noel Simsolo (Ferdinand), Michel Duchaussoy (Lucien), Huguette Forge (a cliente).

A obra de Paul Vecchiali se encontra repartida - ou talvez fosse melhor dizer “dividida”- entre uma nostalgia por um cinema popular, tal como o que se praticava na França dos anos 30, e pesquisas resolutamente experimentais e de vanguarda. Femmes, femmes representa uma síntese improvável e insólita entre estas duas tendências, unificadas no roteiro, ou mesmo na imagem, pelos temas, explorados até a náusea, do fracasso, da velhice, da decadência e da morte. Tudo isto num universo fechado (huis- clos) que se quer expressamente "à la Cocteau”.

Fascinado por estes temas ao ponto de neles submergir, Vecchiali acumula aqui uma série de elementos que parecem reunidos com o propósito de afastar o público: preto e branco sujo e débil, lentidão e ausência de ação, artifício do jogo e da dicção, irrealismo exagerado dos personagens secundários, incongruência dos números musicais ( às vezes muito bem realizados), atmosfera constantemente lúgubre e mórbida.

Excessivamente distanciado e ao mesmo tempo voltado sobre si mesmo, o filme, assim como seus personagens, vive da nostalgia do passado, ao invés de simplesmente viver. Ele é a prova de que, no cinema, assim como na vida real, é impossível ressuscitar aos mortos.

Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

THE NARROW MARGIN, Richard Fleischer

1952. USA (71’). Prod: RKO (Stanley Rubin). Real: Richard Fleischer. Rot: Earl Fenton, baseado em uma história de Martin Goldsmith e Jack Leonard. Foto: George E. Diskant. Int: Charles Mcgraw (Walter Brown), Marie Windsor (Mrs. Neil), Jacqueline White (Ann Sinclair), Gordon Gebert (Tommy Sinclair), Queenie Leonard (Mrs. Troll), David Clarke ( Joseph Kemp) Peter Virgo (Densel), Don Beddoe (Gus Forbes), Paul Maxey (Sam Jennings), Peter Brocco (Vincent Yost).

Laconismo, eficácia, tensão, mal-estar, ação incessante e sem tempos mortos: The narrow margin leva todas estas noções ao seu limite extremo de virtuosismo, especialmente devido à exigüidade do cenário do trem, onde se desenrolam três quartos da ação, e constitui assim uma espécie de compêndio (précis) da mise-en-scéne hollywoodiana, tal como a que se praticou em seu mais alto nível no filme noir e nos filmes B. A espantosa perfeição formal do filme marca o fim do longo aprendizado (uma dezena de filmes em cinco anos) sofrido por este superdotado da mise-em-scéne que já à época era Richard Fleischer.

The narrow margin é, com efeito, seu último filme para a RKO, (onde ele realizou o essencial de seus primeiros filmes), e o anti-penúltimo filme em preto e branco em formato normal desta companhia (antes da deliciosa comédia realizada por Stanley Cramer, The happy time).

Apesar de seu brilhantismo, o filme está longe de ser um puro exercício de estilo. É também um completo filme de autor, sobretudo por esta ausência voluntária de humor e de ambigüidade moral no herói, através da qual Fleischer afirma suas escolhas e o tom de gravidade que ele pretende dar à sua história.

Por outro lado, The narrow margin mostra estranhas semelhanças com obras muito posteriores de seu autor, como The new centurions (1972). Nos dois filmes, é o mesmo aspecto trágico, absurdo, improvável e suicida da condição policial que é designado. O que acontece em The narrow margin antes e durante a viagem de trem se assemelha com efeito a uma terrificante tragicomédia de erros. Gus Forbes, o parceiro do herói, morre por nada, assim como a mulher policial (Marie Windsor), que teria dado sua vida para testar a honestidade de seu colega.

Quanto à verdadeira Sra. Neil, esta não tinha necessidade de ninguém para chegar sã e salva em Los Angeles, e é justamente seu encontro (fortuito) com o policial que põe em perigo sua vida! Diante desta impossibilidade real de agir, o policial interpretado por Charles McGraw tenta sobreviver e realizar seu trabalho com esta obstinação taciturna e petulante que encontraremos com frequência nos heróis de Fleischer, notadamente nos personagens interpretados por George C. Scott em The new centurions e The last run.

No que diz respeito a The narrow margin, este pessimismo não é apenas a característica convencional e estrutural de um gênero mas o índice certo, embora tratado de forma menor e com uma grande modéstia estética, de uma grave crise moral da civilização urbana americana, crise esta da qual os filmes de Fleischer , entre outros, são os perturbadores espelhos.Como em muitos filmes de Fleischer, este compêndio de mise-em-scéne é, também e sobretudo, um compêndio (précis) de decomposição.

Nota suplementar:

Impressionado pelo filme, Howard Hughes, então chefe da RKO, propôs refazê-lo a Fleischer com um orçamento muito maior, tendo como stars Robert Mitchum e Jane Russell. Isto não interessou a Fleischer, o que lhe custou um imenso atraso no lançamento do filme. Realizado em 13 dias em 1950, o filme só foi lançado na primavera de 1952, e obteve um imenso sucesso.

Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes. Traduzido por Luiz Soares Júnior.

O Monstro é quem Teme: The Elephant Man, David Lynch



Por Serge Daney






O monstro é quem teme




Este filme é singular em vários sentidos. E primeiramente por causa daquilo que David Lynch realiza a partir da idéia de medo: o medo do espectador (nossos) e aqueles pertencentes às personagens, incluindo o de John Merrick (o homem elefante). Deste modo, a primeira parte do filme, até a chegada ao hospital, funciona um pouco por assim dizer a exemplo de uma armadilha. O espectador é induzido a pensar que mais cedo ou mais tarde ele terá que testemunhar algo insurpotável ao defrontar-se com o monstro. Um grosseiro saco com um buraco para olhar é tudo que o separa do horror que ele conjetura. O espectador é conduzido ao filme à maneira de Traves, a partir do ângulo do voyerismo. Ele presta-se (ainda do mesmo modo que Treves) a ver uma aberração (1): este homem elefante sucessivamente exibido e ignorado, abrigado e agredido, sumariamente visto em uma espelunca, uma “excentricidade” para os cientistas, levado e escondido ao hospital real de Londres. E quando o espectador o vê afinal, ele é tão desapontador que Lynch simula praticar o jogo do filme de horror clássico: noite, corredores desertos de hospitais, nuvens movendo-se rapidamente em um céu carregado, e repentinamente neste ponto surge a tomada de John Merrick levantado em sua cama, acometido de um pesadelo. O espectador o vê – realmente – pela primeira vez, mas o que ele também vê é que aquele monstro o qual espera-se temer é quem sente medo. É neste momento que David Lynch liberta seu espectador da armadilha primeiramente estabelecida (a armadilha do “algo a ser visto”, como se Lynch estivesse dizendo: você não é aquele que importa, é ele, o homem elefante; não é o teu medo que me interessa mas o dele; não é o teu medo de vir a se chocar que eu quero manipular mas o medo dele de assustar, o medo dele em se ver no olhar de outro. A vertigem toma outro partido.


O salmo é um espelho





O Homem Elefante é uma série de ações bem-sucedidas de théâtre, algumas divertidas (a visita da princesa ao hospital como uma “dea ex machina”), outras mais transtornantes. Nós nunca sabemos como uma cena pode terminar. Quando Treves deseja convencer Carr Gomm, o diretor do hospital (magnificamente vivido por John Gielgud), de que Johm Merrick não é um incurável, pede a este que memorize e venha a recitar em seguida o início de um salmo: mas tão logo os dois médicos deixam o recinto, eles ouvem Merrick recitar o final do salmo. Impacto, coup de théâtre: este homem o qual o próprio Treves considera um cretino sabe a bíblia de cor. Mais tarde, quando Treves o apresenta a sua esposa, Merrick não pára de surpreendê-los ao mostrar o retrato de sua própria mãe (ela é lindíssima) e por ser o primeiro a oferecer um lenço à esposa de Treves, que repentinamente derrama-se em lágrimas. Há um discreto humor na forma de posicionar o homem elefante como o único que sempre preenche a foto na qual se configura, o único que marca a tela. É também um modo bastante literal e de nada psicológico de conduzir a história: com dois saltos e uma lógica significante. Assim John Merrick encontra seu lugar no painel da (alta) sociedade inglesa, vitoriana e puritana, pela qual ele torna-se uma atração obrigatória. Ele é somente algo que esta sociedade precisa, sem o qual ela não pode ser completa. Mas o que exatamente? O fim do salmo, o retrato, o lenço, o que eles são no fim das contas? Quanto mais o filme progride, mais claro fica para aqueles ao redor dele: o homem elefante é um espelho. Eles vêem menos e menos, mas eles mesmo se vêem mais e mais em seu olhar.







Os três olhares




No curso do filme, John Merick é o objeto de três olhares. Três olhares para três eras de cinema: burlesca, moderna, clássica. Ou: a funfair, o hospital, o teatro. Há primeiramente o olhar inferior, a observação das pessoas humildes, e a aspereza de lynch, uma observação precisa, sem afabilidade, sobre este olhar. Há um bocado de carnaval na cena onde Merrick é embriagado e raptado. No carnaval, não há nenhuma essência humana a ser representada (equiparado com a face de um monstro), há somente corpos tratados com somenos importância. Então há o olhar moderno, o olhar fascinado do doutor (um notável Anthony Hopkins): respeito ao próximo e má consciência, mórbido erotismo e epistemologia. Depois de cuidar do homem elefante, Treves se resguarda: é a primeira luta do humanista (à la Kurosawa). Finalmente, há o terceiro olhar. Quanto mais o homem elefante é popular e celebrado, quanto mais outras pessoas lhe visitam têm tempo para cobrirem-se numa máscara, uma máscara de cortesia que dissimula aquilo que eles sentem a respeito de sua visão. Eles vão ver John Merrick para pôr à prova esta máscara: se seus medos os traíssem, eles viriam o reflexo dentro dos olhos de Merrick. É deste modo que o homem elefante é o espelho deles, não um espelho onde eles pudessem ver e reconhecer a si mesmos mas um espelho para aprender a atuar, dissimular, mentir e até mesmo mais. No começo do filme, havia a abjeta promiscuidade entre a aberração e o homem a exibi-lo (Bytes), até que Treves fica mudo, extático horror no ambiente. No fim, é a Sra. Kendal, a estrela do teatro de Londres, que decide, quando lê um jornal, tornar-se amiga do homem-elefante. Numa cena bastante desconfortável, Anne Bancroft, como a estrela convidada, vence uma aposta pessoal: nenhum músculo de sua face estremece quando é apresentada a Merrick, a quem fala como se fosse um velho amigo, indo tão longe naquela que até o beija. O ciclo se fecha, Merrick pode morrer e o filme pode terminar. Sobre uma mão, a máscara social foi inteiramente reconstituída; sobre a outra mão, Merrick ao menos pôde ver no olhar do outro algo totalmente diferente do reflexo da aversão que ele inspira. O quê? Ele não poderia dizer. Ele compreende o cúmulo do artifício pela verdade e claro que ele não está errado - desde que nós não estejamos no teatro.



O homem elefante cultiva dois sonhos: dormir sobre suas costas e ir ao teatro. Ele irá realizá-los na mesma noite, um pouco antes de morrer. O final do filme é bastante comovente. No teatro, quando Merrick se esforça de sua cabine para conferir quem lhe dirige aplausos por vê-lo, nós realmente não temos a mínima idéia do que se passa em seu olhar, nós não sabemos aquilo que ambos vêem. Lynch conduz assim a remição de um pelo outro, dialeticamente, monstro e sociedade. Ainda que somente no teatro e por uma única noite. Não haverá outra representação.









(1) Em inglês no texto, freak
Cahiers du cinéma, n° 322, Paris, 1981. Tradução de Felipe Medeiros.