quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Apocalypse Now (Eles Vivem, de John Carpenter)

O filme se abre num clima de errância que caracteriza o cinema de Carpenter e sua filiação ao western e aos seus heróis solitários. O herói é John Nada (interpretado por Rodney Piper, ex-lutador) que chega, bolsa nas costas, a Los Angeles para encontrar um emprego. Nada, sem abrigo nem trabalho, é recebido por uma pequena comunidade de desempregados e vagabundos, localizada próxima a uma igreja, onde entrará em contato com resistentes que lutam impetuosamente contra invasores misteriosos que controlam a população. John Nada é, evidentemente, o próprio John Carpenter que, desde seu grande fracasso comercial, “Aventureiros do Bairro Proibido”, voltou à produção B após seu purgatório em diferentes majors hollywoodianas. É assim, com nada, que Carpenter recomeça. Se é possível arriscar esta analogia, é porque Carpenter seguiu um trajeto (produção B-televisão-majors-produção B) comparável ao de seu personagem em “Eles Vivem”.

Em 1982, Carpenter declarou a Cahiers du Cinéma (nº 339), a propósito de seus primeiros passos com as majors: “Uma parte do charme de Assalto a 13ª DP ou de Halloween devia-se ao fato de que não havia dinheiro suficiente para mostrar as coisas. Ao contrário, hoje me dão dinheiro para mostrá-las, então é necessário fazê-lo”.

Mostrar: o próprio tema de “Eles Vivem” (e a função de seu herói); certamente um tema cinematográfico, mas também, para Carpenter, uma preocupação moral que o aproxima de Fritz Lang. “Eles Vivem” ilustra, na verdade, o velho adágio languiano segundo o qual a aparência não é a realidade, o visível não é a verdade. Provocação de Carpenter ao espectador que não consegue mais fazer a triagem das imagens que lhe são enviadas cotidianamente. Nada é ao início bastante ingênuo, crédulo (como poderia ter sido Carpenter no início dos anos 80 antes de seu fracasso nas majors): “Eu acredito na América, eu estou dentro do sistema”, declara ao início do filme. Depois, graças aos óculos escuros fabricados pela resistência (a produção B), espécies de “decodificadores portáteis”, Nada terá a prova de que não se pode confiar no sistema: este que rege a América de hoje é nada mais que o fruto de um vasto complô fomentado por extraterrestres (auxiliados por humanos sem escrúpulos) que embrutecem a população lhes transmitindo mensagens subliminares primárias (“não pensem”, “não reflitam”, “submetam-se”, “consumam”, “reproduzam-se”, “o dinheiro é seu Deus”). Este horror da realidade é mostrado bastante curiosamente através de imagens em preto e branco, que revelam esta visão decodificada do mundo. Carpenter poderia ter recorrido a outros estratagemas visuais: na verdade, este preto e branco pertence a um cinema de ontem (Hawks, citado por Carpenter como um pai em sua cinefilia) que joga nova luz sobre a face absolutamente inumana da América deste fim de anos 80. A fonte de emissão destas mensagens é naturalmente a televisão e seus programas (outro câncer do cinema americano) que a resistência tenta sabotar, em vão, através de transmissões clandestinas: John Nada e seu colega negro Frank vão destruir, fuzis às mãos, a estação televisiva. Assim, “Eles Vivem” é também a história de uma mini-insurreição que se pode interpretar ao mesmo tempo como política e, em outra medida, como de cinefilia.

Esta gravidade da proposta de Carpenter nunca é, felizmente, explicitada verbalmente no filme. Em total adequação com seu tema, Carpenter prefere mostrar, através de longas seqüências quase mudas, a extensão do mal ao criar um sentimento de inquietude e agonia constante, arte na qual ele se tornou mestre (assim como na utilização da trilha, tão opressora quanto possível). O resultado de “Eles Vivem” é deslumbrante, notadamente em seu controle do scope, formato ingrato que Carpenter emprega para isolar os personagens alienando-os no quadro, acentuando este efeito ao fimá-los em espaços fechados, com perspectivas de profundidade limitada (ruelas, corredores, becos).

Quanto ao aspecto “guéguerre” que alguns censuram no filme (a luta a mão armada entre os resistentes e os invasores), ele não faz com que Carpenter caia nas armadilhas do filme de gênero (filme de ação). Todas estas batalhas são dominadas por uma distância plástica que as transforma em verdadeiros ballets, ritmados por uma montagem, em certos instantes, digna do melhor cinema soviético: um insert, magnífico, dos canos das metralhadoras marca a maioria destas seqüências. A cena pivô do filme, uma briga de mais de dez minutos entre John Nada e seu colega Frank (que ele obriga a usar os famosos óculos) ilustra dois princípios hitchcock-hawksianos. O primeiro, hitchcockiano, é que tudo deve ser utilizado para as necessidades de uma cena (como o avião de “Intriga Internacional” que fumiga Cary Grant). O intérprete de Nada, Rodney Piper, é um ex-lutador: e nesta lógica ele deve, a um momento ou outro, brigar. O segundo, herdado das brigas iniciáticas dos filmes de Hawks ou Ford, é menos uma homenagem que uma necessidade: trata-se, para Frank, o negro, de sofrer a dor a fim de melhor ver. Diante da papa em que se tornou o cinema comercial americano, este mal é necessário: já o era para o herói de “Comando Assassino” de Romero, e também o é para aqueles de Carpenter. “Eles Vivem” soube reencontrar esta beleza e este discurso da produção B americana, que se podia dar por desaparecidos: isto é excepcional.

Nicolas Saada, Cahiers du Cinéma, abril de 1989. Tradução de José Roberto Rocha.

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