Um homem deixa entender que sofreu. Um cineasta diz que
ele testemunha por sua geração. Uma experiência luta para chegar à narrativa. Um
conto ainda está brilhante de ter passado por tanto gelo. É um filme? Se sim, L’enfant
secret assemelha-se bem àquilo que se passa hoje no cinema francês.
“Sofrimento”, “testemunha”, “experiência”, “Narrativa”. Palavras maus vistas,
maus ditas, envelhecidas e que fazem medo. Retomemos.
O homem sofreu, mas ele não se lamenta muito não ( é um
dandy). Sua geração? Perdida, é claro, aliás como a nossa. A experiência? Banal de
chorar. Um homem e uma homem com nomes bíblicos ( Elie e Jean-Baptiste),
interpretados por dois atores bressonianos ( Anne Wiazemssky e Henri de
Maublanc ), ou o encontro do eletrochoque e da overdose nos tetos de Paris. Entre
eles , o segredo mal guardado de uma criança, Swann. Swann o cisne, signo de vida, de sobrevida a dois, criança de crianças. Swann é um pouco de
película a tremular. E a narrativa? Como já não se fazem mais. Cada movimento
talhado com jaspe ou acariciado com um seixo em mãos , com um começo e um fim,
um antes e um depois. Retomemos, portanto.
O sofrimento é surdo, contido, nada orgulhoso. Ele não
dispõe nem de muitas palavras nem de muitas imagens. Ele está lá, isto é tudo. Lá
por onde devemos necessariamente passar. Em um gesto convulsivo, olhem Wiazemsky
na cena final, olhem suas mãos; ou, em uma voz muito branca, escutem o homem
falar de seu internamento psiquiátrico: a dor de se “juntar” entre duas
ausências a si-mesmo. Ela está na feiúra dos quartos de hotel, em uma Paris
friorenta, sobre um lenço ensangüentado, no sorriso de um que tarde a vir ou no
rictus de outro que passa por um sorriso. Do sofrimento não há nada a dizer. É
cada um por si e plano por plano. Para o espectador também( suponhamos aqui que
o espectador também havia sofrido).
O testemunho, podemos rir. À “geração perdida” podemos
dizer: uma a mais! Recentemente, nos perguntávamos qual tio Godard nos contaria
as mais belas histórias da geração que teve 2O anos em 68.( aquela de Garrel).
Era no momento de Morrer a vinte anos. Quem filmaria o
militantismo, a droga, a mendicância, as trips e os flips? Quem o teria feito
do interior? L’enfant secret não é Mãe e a puta, mas dez anos depois é do que
mais se aproxima dela. Em Eustache, falava-se até vomitar, julgava-se a todo
instante, morria-se de discurso , ou administrava-se uma zona de silêncio
mortal no coração de uma língua colocada para fora dela mesma. Em Garrel, é
semelhante, com a condição de ser inverso. Não se cala muito, todas as palavras
são desajeitadas, ninguém sabe julgar, faz-se vagamente parte de um mundo onde
todo mundo deve ser bom (há angelismo em Garrel, não é segredo para ninguém),
mas em alguma parte ou lugar , e jamais ali onde ele está. No seio da afasia,
Garrel maneja uma espécie de monólogos em branco. Olhem Elie e
Jean-Bapthiste”se parler” em um único movimento de câmara que os segue, aéreo.
---Tu a mangé aujourd’hui? ----Attends, laisse-moi te raconter le
film...
Agora, a experiência. A
experiência não é a comunicação fácil; é um péssimo condutor de “fenômenos de
sociedade”, mas esta deixa traços . Seria
preciso, pensa Garrel, que estes traços sejam os menos espetaculares possível.
Porque o espetáculo é o outro pólo da experiência , o pólo vendedor. Teria tudo
dado errado em França se tudo tivesse sido sacrificado ao espetáculo (ou mesmo,
como em Boisset, sua denunciação hipócrita), porque o cinema francês, frágil em
demasia no espetacular, é muito forte no experiencial, no existencial. É assim. Filmes
irresumíveis , telas tomadas por “folhas arrancadas”a livros de bordo e diários
íntimos, do negro e do branco e das vozes off, é isso o que rende o cinema
francês único: Um chant d’amour, Pickpocket, Testamento de Orfeu, Le petit
soldat, L’enfance nue, o Amour fou, todo Eustache,
todo Garrel, e agora Enfant secret.
A narrativa, para acabar. Ali
onde o filme toca na mais justa questão, o lugar deste balbucio severo à la
Paulhan. Pois o filme conta ao mesmo tempo em que não quer morrer ou então porque
já está morto ( esperemos pelo próximo Ruiz!) Contamos para nos curar. Dizer
“antes” e “depois”, esta coisa que tanto intrigava a Musil, é um signo de vida.
A filmografia de Garrel, às vezes, era como o deserto de Cicatriz interior,
plano como um encefalograma, com remontadas ao céu sulpiciennes e de olhares de
ícones-câmera. Neste sentido, L’enfant secret, tão vacilante pobre assim como é,
é desconcertante.
E porque se trata aqui de
questões de infância, eu pensava neste pequeno eslovaco do cinema moderno
porque, em quartoze anos, havia aprendido uma coisa: que é preciso semear
migalhas detrás de si, e que cada uma destas migalhas seja única. As “cenas” de
Enfant secret são longos inserts, saynètes (esboços) ou, como Jean Douchet tem
bem razão de dizer, são carícias. Às vezes áridas ( dir-se-ia então que se
trata de cinema de amador), às vezes suntuosas (lembremo-nos agora que Garrel
não ignora nada da beleza; que ele a mantém sentada, muito jovem, sobre seus
joelhos).
É como se este filme
autobiográfico tivesse conseguido não perder o Norte sem esquecer o traço de
cada etapa. Ataques de experiência sensorial pura ( tocar, ter fome), atos em
sua secura ( o eletrochoque), momentos serenos e furtivos. Gosto muito da cena
onde Jean Bapthiste , realmente sob os hábitos de um mendigo, acende a bituca
de cigarro que acabara de pegar sob o banco. Eu disse a mim mesmo que era como
se fosse Griffith ou Charlot que viessem por alguns instantes. Que Garrel havia
filmado esta coisa que jamais se viu: a cabeça dos atores dos filmes mudos nos
momentos em que é o noir do carton, com
suas pobres palavras de luz, que ocupa a tela.
18 de janeiro de 1983
Tradução: Luiz Soares Júnior
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