segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Sayat nova, por Serge Daney





Em 1924, quando nasce em Tbilissi ( Geórgia) de pais armênios, ele se chama Sarkis Paradjanian. Em 1965, sob o nome de Serge Paradjanov, torna-se célebre com um único filme, Cavalos de fogo. No 17 de dezembro de 1973, quando é preso por autoridades soviéticas, torna-se para todos o “caso Paradjanov”. Campo de reclusão severo (em Dniepropetrovski): sabemo-lo vulnerável, doente, ameaçado de cegueira, dizem-no suicidado, cremo-lo morto. No Ocidente, formam-se “comitês Paradjanov”. No limiar dos anos 80, acabamos por saber que foi libertado. Paradjanov é, para as autoridades de seu país, um ex-cineasta, status que o condena à semi-mendicância do “parasita social”. Pouco a pouco Paradjanov tornou-se ninguém. Um dos cineastas soviéticos mais dotados de sua geração ( aquela de Tarkovski e de Iosseliani) é aqui uma “causa nobre”, e lá embaixo um “ex-cineasta”. O esquecimento ameaça. Esquece-se que se trata também de um cineasta, autor mais que completo ( pintor, poeta, músico, metteur en scène) de seus filmes.
É, portanto, uma boa coisa que mesmo que 13 anos depois os Filmes Cosmos lancem o outro filme de Paradjanov, Sayat nova, a cor da romã, seu segundo e último longa metragem. Uma metragem cada vez menos longa, aliás, pois a versão mostrada em Paris não é aquela mostrada na URSS em 1969 ( e logo retirada de cartaz), mas a que foi remontada em 1971 pela testemunha-factótum do cinema soviético, Serge Youtkevitch. Resultado: vinte minutos de cortes.

Os crimes de Paradjanov? São inumeráveis. “Tráfico de ícones e de objetos de arte”, “tráfico de divisas”, “homossexualidade”, “propagação de doenças venéreas”, “incitação ao suicídio”. Não invento nada. Paradjanov ama as belas coisas, as obras de arte, é um expert: é um crime. Ele sabe dispô-las diante da câmera de maneira a que sua beleza se torne fulgurante: crime. Paradjanov é o menos “russo” dos cineastas: ele trabalhou longo tempo em Kiev sobre filmes em língua ucraniana e Sayat nova se situa na encruzilhada da história da Geórgia e da Armênia: crime. Seu cinema não tem nada a ver com a produção “folclórica” das províncias soviéticas, destinadas às feiras-festivais. É um cinema que ignora soberbamente ( é o caso de dizê-lo) o resto e a capital deste resto, Moscou e a arte pompier grande-russa: crime. O autor de Sayat nova é bem Paradjaniano.

Sayat nova faz parte desses filmes ( há cada vez menos) que não parecem com nada. Paradjanov é daqueles ( e desses se fazem cada vez mais raros) que fazem como se ninguém antes deles tivessem filmado. Feliz efeito de “primeira vez” no qual reconhecemos o grande cinema. Preciosa insolência. É por isto que, diante de Sayat nova, a primeira coisa a não se fazer é propor um modo de usar. É preciso deixá-lo agir, se deixar fazer, deixar desfazer-se nossa fome de compreender tudo logo ( tout de suite) , desencorajar a leitura decodificadora e os “restituir- no contexto” de toda espécie. Chegaríamos sempre tarde demais se interpretássemos o papel daqueles que conhecem tudo do século xviii armênio ou da arte dos “achough”, de simular uma profunda familiaridade com aquilo que ignoramos ainda há setenta e três minutos ( duração atual de Sayat nova). Há filmes que nos chegam com a chave nas mãos. Outros não. Então, é preciso se tornar seu próprio chaveiro. 

E começar por dizer: é um filme de poeta que, não menos do que a poesia, não tolera o resumo. É tomar ou largar. Tomemos duas “cenas” ( plano? quadro? imagem? ícone? Nenhuma palavra nos serve), a primeira e a última. Três romãs pousadas sobre um lençol branco e um líquido vermelho claro que, pouco a pouco, escorre. Na primeira versão ( nos dizem), a mancha tomava a forma da Armênia antiga e unificada: o sumo da romã se “tornava” um mapa de sangue. Um homem morre, estendido em uma igreja vazia. Sobre o solo, em torno dele, uma floresta de círios iluminados e, subitamente, propulsionado pelo fora de campo, uma chuva branca de galinhas decapitadas que, nos movimentos erráticos de sua agonia, derrubam e apagam os círios. Morte do poeta e fim do filme: nada mais ter para ver não é morrer?
Todo o mundo vai dizer: Sayat nova é uma floresta de símbolos, é bela mas não é para nós, que nos perdemos nela. E então? O que é  interessante no cinema não é jamais o símbolo, mas sua fabricação, o tornar-se-símbolo do menor objeto. Como se torna símbolo quando se é suco de romã ou galinha sem cabeça, lençol manchado e círio apagado? Ou vaso, tecido, tapete vermelho, cor, banho público, carneiro ou dança do ventre? E quanto tempo é necessário ao espectador para que desse símbolo ele goze? ( il jouisse).

Nada de mais estranho que o dispositivo de Sayat nova. Nada mais desorientador. Nesta linhagem de “ícones- sequências”, uma imagem não sucede à outra, mas a substitui. Nenhum movimento de câmera neste filme. Nenhum raccord entre as imagens. Seu único ponto em comum somos nós. Para usar uma metáfora do tênis, eu diria que ver Sayat nova é estar situado no fundo da “quadra” (court) de nosso campo visual, e daí arremessar cada imagem como uma bala. Uma depois da outra. A imagem se torna um fetiche (mais fetichista que Paradjanov, não, eu não conheço) e muito rapidamente temos a experiência do olhar bumerangue. Os “personagens” do filme dão a impressão de nos “servir” as imagens ( ainda o tênis), temendo vagamente a dupla infração. Com freqüência à distância, com uma lentidão insistente, belos e coloridos, eles nos olham fixamente, exibindo objetos-símbolos com gestos curtos e repetitivos, uma imperícia estroboscópica. Como se fizessem a demonstração de que a imagem onde figuram fosse justamente uma imagem animada. Questões vivas, charadas de carne, eis o que são. 

Os efeitos deste dispositivo são, a bel-prazer, estranhos, hipnóticos, cômicos entediantes, ou semelhantes. Um pouco de tudo isto. É como se o cinema acabasse de ser inventado e os atores, revestidos de seus mais belos paramentos, aprendessem a se mover neste elemento desconhecido que é o espaço fílmico: o campo da câmera. Avaros de gestos, mas não de olhares. Evidentemente, tudo isto vem de outro lugar e de muito longe: da arte dos ícones e de uma concepção religiosa onde a imagem deve ser ofertada. A Deus, ao espectador, a ambos. Curiosamente, Paradjanov, que havia reunido numerosos tesouros da arte armênia- ao ponto de fazer de Sayat nova um verdadeiro museu de celulóide- fez o contrário daquilo que fazem todos os novos ricos do mundo (aplicar um zoom-devorar): ele exibe estes tesouros em austeros planos fixos, ele os relega a seu destino de fetiches, que é o de brilhar à distância. 

É verdadeiramente uma pena que Paradjanov-Paradjanian não tenha continuado a fazer cinema, que o tenham a tal ponto desencorajado, maltratado, acoitado. Pois no filme deste “ex-cineasta” há alguma coisa que talvez só tenha existido no cinema soviético ( e que reencontramos hoje em um filme como Stalker): o imaginário material. A arte de se colocar o mais proximamente dos elementos, das matérias, das texturas, das cores. Há, por exemplo, uma presença particular da água em Sayat nova- que não é o negro charco estagnado de Stalker-, mas uma água doméstica, vermelha e clara, a água do tintureiro ou do estande do açougueiro, a água que escorre (o filme foi rodado mudo com lufadas de música e de efeitos sonoros muito amplificados).
Como esquecer da imagem em que vemos o menino Sayat nova, não maior que os livros gigantes e misteriosamente ensopados de água que secam sobre um teto, e  cujas páginas são revolvidas pelo vento?
Este imaginário material ( ligado, sem dúvida, a uma tradição religiosa e portado pelo dogma ortodoxo) é uma das vias que o cinema parece abandonar. O cinema não é mais tão diverso. O triunfo mundial do modelo tele-filme-à-americana deixou poucas chances a outros dispositivos de imagens e de sons. Os Americanos aprofundaram muito o estudo do movimento contínuo, da velocidade e da linha de fuga. De um movimento que esvazia a imagem de seu peso, de sua matéria. De um corpo em estado de radical leveza. Foi Kubrick quem melhor contou esta história. Ao passar pelo scanner da TV, o cinema perdeu uma camada de matéria ;  ele, digamos, se ri-polinizou (deu-se uma outra face, alterou sua imagem). Na Europa, nos URSS mesmo, ao risco de se marginalizar até a morte, outros se pagaram o luxo de interrogar o movimento sob outra face: lento e descontínuo. Paradjanov, Tarkovski (mas já Eisenstein, Dovjenko ou Barnet) contemplam a matéria se acumular e se congestionar; uma geologia de elementos, de detritos e de tesouros a se fazer lentamente. Eles fazem o cinema do sedimento ( glacis) soviético, este império imóvel. Quer este império o queira ou não.

É preciso de qualquer modo que eu diga duas palavras sobre a história de Sayat nova. Sayat nova , portanto, conta em alguns quadros edificantes a vida de um célebre poeta-trovador (“achough”) que justamente se chama Sayat nova Nós o vemos primeiro criança, depois jovem poeta na corte do rei da Georgia, e por fim monge em retiro em um convento. Ele morre quando do saque de Tiflis. Isto se passou em 1795.

29 janeiro de 1982, Cine diário

Tradução: Luiz Soares Júnior

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