Em 1924, quando nasce em Tbilissi ( Geórgia) de pais armênios, ele
se chama Sarkis Paradjanian. Em 1965, sob o nome de Serge Paradjanov, torna-se
célebre com um único filme, Cavalos de fogo. No 17 de dezembro de 1973, quando
é preso por autoridades soviéticas, torna-se para todos o “caso Paradjanov”.
Campo de reclusão severo (em Dniepropetrovski): sabemo-lo vulnerável, doente,
ameaçado de cegueira, dizem-no suicidado, cremo-lo morto. No Ocidente, formam-se
“comitês Paradjanov”. No limiar dos anos 80, acabamos por saber que foi
libertado. Paradjanov é, para as autoridades de seu país, um ex-cineasta,
status que o condena à semi-mendicância do “parasita social”. Pouco a pouco
Paradjanov tornou-se ninguém. Um dos cineastas soviéticos mais dotados de sua
geração ( aquela de Tarkovski e de Iosseliani) é aqui uma “causa nobre”, e lá
embaixo um “ex-cineasta”. O esquecimento ameaça. Esquece-se que se trata também
de um cineasta, autor mais que completo ( pintor, poeta, músico, metteur en
scène) de seus filmes.
É, portanto, uma boa coisa que mesmo que 13 anos depois os Filmes
Cosmos lancem o outro filme de Paradjanov, Sayat nova, a cor da romã, seu
segundo e último longa metragem. Uma metragem cada vez menos longa, aliás, pois
a versão mostrada em Paris não é aquela mostrada na URSS em 1969 ( e logo
retirada de cartaz), mas a que foi remontada em 1971 pela testemunha-factótum
do cinema soviético, Serge Youtkevitch. Resultado: vinte minutos de cortes.
Os crimes de Paradjanov? São inumeráveis. “Tráfico de ícones e de
objetos de arte”, “tráfico de divisas”, “homossexualidade”, “propagação de
doenças venéreas”, “incitação ao suicídio”. Não invento nada. Paradjanov ama as
belas coisas, as obras de arte, é um expert: é um crime. Ele sabe dispô-las
diante da câmera de maneira a que sua beleza se torne fulgurante: crime.
Paradjanov é o menos “russo” dos cineastas: ele trabalhou longo tempo em Kiev
sobre filmes em língua ucraniana e Sayat nova se situa na encruzilhada da história
da Geórgia e da Armênia: crime. Seu cinema não tem nada a ver com a produção
“folclórica” das províncias soviéticas, destinadas às feiras-festivais. É um
cinema que ignora soberbamente ( é o caso de dizê-lo) o resto e a capital deste
resto, Moscou e a arte pompier grande-russa: crime. O autor de Sayat nova é bem
Paradjaniano.
Sayat nova faz parte desses filmes ( há cada vez menos) que não
parecem com nada. Paradjanov é daqueles ( e desses se fazem cada vez mais
raros) que fazem como se ninguém antes deles tivessem filmado. Feliz efeito de
“primeira vez” no qual reconhecemos o grande cinema. Preciosa insolência. É por
isto que, diante de Sayat nova, a primeira coisa a não se fazer é propor um
modo de usar. É preciso deixá-lo agir, se deixar fazer, deixar desfazer-se
nossa fome de compreender tudo logo ( tout de suite) , desencorajar a leitura
decodificadora e os “restituir- no contexto” de toda espécie. Chegaríamos
sempre tarde demais se interpretássemos o papel daqueles que conhecem tudo do
século xviii armênio ou da arte dos “achough”, de simular uma profunda
familiaridade com aquilo que ignoramos ainda há setenta e três minutos (
duração atual de Sayat nova). Há filmes que nos chegam com a chave nas mãos.
Outros não. Então, é preciso se tornar seu próprio chaveiro.
E começar por dizer: é um filme de poeta que, não menos do que a
poesia, não tolera o resumo. É tomar ou largar. Tomemos duas “cenas” ( plano? quadro?
imagem? ícone? Nenhuma palavra nos serve), a primeira e a última. Três romãs
pousadas sobre um lençol branco e um líquido vermelho claro que, pouco a pouco,
escorre. Na primeira versão ( nos dizem), a mancha tomava a forma da Armênia
antiga e unificada: o sumo da romã se “tornava” um mapa de sangue. Um homem
morre, estendido em uma igreja vazia. Sobre o solo, em torno dele, uma floresta
de círios iluminados e, subitamente, propulsionado pelo fora de campo, uma
chuva branca de galinhas decapitadas que, nos movimentos erráticos de sua
agonia, derrubam e apagam os círios. Morte do poeta e fim do filme: nada mais
ter para ver não é morrer?
Todo o mundo vai dizer: Sayat nova é uma floresta de símbolos, é
bela mas não é para nós, que nos perdemos nela. E então? O que é interessante no cinema não é jamais o
símbolo, mas sua fabricação, o tornar-se-símbolo do menor objeto. Como se torna
símbolo quando se é suco de romã ou galinha sem cabeça, lençol manchado e círio
apagado? Ou vaso, tecido, tapete vermelho, cor, banho público, carneiro ou
dança do ventre? E quanto tempo é necessário ao espectador para que desse
símbolo ele goze? ( il jouisse).
Nada de mais estranho que o dispositivo de Sayat nova. Nada mais
desorientador. Nesta linhagem de “ícones- sequências”, uma imagem não sucede à
outra, mas a substitui. Nenhum movimento de câmera neste filme. Nenhum raccord
entre as imagens. Seu único ponto em comum somos nós. Para usar uma metáfora do tênis, eu diria que ver Sayat nova é estar situado no fundo da “quadra”
(court) de nosso campo visual, e daí arremessar cada imagem como uma bala. Uma
depois da outra. A imagem se torna um fetiche (mais fetichista que Paradjanov,
não, eu não conheço) e muito rapidamente temos a experiência do olhar
bumerangue. Os “personagens” do filme dão a impressão de nos “servir” as imagens
( ainda o tênis), temendo vagamente a dupla infração. Com freqüência à
distância, com uma lentidão insistente, belos e coloridos, eles nos olham
fixamente, exibindo objetos-símbolos com gestos curtos e repetitivos, uma
imperícia estroboscópica. Como se fizessem a demonstração de que a imagem onde
figuram fosse justamente uma imagem
animada. Questões vivas, charadas de carne, eis o que são.
Os efeitos deste dispositivo são, a bel-prazer, estranhos,
hipnóticos, cômicos entediantes, ou semelhantes. Um pouco de tudo isto. É como
se o cinema acabasse de ser inventado e os atores, revestidos de seus mais
belos paramentos, aprendessem a se mover neste elemento desconhecido que é o
espaço fílmico: o campo da câmera. Avaros de gestos, mas não de olhares. Evidentemente,
tudo isto vem de outro lugar e de muito longe: da arte dos ícones e de uma
concepção religiosa onde a imagem deve ser ofertada.
A Deus, ao espectador, a ambos. Curiosamente, Paradjanov, que havia reunido
numerosos tesouros da arte armênia- ao ponto de fazer de Sayat nova um
verdadeiro museu de celulóide- fez o contrário daquilo que fazem todos os novos
ricos do mundo (aplicar um zoom-devorar): ele exibe estes tesouros em austeros
planos fixos, ele os relega a seu destino de fetiches, que é o de brilhar à
distância.
É verdadeiramente uma pena que Paradjanov-Paradjanian não tenha
continuado a fazer cinema, que o tenham a tal ponto desencorajado, maltratado, acoitado.
Pois no filme deste “ex-cineasta” há alguma coisa que talvez só tenha existido
no cinema soviético ( e que reencontramos hoje em um filme como Stalker): o
imaginário material. A arte de se colocar o mais proximamente dos elementos,
das matérias, das texturas, das cores. Há, por exemplo, uma presença particular
da água em Sayat nova- que não é o negro charco estagnado de Stalker-, mas uma
água doméstica, vermelha e clara, a água do tintureiro ou do estande do
açougueiro, a água que escorre (o filme foi rodado mudo com lufadas de música e
de efeitos sonoros muito amplificados).
Como esquecer da imagem em que vemos o menino Sayat nova, não
maior que os livros gigantes e misteriosamente ensopados de água que secam
sobre um teto, e cujas páginas são
revolvidas pelo vento?
Este imaginário material ( ligado, sem dúvida, a uma tradição
religiosa e portado pelo dogma ortodoxo) é uma das vias que o cinema parece
abandonar. O cinema não é mais tão diverso. O triunfo mundial do modelo
tele-filme-à-americana deixou poucas chances a outros dispositivos de imagens e
de sons. Os Americanos aprofundaram muito o estudo do movimento contínuo, da
velocidade e da linha de fuga. De um movimento que esvazia a imagem de seu
peso, de sua matéria. De um corpo em estado de radical leveza. Foi Kubrick quem
melhor contou esta história. Ao passar pelo scanner da TV, o cinema perdeu uma
camada de matéria ; ele, digamos, se
ri-polinizou (deu-se uma outra face, alterou sua imagem). Na Europa, nos URSS
mesmo, ao risco de se marginalizar até a morte, outros se pagaram o luxo de
interrogar o movimento sob outra face: lento e descontínuo. Paradjanov,
Tarkovski (mas já Eisenstein, Dovjenko ou Barnet) contemplam a matéria se
acumular e se congestionar; uma geologia de elementos, de detritos e de
tesouros a se fazer lentamente. Eles fazem o cinema do sedimento ( glacis)
soviético, este império imóvel. Quer este império o queira ou não.
É preciso de qualquer modo que eu diga duas palavras sobre a
história de Sayat nova. Sayat nova , portanto, conta em alguns quadros
edificantes a vida de um célebre poeta-trovador (“achough”) que justamente se
chama Sayat nova Nós o vemos primeiro criança, depois jovem poeta na corte do
rei da Georgia, e por fim monge em retiro em um convento. Ele morre quando do
saque de Tiflis. Isto se passou em 1795.
29 janeiro de 1982, Cine diário
Tradução: Luiz Soares Júnior
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