quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Os dois rostos de Faces



1. Em torno do vazio.


O tema de Faces são os rostos, portanto a inquisição de uma câmera mais que atenta perscruta sem parar os menores declives. Rostos que se transformam em “caretas”( a palavra ‘faces’ em inglês tem os dois sentidos) , quando a mobilidade dos traços se fixa em expressão ridícula ou dolorosa. Dos personagens destes rostos não se sabe grande coisa, pois nada mais é interrogado senão aquilo que se pode ler justamente inscrito neles: excitação, desejo, fadiga. Não se trata de forma alguma aqui  de estados de alma intensos, nem de psicologia em filigrana ( desta razão advenha talvez que não se possa conceber o filme senão como 16mm inflado).
Daí venha também a impressão suscitada pelo filme de ser uma enquete meticulosa, e que no entanto não capta nada; que gera o aparecimento , em vários momentos súbitos, de efeitos violentos ( divórcio, suicídio), sem que de forma alguma a sutileza dispensada pelo filme permita que estes momentos sejam explicados. O escândalo é tal que o espectador tem a impressão de que faltam cenas, em particular a do suicídio- como? por que?
A nossos olhos, a beleza do filme de Cassavetes consiste em nos fazer sentir este mal do cinema- a impotência que lhe cabe de direito de explicar a interioridade, uma vez que não captura literalmente senão signos exteriores; esta incapacidade talvez não seja isenta de parentesco com os próprios males que se urdem secretamente na interioridade. Como se o próprio silêncio que lhe foi relegado por todo cinema honesto fosse o lugar propício de onde emana qualquer grito, silencioso pelo eco de seu próprio vazio.

Como os filmes de Godard, Straub, de Lefèbvre, Faces é um grande filme do vazio, dilacerante por ser ao mesmo tempo vertiginosamente exterior e bordejado pelos mais doentios domínios do “Dentro”. A saber, aqui o estado completamente “abandonado” ( paumé) do indivíduo americano. As diferentes vertigens, depressões, náuseas, delírios, preparatórios ou consecutivos à ebriedade que vemos no filme poderiam facilmente ser considerados como pudicas metáforas desta doença. Mas nada autoriza de forma literal semelhante generalização simbólica. Para nós, a grande beleza do filme vem antes de ter sabido servir-se dos efeitos do álcool- hipersensibilidade e hiperlucidez, enternecimentos e epifanias- a própria forma, titubeante e rigorosa, de sua poesia.

Sylvie Pierre, Cahiers du cinéma, número 205, outubro de 1968

Tradução: Luiz Soares Júnior


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