quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Francisca, por Serge Daney


" Estão ambos de pé, face a face.


Camilo - Não. Mas eu sei o que repudio. Tu não o podes saber.

José Augusto tremula, se põe a ir e vir convulsivamente no quarto; vai até a janela, torna à mesa a qual se agarra, volta-se e vai se colocar diante do amigo, cada vez mais encolerizado.

José Augusto- Serei eu por acaso um alucinado? Tu achas que eu não posso amar Fanny? Mas justamente, eu vou despertar nela um amor imenso; um amor que vou recusar, um amor excitado por minha própria severidade. (...) Ele estaca perto da mesa, e conclui diante da câmera: Engendrar um anjo na plenitude do martírio.

1. Quando estas frases terríveis são pronunciadas, estamos em Vilar do Paraíso, no quarto de Camilo, com este estrado azulado e esta secretária voltados para nós. Camilo escrevia e seu amigo José Augusto entrou pelo fundo do cenário. Estamos na trigésima sexta cena de Francisca, o último filme da trilogia consagrada por Manoel de Oliveira aos amores frustrados ( O Passado e o presente, Amor de perdição). Estamos no momento onde os personagens irão irremediavelmente comprometer seu destino, e Oliveira seu filme. A este programa frio (“Engendrar um anjo na plenitude do martírio"), Camilo só pode responder, perturbado: "Tu serás capaz? ".


Assistimos ao nascimento de uma paixão. Uma contagem regressiva começa com este desafio. Um desses desafios que se lança a seu melhor amigo, para pegá-lo de surpresa. Um desafio que só se lança a seu melhor amigo. Como se fosse preciso ser dois para amar uma mulher. Oliveira, mesmo que se trate do romantismo português, é um cineasta do romanesco. Ele sabe que se "um está sempre errado" e que "a verdade começa a dois", é preciso ser três para compartilhar um crime, para articular desejo e paixão.
Em Francisca, o desejo liga antes de tudo dois homens ( ele será recalcado) , e a paixão aprisiona um destes homens a uma mulher ( mas o movimento da paixão é infinito). Tudo separa os dois ( jovens) homens, e por isso mesmo sua fascinação é recíproca. O que pode ligar um jovem escritor pobre e um jovem aristocrata ocioso? O primeiro escreve para viver e se impor diante da nobre sociedade do Porto, sobre a qual já lança um olhar duro: ele a despreza ( mas a inveja), ela o despreza ( mas começa a reconhecê-lo, pois se trata de Camilo Castelo Branco, o futuro autor de Amor de perdição, já adaptado às telas por Oliveira.) O segundo, José Augusto, não possui desejo próprio: rico, não tem nada a ganhar, só pode perder. Camilo, de forma crua, lhe diz: "Tu amas por orgulho, tu amas o luxo de amar". Aos pobres o desejo, aos ricos a paixão. O desejo é produção, a paixão desperdício.


2. No começo desta paixão, há uma troca. Traduzamos: a rigor, José Augusto diz a seu amigo: esta mulher que não te ama ( subentendido: que não é para ti), mas cujo amor tu colocas em tão alta conta, eu vou me fazer amar por ela; mas não vou possuí-la; ela será infeliz, e desta forma eu vou te vingar. A ti por não tê-la possuído, a mim por só tê-la desejado através de ti. " Engendrar um anjo na plenitude do martírio" é uma fórmula abrupta, o programa mínimo que em nossas sociedades legitima toda aliança exclusivamente masculina. O recalque do desejo homossexual e o rebaixamento da mulher produzem a Mulher, ou seja, com frequência um anjo ( às vezes um anjo azul). Mas também imagens, stars, madonas como as que se produzem e se trocam tão facilmente entre os católicos ( ver sob a perspectiva de Buñuel).


Em seguida, há um acidente. A mulher não corresponde ao sinal. Há um erro de pessoa. Francisca, com seu ar doce, é tão cínica e amoral quanto José Augusto. Já de entrada, interrogada por Camilo, ela deixa escapar como que acidentalmente, e duas vezes: " A alma é um vício". Por seu turno, ao final da cena 36, José Augusto resume o assustador destino ao qual se vota: " Cinzas ao invés do desejo. A consciência ao invés da paixão". Determinação fria, sem objeto. O acidente é que José Augusto e Francisca são semelhantes, destinados a oscilar no mesmo sentido como pessoas postadas uma diante da outra, e cujas hesitações são sincrônicas. As armas de um podem ser usadas pelo outro, voltadas contra ele. Transforma-se sua infelicidade em prazer ( jouissance), sua renúncia em vitória: faz-se tudo para ter a última palavra. Assim, Francisca dispõe de uma arma secreta que lhe permite quebrar o duo romântico e restaurar o trio infernal: escreve ( a quem? pouco importa) que está sendo maltratada, desprezada, talvez espancada. Suas cartas acabam na mão deste outro escritor que é Camilo, que as remete a Augusto. O golpe é terrível: esta mulher que se deu a ler é pior do que se ela tivesse enganado seu ( futuro) marido. José Augusto, portanto, irá até o fim de seu roteiro: esposar esta mulher que ele seduziu e não tocá-la.


Enfim, há entre ambos um jogo combinado. Francisca reverteu o desafio de José Augusto no momento em que lhe gritou esta frase: "Tu me amas. Eu o juro". Frase espantosa. Para esta investida de um sobre o outro, a esta sequência de desafios, não há saída. Como no último filme de Truffaut ( A mulher do lado), mas sem os resquícios de fetichismo, a paixão é sem fim, inquebrantável. Só pode desaparecer com a desaparição dos corpos de que provém. E nem assim.


3. No desejo, o que é problemático, é que nunca sabemos exatamente o que o outro quer. É este não-saber que nos leva a desejar ainda mais. O que conta na paixão é o que o outro pode, aquilo de que ele/ela são capazes. Indiquei rapidamente ( mas o filme inteiro possui a concisão de um teorema) como Francisca partia dos estratagemas do desejo ( José Augusto deseja anular Camilo fazendo parecer que realiza seu desejo) para acabar do lado inevitável da paixão. Entre José Augusto e Francisca, um jogo infinito e sobretudo indeterminado, um "jogo sem qualidades", um "outro estado" , para falar como Musil. Pois no coração da paixão reside, como o seu motor vazio, uma fundamental incerteza. A incerteza não é o aleatório ( que foi a grande redescoberta do "cinema moderno"), nem também a ignorância ou a denegação ( de que os clássicos bem falaram). É ainda mais estranho.


Tomemos estes momentos onde certas frases do diálogo são repetidas. Tudo acontece como se o fato de uma frase ser pronunciada ( pelo ator) e em seguida ouvida ( pelo espectador) não lhe assegurasse uma existência certa. Como se fosse necessário arriscar através dos sons o que se ousou fazer antes com as imagens: o faux-raccord. Como se as palavras do diálogo fossem coisas de que fosse necessário demarcar o ponto de partida e um dos pontos de chegada. Desdobramento do diálogo. Jamais se levou tão longe a recusa do naturalismo e a necessidade de adotar em todas as coisas ( e as palavras são coisas) um ponto de vista, um ângulo.

Oliveira diz que só o interessa a representação. Ele o diz com tanto menor espírito de sistema quanto o fato de que em cinqüenta anos de cinema já experimentou de tudo: o documentário, a fábula naturalista, a comédia mundana, o cinema direto e a montagem. Em Francisca, liberto de toda necessidade de naturalismo, confrontado ao material integralmente artificial ( texto, cenário) que escolheu, ele projeta esta relação de incerteza por todo o filme. Ela não está apenas no coração da paixão que consome os personagens, mas no centro do que devemos chamar sem medo sua "estética". É necessário ter ainda menos medo na medida em que, em nossos dias, trata-se de algo cada vez mais raro.


4. Há em Oliveira ( como em Syberberg, Bene ou Ruiz, outros grandes barrocos) um esquecimento provisório de toda idéia de referente. Cada "figura" deve declinar sua identidade, mostrar seu modo de funcionamento, ser testada segundo sua duração, solidez, sua velocidade. Do que o outro é capaz? Mas também: do que tal ou tal figura representada é capaz? Personagens ou cenários, detalhes ou conjuntos, objetos ou corpos. Podemos ver Francisca como um filme muito engraçado ( como Méliès pode ser engraçado), sempre que uma figura "esquece" de se comportar segundo o código naturalista. Penso neste momento que nunca deixa de suscitar hilaridade , onde José Augusto entra a cavalo no quarto de Camilo. Um cavalo, ao invés de aportar seu freio nas margens do cenário, entra em cena e ainda por cima faz vacilar o espaço. Ou então é um personagem em primeiríssimo plano que, ao invés de pertencer à ação, se petrifica como uma cabeça de espectador incômodo, torna-se uma parte morta do quadro, uma zona de menos vitalidade na cena. Assim, José Augusto, ao fim de um jantar onde Camilo fora muito tagarela, e agora está cochilando no primeiro plano. Ou mesmo o primeiro plano do filme ( o baile). " Busco sempre recuperar uma linha que separa a máquina dos atores. Pois o trabalho para a máquina consiste em fixar o trabalho dos atores a partir da sala, da poltrona do espectador”, diz Oliveira. Enquanto ele não encontra esta linha, não se pode dizer o que está perto ou longe; o cavalo tem o direito de se aproximar e o dorminhoco se ausentar.

Oliveira é um imenso cenógrafo. Por não reduzir seu trabalho a “jogos de cena”. A escolha dos atores e dos rostos obedece a uma pesquisa ainda mais paradoxal que a de Bresson: ali onde este se interessa em eventuais “modelos”, Oliveira toma-os por paisagens. Os rostos, em Francisca, são montagens de objetos onde cada um obedece à sua própria lei e ignora os outros. Não é o caso em relação a Camilo ( dirão); mas é porque Camilo é um ser de desejo, e este desejo o torna “consistente”, idêntico a si mesmo, em todas as cenas. Em revanche, José Augusto e Francisca, seres de paixão e decompostos pela paixão, são submetidos a uma vertiginosa anamorfose.


5. Hoje em dia a velocidade- a dromoscopia- é uma questão muito importante. Questionamo-nos como se pôde falar tanto tempo dos filmes sem se interrogar sobre as velocidades comparadas dos corpos que estes põem em movimento. “ O cinema, diz ainda Oliveira, é o que colocamos diante da câmera”. Mas para fixar o que? As velocidades de composição e de decomposição, de evaporação ou de sedimentação. No mundo de Oliveira, o desejo compõe e a paixão decompõe: um olho pode ir mais o menos rápido que um olhar, uma boca e o que esta diz, Francisca tem uma maneira de “virar a cabeça” e José Augusto de “revirar os olhos” que é necessário analisar não apenas em termos de tipologia sociológica ( decadência da aristocracia), mas remeter à questão materialista por excelência: o que pode um corpo?


Dois dedos pousados sobre uma mesa, um chapéu jogado ao longe, domésticos ( sempre muito rápidos), cavaleiros lentos, cartas, amores possuem velocidades diferentes. Em Francisca, é muito raro que dois personagens sejam afetados por uma mesma velocidade. Ao contrário. Se abandonam uns aos outros muito rapidamente, se dizem precipitadamente uns aos outros coisas tão graves, se a narrativa do filme é lacunar a este ponto, é porque estão todos em órbita, como astros ou elétrons. Apenas se encontram em momentos precisos, calculáveis, é certo, mas com uma certa margem de incerteza, como dizia Heisenberg dos átomos. Átomos. A grande palavra foi jogada. Não vejo outro cineasta ( com exceção de Biette e seu “teatro das matérias”) que esteja próximo a este ponto do materialismo antigo. A força de Oliveira está em tratar arquétipos-tipos da religião ( “engendrar um anjo na plenitude do martírio”) com a ausência de pathos e a acuidade distanciada de um filósofo pagão. A paixão afeta os corpos por inteiro, e cada uma das partes destes corpos por inteiro, e cada uma das partes das partes por inteiro, etc Por inteiro e diferentemente. Não há fim para a incerteza ardente da paixão, sobretudo a morte não é um fim.


6. A mais bela cena do filme se situa perto do final. Francisca está morta, José Augusto a fez autopsiar, guardou seu coração num bocal e este bocal numa capela. O órgão vermelho apavora a empregada. Não se trata aí de um vão fetiche. A este coração-músculo, a este coração inteiramente material se coloca sempre a mesma questão: de que ele é capaz? O que pode este objeto encarquilhado? A resposta nos é dada pelo próprio José Augusto: “ Vivemos estilhaçados, em busca de nossos corpos dispersos por toda a terra. O ventre, que deseja esquecer o pecado, hurla; o fígado, que deseja se agarrar ao lado direito, geme; e o coração em mil pedaços penetra nas ruelas mais miseráveis, em busca do sangue que o vai formar”.


O que pode o cinema? Um velho homem, um dos grandes cineastas vivos, dá sua resposta. Ele nos diz talvez que o cinema é como este corpo. É preciso que ele se recomponha, órgão por órgão. Abaixo o story-board, abaixo o museu. Viva o cinema.”


Serge Daney, “ O que pode um coração?”, Cahiers du Cinéma número 330, dezembro de 1981.


Tradução: Luiz Soares Júnior.


5 comentários:

  1. Olá, Júnior, ando pensando numa conexão de comentários entre blogueiros que admiramos. Seria uma forma de incentivar o intercâmbio de idéias, favorecendo a blogsfera cinéfila. A cada post seu eu faria um comentário, e vice-versa. Sempre com sinceridade. O que acha? Vamos iniciar?
    Abraço bom,

    www.ofalcaomaltes.blogspot.com

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  2. Interessante, Antonio, trocas são o que fazem as coisas andarem. me aguarde hehe.

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  3. Júnior, sinceramente não consigo me encantar com o cinema de Oliveira. Bem que já tentei, mas realmente não me comove. Acho muito estático (e olha que amo Bresson) e teatral ( no mau sentido). de todos os que vi, só O Convento me pareceu interessante.
    Abraços

    www.ofalcaomaltes.blogspot.com

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  4. Muito saudável sempre a diferença, Antonio. não é um cinema fácil de gostar à primeira nem às vezes à última vista. acho que oliveira tá longe de ser unanimidade, mesmo entre cinéfilos experientes. é um cinema hierátrico, que reelabora o clasisicmso de forma radical, aprofundando certas coisas, forçando a nota, "chamando a atenção para": esse é o modernismo dele, feito de uma dialetização quase selvagem de certas coisas do clasiscismo, e até emsmo do cinema primitivo, como plan tableaux. antes de ter me tornado fã ( por insistência, devo dizer), eu admiro sua radicalidade, sua "coragem".

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  5. Obrigada por esta tradução, Luiz!!
    Cumprimentos.

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