segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A mulher do aviador, Eric Rohmer

De todos os filmes de Éric Rohmer, A mulher do aviador é aquele que melhor resiste à famosa "transparência". Ao fim da quase totalidade das intrigas dos Contos e provérbios e de alguns filmes isolados, um ciclo parece fechado, uma trajetória resolvida, um mistério resolvido. Ao menos o espectador aceita ( ou finge aceitar) crer nesta resolução, e a mise en scéne é organizada com vistas a este fim. As cenas finais de A mulher do aviador, no entanto, penetram muito mais profundamente na noite ( literalmente) que na clareza da evidência. Quando François descobre que Lucie tem um amante, que este é seu colega de trabalho ( visto no início do filme) e que o interesse que ela demonstrava por sua investigação poderia estar ligado ao acaso que o havia levado a encontrar o mesmo rapaz trabalhando na agência postal, ele se encontra mais perplexo que desapontado, até porque a conclusão de sua enquête destruíra todas as hipóteses construídas ao longo do filme, ao propor uma solução mais ou mesnos aleatória. Para que a loura que acompanhava Christian, o aviador, fosse sua irmã ( e não sua mulher, como François pensava), foi preciso que o casal se encaminhasse a um advogado, e que a loura desconhecida, que figura ao lado da verdadeira mulher do aviador na foto que lhe mostra sua amiga Anne- ex-amante de Christian- fosse realmente sua irmã, um conjunto de induções sem fundamento.
A maioria das narrativas dos Contos morais deixavam entrever as fraquezas dos personagens, assim como a cegueira que sofriam em relação a si mesmos, mas se redimiam- ao menos para eles- no último minuto, ao preço da pior má-fé, se convencendo, e tentando convencer ao espectador, que a situação à qual os personagens se resignam resulta de sua livre escolha. François tenta igualmente algo parecido, ao postar, apesar de tudo, a carta destinada a Lucie, o que o leva ele a deter a última palavra, ao colocar como real a "história" ( scénario, roteiro) que ele arranja. Se a mulher do aviador é de fato sua irmã, este agia bem sinceramente ao romper com Anne, que no entanto é livre para viver com ele. Mas Anne também vem explicar a François que ela não saberia viver com um homem e tentar ( em vão) fazer-lhe compreender que a tarde passada a seguir Christian e a mulher loura, e sobretudo a discutir sobre "o amor em geral" com sua "amantezinha", demonstra uma disponibilidade da parte de François que nega suas afirmações ( "Eu disse para mim mesma que, pelo contrário, só você me interessava").
Se o tema do desprezo é característico dos Contos morais, como de uma grande parte da Nouvelle vague, de Chabrol a Godard, o tema do equívoco ( la méprise: erro de julgamento, quiproquó) atravessa as situações das Comédias e provérbios, onde os personagens se equivocam tanto em relação a eles quanto ao mundo. Pois sua visão é não apenas necessariamente parcial, mas também sempre subjetiva. O espírito humano, "que não saberia não pensar em nada", como diz o provérbio com sentido desviado que abre o filme, não cessa de preencher os buracos. Nesta intriga policial enredada por um fio contínuo e com falsos culpados 1, os pobre Sherlock Holmes que são François e Lucie apelam mais para a imaginação que para o raciocínio. As sonolências de François, assim como a utilização do parque Buttes-Chaumont, caro aos surrealistas - e o título do livro de Aragon que o evoca, Le paysan de Paris , descreve com precisão François, o que nos confirma a canção final: "Paris ma englouti dans la fièvre de ses tourbillons, dans la frénésie de ses agitations"- dão à obra de Rohmer uma dimensão com frequência oculta sob a aparente lucidez do olhar: a do sonho. É sem ironia que o cineasta nomeou aquela que interpreta um pouco o papel da Tentadora dos Contos Morais de Lucie, a luz. Por seu senso crítico, seu espírito de dedução, sua constante atenção- é ela quem reencontra constantemente o casal que François não cessa de perder de vista, isto quando ele francamente não lhes dá as costas-, ela parece esclarecer um mistério na exata medida em que o obscurece ( ela também é "Lucifer").
A beleza de Mulher do aviador reside ainda na distância máxima que o cineasta estabelece entre o maior domínio possível da mise en scéne e a perda total de domínio ( maîtrise, controle, domínio) dos personagens sobre um espaço que lhes escapa, tal como o espaço labiríntico de Buttes-Chaumont. Tornando, depois da Marquesa de O, a uma filmagem com meios mais simples, Rohmer se permite a flexibilidade necessária para identificar um espaço fugidio 2 ( o que há de mais fugidio que a geometria artificial dos Buttes-Chaumont?), tão centrípeto quanto centrífugo, espaço do qual os seus personagens não terão nada além de uma vista parcial, centrada em seus pobres seres. O essencial permanece sempre fora do alcance, como o casal fotografado pela turista asiática. "Ela deve ter achado que eles não ficariam bem na foto 3", comenta Lucie. Última lição de moral cinematográfica que constitui este retorno aos princípios estéticos originários da Nouvelle vague.
Joël Magny
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. Em francês no original: fauxs coupables. Referência ao título em francês do filme de Hitchcock, The wrong man: Le faux-coupable.
2. fuyant: que nos escapa sempre, que se furta.
3. Lucie, que persegue com François o casal no parque, se deixa fotografar próxima a eles por uma turista para conseguir uma evidência do casal "adúltero". Mas a mulher exclui o casal da foto.

3 comentários: