quarta-feira, 3 de junho de 2009

Introdução a obra de Cecil B. DeMille

Se me pedissem para eleger o mais belo plano do cinema religioso, eu deixaria de lado Dreyer, Bresson e Rossellini, e proporia aquele que afeta o espectador com um insuportável encantamento:uma perna de mulher abandona a máscara luxuosa de um biombo e se estira como uma serpente, quando duas perfeitas mãos igualmente saem de seu refúgio para orná-la de seda; ou então o plano onde podemos contemplar uma outra mulher seminua se extasiar com a carícia dos fluxos de ouro e pedras preciosas que ela dissemina pelo seu corpo.

Estas imagens que tentei descrever não pertencem a Mizoguchi, mas figuram em dois filmes do único grande cineasta cristão, Cecil Blount Demille. Trata-se de The affaires of Anatol e de Sansão e Dalila que, com um hiato de trinta anos, impõem a retidão exemplar de uma arte sempre juvenil e madura , mas também de um espírito que jamais se curvou.

Cecil Demille é um cineasta bem-aventurado. Seus filmes foram oferecidos a multidões e exigiam dos homens o exercício de um coração singelo e reto e de um julgamento são: sabemos que DeMille não se decepcionou com o acolhimento esperado. E os raivosos ataques da inteligência nada puderam contra seu magnífico e insolente sucesso.Meu professor de Letras comentava ironicamente Os dez mandamentos,e dizia: “Fala-se ali como na Bíblia”...Concordo com ele em que os diálogos dos filmes de DeMille e o estilo de Roland Barthes não se assemelham. Mas por detrás do tom ressentido do professor se oculta uma ingênua verdade, digna de uma criança de Anderson: é exatamente à altura da Bíblia que respira a obra de DeMille, e sem querer meu professor lhe acordava um certificado de grandeza e beleza.
A obra religiosa de DeMille é encarnada, e por este motivo especificamente cinematográfica e cristã. Ele não asfixia os frêmitos da carne e as palpitações do coração, como Robert Bresson, não recorre abusivamente a símbolos, como Rossellini. Sua fé recolhe sua riqueza da vida, e seus filmes, cheios de carne, ouro e sangue, destilam os confrontos às vezes épicos entre as graças e as desgraças, sem intenção demonstrativa. Eu não sei se DeMille é um autor. Eu não lhe reconheço uma temática ou um universo interior. Os cristãos das catedrais talhavam na pedra sua fé, sem se inquietar com direitos autorais. A mise en scéne de DeMille é talhada vivazmente no real , e a unidade de sua obra é a única realmente digna de interesse, ou seja, uma implacável fidelidade às fontes das emoções, quando a vida de um homem ou de uma mulher se transfigura em felicidades e sofrimentos. Que não venham criticar os temas bíblicos de alguns de seus filmes. A reprovação é em si absurda. DeMille, o cristão DeMille, age neste caso com lealdade, e não vejo porque os intelectuais europeus lhe recusam o que concedem a Veronese ou Poussin. Mas deixemos os intelectuais opinando e busquemos adquirir a serenidade imperturbável do nosso metteur en scéne.
Cecil B. Demille não é um moderado. Os transbordamentos de luxo em Sansão e Dalila, as orgias terrificantes em Dynamite ou as crueldades em Godless girl irrompem glacialmente na tela do cinema. A fabulosa Duesenberg de Kay Johnson em Dynamite ou as jóias de Heddy Lamar em Sansão são o escrínio eterno do pecado. DeMille não profere nenhum anátema, e aos discursos ele prefere o espetáculo nu dos vícios e perdições, fulminados por uma mise en scéne severa e intransigente, garantida pela profunda inocência de seu autor.
Em Belluaires e Porchers, podemos ler a admirável resposta de Léon Bloy aos acusadores de Barbey d’Aurevilly. Ele escrevia: “Ele, melhor que qualquer outra coisa, vê a alma humana nas vilanias e convulsões de sua Queda. É um mestre imagista da Desobediência, e nos faz pensar nestes escultores desconhecidos da Idade Média , que inocentemente mencionavam todas os horrores dos réprobos sobre os muros de suas catedrais”. Eu fico tentado a me apropriar deste julgamento definitivo e a aplicá-lo a DeMille. Este, com efeito, pertence à raça chamejante dos grandes cristãos violentos e sexuados, dos grandes aristocratas da fé, belos contendores dos bem-pensantes e do bom senso. E Demille é forte o suficiente para não subtrair destas imagens o terrível aparato da sedução. O que fascina em Sansão e Dalila não é tanto Victor Mature quanto o esplendor arrogante de Heddy Lamar, e sobretudo este cúmulo de cinismo e indiferença , quando o palácio desaba quando o rei de Gaza ( Georges Sanders) soergue um brinde de adeus, o rosto iluminado pelo sorriso libertino.
Pois Cecil B. DeMille, metteur em scéne generoso, idolatra demais tudo o que vive e que sofre para odiar seus personagens, fossem embora os mais detestáveis do Velho Testamento1: DeMille não julga, mas mostra. E seu olhar alia a compaixão à lucidez. DeMille não é prisioneiro de nenhum sistema religioso ou estético. Em sua obra, a emoção é um maravilhoso instrumento de conhecimento, pois a emoção é livre e simples, não velada pelas possibilidades opressoras de uma ideologia ou formalismo. DeMille, cineasta cristão, é também um homem livre. Se sua fé não sofre nenhuma acomodação, sua liberdade de espírito jamais suportou compromissos. Seu tenaz individualismo leva, enfim, a dizer que este é um grande cineasta americano, aparentado aos maiores.
Em Dez mandamentos, um povo geme sob o chicote, crianças e velhos sucumbem sob o peso da pedra: a inocência torturada sugere a DeMille belas cenas, que contam entre as mais duras que se pôde ver no cinema (vejamos igualmente The sign of the cross). A este apaixonado pela liberdade afeta particularmente a infelicidade , e no entanto nenhuma complacência enternece estes grandiosos planos de escravidão e opressão,que compõem o inevitável corolário do pecado: a luz insana do enxofre que brilha ilumina ainda a soberba liturgia do Mal. Neste sentido, Godless girl oferece a mais assustadora visão das obras de Satã, onde crianças e adolescentes são entregues aos suplícios monstruosos organizados meticulosamente para eles numa casa de correção nos Estados Unidos. Este espetáculo infernal de jovens espancados ou jogados em uma pocilga horroriza e espanta ao mesmo tempo: Godless girl possui uma tal densidade de selvageria e brutalidade que apenas abordaram os grandes contendores do Mal. No entanto, gostaria de me abster de qualificar este filme de fantástico, pois esta lucidez trágica e intuição religiosa se confundem, de fato, com um realismo simples e terrível, despido de toda intenção polêmica ou demonstrativa. Apenas uma sociedade jovem e leal, a sociedade americana, pôde engendrar um cinema tão preciso, tão adequado e tão indomável. Eu não me prolongarei de forma abusiva sobre os infernos de DeMille, e aliás demonstrarei como o cavaleiro do Santo-Sepulcro conheceu, de forma diametralmente oposta, a visão do Éden, e que este grande poeta da infelicidade e da violência é antes de tudo o poeta da alegria e da doçura.

Cineasta americano, DeMille é em primeiro lugar pelo seu caráter religioso. Há em seus filmes uma vontade de simplicidade dramática e de clareza um tanto brutal que só surpreendem europeus absorvidos pelas delícias de Capoue, muito felizes de se ver justificados pelas maquinações eclesiásticas 2. Ora, o cinema americano, primeiro o de Ince e de Porter, depois o de Walsh e DeMille, era o fruto de uma civilização virgem, , onde não se via Igrejas a elevarem a Cruz nos altares, mas homens e mulheres purificados pelo exílio construírem, Bíblia na mão, uma nação. É preciso um esforço corajoso da imaginação para compartilhar a fé destes homens do Novo Mundo, pioneiros, escritores ou cineastas, que tomaram da Escritura o princípio exclusivo de seu pensamento e ação. A paixão européia pelos westerns se assemelha a uma confusa nostalgia por uma era quase mitológica, enquanto que estes americanos são contemporâneos das épocas que ilustram.
A biografia de DeMille escrita por Michel Mourlet é bem esclarecedora, pois se identifica exatamente à história do Cinema americano e que tem como medida a própria América: é a vida de um pioneiro e de um fundador, mas também a síntese e o símbolo de um grande sucesso coletivo. Paul Morand escreveu: “As estradas são a expressão da inteligência, da cultura e da liberdade de uma ação”. Transcrevi esta bela frase pois me permite introduzir um gosto original de DeMille, cuja importância não deixaremos de assinalar. Union Pacific, magnífico western, é também, se ouso falar assim, um grande filme de “amor ferroviário”. Construir rotas, estabelecer grandes vias de comunicação: ao contar a história de uma linha ferroviária, DeMille eleva sua arte ao coração da América juvenil e conquistadora. A energia maravilhosa deste filme extasiado e musculoso , onde o trilho e a locomotiva resplandecem de potência, glorifica o espírito de uma nação.
DeMille adora as viagens, os meios de locomoção e particularmente os caminhos de ferro, - pois estes caminhos de ferro, ainda mais que as estradas, estão à altura da nova coletividade, justificam a ambição e a consciência de uma civilização essencialmente voluntarista e confiante. Cecil DeMille é provavelmente “ o mais americano” dos grandes cineastas americanos. Que me compreendam bem: não penso que sua obra iguale a universalidade e a riqueza de Raoul Walsh. Mas se gerações futuras quisessem conservar um único testemunho da civilização americana, talvez devêssemos salvar Union Pacific. Em uma larga medida, DeMille fundou o cinema americano. Por isso ,a ninguém surpreenderá que seus heróis favoritos sejam “fundadores de impérios” e que estes, se não esmaecem sob a fachada da coletividade, tornam-se suas pedras de toque: o herói de Union Pacific não tem outro propósito senão servir.

Este sangue de grande raça faz florescer em força e brilho a obra inteira de DeMille; enfim, este talento perfeito que é ser Americano triunfa em uma obra-prima encantadora, The Greatest show on Earth. As crianças, que ainda não tiveram o gosto pela vida e a liberdade do amor seviciados pela escravidão universitária, foram os grandes cúmplices do sucesso mundial do filme. O circo! Quando a gigante tela se ergue, se infla, se desdobra e se estende soberbamente em torno dos mastros , quando o padre abençoa a locomotiva que conduzirá o circo através da América e as hastes se afogueiam sob a grandiosa respiração do vapor, o coração palpita como se assistisse ao nascimento de um mundo e uma arte conjugados. The Greatest show on Earth reúne as condições exemplares do desabrochamento de um gênio lúcido e totalmente sob domínio: cada plano faz ressoar a vida em plena luz, a narrativa e a viagem a conduzem sob o ritmo aleatório dos grandes expressos intercontinentais. Cendrars ficou maravilhado por este filme onde as paixões, as alegrias, as dores se engendram e se dispersam no entrelaçamento dos espetáculos do circo, onde sua intensidade varia segundo a dificuldade de um trapézio, o capricho de um elefante e o número de quiilômetros de um trilho. Sinto-me singularmente desamparado para apenas sugerir a prodigiosa vitalidade desta mise em scéne, sua complexidade e sutileza. A energia de que falava a respeito de Union Pacific se intensifica em The greatest , ela se dispersa por todos os lados, nas coxias, sobre a pista, entre os espectadores. Recebe sua apoteose ao fim do filme, depois do acidente de trem, quando DeMille mostra, em um extraordinário plano de conjunto, a cavalgada improvisada pelos sobreviventes conduzir para um “théatre de fortune” ( teatro de variedades em Paris) a multidão em delírio, e a maravilhosa Betty Hutton em cima de um elefante cantar ao amor, o amor do circo, o amor da vida.

Barrès deu a uma de suas heroínas o nome de “Nossa Senhora do vagão do Sleeping-car” ( Três estações de psicoterapia): o trem é talvez o objeto que mais fascinou alguns civilizados excitados pela modernidade (Cendrars, Morand, Honegger),e desde sua origem o cinema americano lhe consagrou as mais belas sequências: Edwin Porter: The great train robbery; Raoul Walsh: Colorado Territory, White heat; Fritz Lang: Human desire; enfim, Cecil B. DeMille. Como as princesas da corte de Louis XVI que se deixaram seduzir pelos balões de Montgolfier, estes príncipes do espírito não desdenham o prazer da velocidade e de uma cadência novas, a beleza do ferro e dos cavalos a vapor. Se DeMille ama a tal ponto os caminhos de ferro, é porque as virtudes de uma Crampton ou de um Pacific 23 são também as de sua mise em scéne: poderosa, rápida, nervosa, violenta, elíptica, sólida sob todas as dificuldades, mas monumental e ruidosa.Uma arte nova se inventa para trabalhar matérias e energias novas: a arte de Cecil B. DeMille é essencialmente moderna. Maurice Barres foi o primeiro a compreender que os sentimentos não vagabundeavam mais ao ritmo das diligências, que não se poderia mais escrever Adolphe ou Le Lys dans la valée, e que a língua francesa deveria buscar em si um novo classicismo, lição recebida por Paul Morand, Jean Cocteau, Roger Vailland ou Jacques Laurent.

Assim, os melhores planos dos filmes de DeMille fulminavam verdadeiramente pela surpresa da elipse, da violência e da singularidade do tema, a síntese e concisão da mise en scéne, a acuidade do enquadramento. Já aqui evoquei várias vezes, e não descreverei mais, o catálogo destes objetos preciosos que fazem a narrativa se romper como certos versos de Racine , e aos quais atribuiríamos as qualidades dos metais raros. Enumerarei três, cuja evidência súbita desempenha um papel audacioso. Dois primeiro em The greatest show on Earth: o primeiro em que Cornel Wilde cai do trapézio e se esmaga sobre a pista, projetado brutalmente até o solo por um movimento descendente de câmera, o segundo onde Charlton Heston , intrigado pela demissão de um sorridente Cornel Wilde que acabara de voltar do hospital, aparentemente restabelecido, arranca o impermeável que cobre seu braço esquerdo e descobre bruscamente um horrível coto de braço. Só os iguala em vigor este plano noturno em Union Pacific onde vemos, face à câmera fixada sobre um trem em marcha, um cavaleiro assomar neste trem e saltar sobre um vagão, enquanto o cavalo permanece no alto do trem!

Cecil B. DeMille, cineasta moderno. Fiquei bem tentado a escrever que este Americano, que este cristão era profundamente anti-moderno, à maneira de Raoul Walsh ou Allan Dwan, ou seja, da forma como entendia Péguy. Em conjunto com um sereno desejo de construir um Novo Mundo, DEMille herda da velha América e de Fenimore Cooper uma desconfiança da civilização urbana que se desvela nas deliciosas comédias satíricas do cinema mudo , dentre as quais a melhor permanece sendo The affairs of Anatol, crônica ácida e refinada da alta burguesia de Nova York. Mas DeMille é muito orgulhoso e reto para sustentar um paradoxo: de fato, quando digo que sua arte é essencialmente moderna, afirmo que DeMille praticou uma mise en scéne que elevava sua época, dando-lhe uma alma.

Paul Morand é sem dúvida o único escritor que soube nos falar de uma Bugatti ( Buda Vivo), mas o autor de Da Velocidade nos ensinou também o gosto pela lentidão, o charme de um grande rio preguiçoso, os prazeres eqüestres: Milady. Giraudoux não se enganou- estes loucos pelo volante são apaixonados por suas aldeias. A obra de DeMille converge para uma necessidade de equilíbrio, um desejo de calma e de repouso, uma luz mais doce e paisagens menos tormentosas. The squaw Man ( 1931), belo filme pudico, conta-nos a busca infeliz da felicidade conjugal. Um ternura infinita, um sorriso ferido não podem impedir a fulgurante destruição de uma paz íntima que DeMille descreve com um tato admirável. Esta obra-prima de emoção e de delicadeza atinge ápices de nobreza: quando a índia oferece a seu filho o cavalinho de pau que fez para ele e o pequeno o troca pelo trem mecânico que lhe deu o pai, a infeliz, imóvel, petrificada, olhos inundados de lágrimas, ressente de súbito a crueldade e o peso da infelicidade, o atroz estilhaçamento de uma felicidade perdida.

Os filmes de DeMille reservam, entre os gritos de danação, as lágrimas das vítimas ou os estrondos das máquinas, oásis agrestes de silêncio e de frescor onde parecem se realizar os idílios frágeis. Encontramos em Sansão e Dalila, Dez mandamentos e sobretudo em Godless girl estes radiosos instantes onde natureza, o herói e os sentimentos, purificados de toda impureza, se ordenam sob o milagre da candura divina: incursões fabulosas dos sonhos de um cristão que não se consola com a Queda.

Pradarias visitadas por santas, uma pequena camponesa tocada pela Graça, um pobre casebre da Lorena em que se reconhece Georges de La Tour: as aldeias secretas de Cecil B. DeMille assemelham-se ao Paraíso. Joan the Woman revela a intimidade absoluta do cineasta com seu sonho, na adoração cúmplice para com a jovem Santa do povo. A vida de Joanna D’arc suscitou muitos filmes, mas nenhum que seja animado de uma fé tão assegurada, de uma fidelidade e humildade tão exemplares. Esta santidade triunfal que ilumina as angélicas cenas da infância ou os êxtases sobrenaturais dos combates reconcilia na realidade das obras de Deus as duas aspirações de uma mise en scéne que aspira à serenidade e conduzida à ação.
Joan the woman: o classicismo de uma arte recém-nascida, plenitude espontânea de um olhar e de uma mise en scéne tão exatos que Louis Delluc podia ver na Joanna D’arc do Americano uma grande obra “francesa”.
Michel Marmin.

Notas:

1. Nos Dez mandamentos, aliás, Ramsés é um personagem bem mais comovente que Moisés, ,que é apenas um instrumento de Deus, e o combate desesperado que ele empreende pelo seu Criador lhe confere uma grandeza que situa o filme numa perspectiva essencialmente trágica.

2. Os Dez mandamentos, talvez o filme mais sóbrio na história do cinema, conduz a tragédia com um despojamento exemplar, recusando rigorosamente o que não lhe é essencial, - daí a pureza quase abstrata de seus cenários e figurinos, a condensação teatral da mise en scéne, a sobriedade hierática da direção de atores ( Charlton Heston e Yul Brynner igualmente admiráveis), características que nos remetem irresistivelmente a Poussin.

Tradução: Luiz Soares Júnior.

Revisão: Matheus Cartaxo.

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