sexta-feira, 27 de março de 2009

Du visage au cinéma, Prólogo

Foi há trinta anos atrás. A prosperidade crescia a olhos vistos, construíam-se auto- estradas. A França do crescimento industrial fazia o possível para esquecer. Esquecer Montoire e Auschwitz, esquecer Hiroshima, esquecer Dien-Bien-Phu, a Algéria. O estruturalismo começava a disputar as manchetes das revistas com a Nouvelle Vague. Era 1963, ou talvez em 1962, uma jovem chorava no cinema.
Neste mundo que queria esquecer a derrota, todas as derrotas, que se aturdia fascinado com o progresso infinito da vida material, o que poderia ainda provocar as lágrimas de uma jovem, um transbordar de lágrimas irreprimíveis, abandonadas, quase voluptuosas? Evidentemente, a contemplação de um rosto, nada mais. Um rosto em grande close, monstruosamente cortado de seu corpo, terrivelmente sofredor, torturado, isolado sobre um fundo branco que lhe acentuava o desespero. As lágrimas eram o signo visível de que alguma coisa se transmitia do sofrimento representado na tela àquela que o observava, que o atravessava: que a observadora havia se identificado ao sofrimento, que havia se tornado a sofredora.
O rosto da jovem em lágrimas também era um close de filme: Anna Karina, a Nana de Viver a vida, em contracampo de Falconetti, a Joanna D’arc de Dreyer. Depois de trinta e tantos anos, anos que viram tantas coisas se encenar na história do cinema e na história do mundo, um encontro permanecia eficazmente possível entre estes dois rostos de mulher, com a condição de que um pedaço de celulose os reunisse. A paixão de Jonna d’arc, apresentada então em uma versão degradada, com sonorização pesada, já era à época um eterno monumento. Hino à alma, à humanidade da alma humana, - apesar do kitsch sulpiciano de planos de vitrais, acrescidos ao filme por Lo Duca- , o filme parecia feito para tornar visível, de uma vez por todas, esta assustadora e essencial nudez da alma, do rosto da alma.
A alma tem um rosto? Sim, respondem os místicos, é o rosto do “homem interno”, que vive para além da morte. Seu rosto, sua face tornam-se então uma imagem, semelhante “à sua afecção dominante ou a seu Amor reinante”, de que o rosto só constitui a forma exterior:
“Todos, quaisquer que sejam, são reduzidos a este estado, de falar como pensam, e mostrar, através de seus rostos e seus gestos, a sua vontade. Daí resulta que as faces de todos os Espíritos tornam-se as formas e as efígies de suas afecções” ( Swedenborg, O Céu e as maravilhas do Inferno).
É um tal rosto, querido e posto como Absoluto, “com todos os pensamentos, as intenções, os prazeres e os temores que o haviam agitado” que oferecia Dreyer, realizando de uma forma quase ideal esta utópica perfeição do rosto humano, a transparência.É neste rosto absoluto que imergia Nana, e Godard, há trinta anos atrás, ainda acreditava que a alma pudesse falar à alma, até a dimensão física das lágrimas. No fim da primeira seção de Vivre sa vie, Nana e Paul disputam uma partida de fliperama. Paul ( André. S. Labarthe) comunica à Nana uma brincadeira de criança que ele acha muito divertida. Sua voz, de súbito muito próxima, abandona a ambiência do café onde se encontram, e ele recita: “A galinha é um animal que se compõe de exterior e interior. Se tiramos o exterior, resta o interior, e quando tiramos o interior, vemos a alma”. Um ano antes, Bruno Forestier, o “pequeno soldado”, anunciava à mesma Anna Karina ( ela se dizia chamar Veronika Dreyer então), no momento de fotografá-la:
“Quando fotografamos um rosto, fotografamos a alma que se encontra por detrás dele”.
Muito tempo se passou desde então, e não apenas sob a forma de uma leve suspeita. A alma pode realmente falar à alma, a humanidade de um rosto à humanidade de outro rosto? O cinema pode ainda crer neste encontro efusivo , mostrá-lo simplesmente, como se imediato e natural? Nada é menos certo: o potencial de humanidade, de alma não são mais no cinema um dado ( donné), e não apenas pelo fato da “alma” ter se tornado uma noção duvidosa. Na verdade, foi justamente no território onde ela possuía o valor mais eminente, no cinema de arte europeu, que a alma foi mais duramente posta à prova.
Alguns anos depois das lágrimas de Nana, um outro filme multiplicava os closes sobre um rosto de mulher à beira da crise. Mas nada era mais simples, imediato, nada mais “jorrava da fonte” ( ne coulait de source), nem mesmo as lágrimas. Esta mulher em crise não tinha mais diante de si a imagem mítica, sacralizada de uma Alma absoluta e santa- mas uma outra mulher, frágil e fraturada como ela, que ora lhe estendia um espelho acusador e desapiedado, ora ameaçava de tal forma o seu ser que chegava ao ponto de trocar com ela nomes e rostos, lhe disputava o espaço do plano. De qualquer forma, não era mais uma putinha ingênua e idealista, derretendo-se de simpatia ao impacto de uma grande dor, mas uma atriz célebre, à qual a dor do mundo havia imposto a afasia, sem que a ela fosse dada a chance de se reconhecer, e ainda menos esquecer.
O próprio título do filme, Persona, o dizia: era uma história de máscara, não se tratava mais de uma alma “por detrás de um corpo”, alma diante da qual a verdade estacaria.A “verdade” não passava de uma trama inapreensível, circulando de rosto em rosto sem jamais se fixar. Nos primeiros planos, víamos uma criança talvez morta tentar, de forma vã, ao tocar-lhes com os dedos, “dar uma alma” a rostos gigantes; nos últimos planos, a criança tateante ainda se encontrava lá, e os rostos não cessavam de lhe escapar definitivamente. O filme era a explicação desses rostos, mas o que ele explicava era apenas isso: um rosto é uma tela, uma superfície. Não há nada “por detrás”, e tudo o que nele se inscreve permanece-lhe alienígena – poderia da mesma forma se inscrever em outro lugar, sobre um outro rosto ( ou então os rostos podem se agregar, superpor, acoplar, como se fossem superfícies in-diferentes).
Neste curto espaço de tempo que separa os dois filmes, alguma coisa havia ( qual?) precipitado a situação de um estado a seu extremo oposto? E se Vivre sa vie é o “revelateur” que acrescenta a lupa de seus closes aos closes de Dreyer a fim de fazer ressurgir uma alma de suas bobinas, que filme hoje em dia nos permitiria elucidar as monstruosas “ampliações” bergmanianas?Seria preciso retornar ao cinema primitivo e suas “grosses têtes”?Ou ao contrário, procurar perto de nós, na ausência glacial de profundidade sob os rostos, que por vezes nos surpreende nos filmes, os últimos signos, enfim revelados, de um anti-humanismo que Bergman genialmente apenas pressentiu?
Este livro não constitui uma história do rosto, nem uma história das representações do rosto. Tomando o cinema por testemunha, ele visa a se interrogar sobre o papel ( suspeito) que artes eminentemente humanistas da representação desempenharam no sentimento atual de uma deserção (déreliction) da face e do humano. Em suma, ele tenta se questionar sobre como a representação afetou, no mais alto grau, o status de todos os seus objetos mais caros. Se houvesse uma tese a enunciar, seria a de que, de tanto nos deixarmos “dévisager” ( olhar longamente, escrutar, examinar), perdemos a face. Os cinco anos que separam o filme de Godard do de Bergman condensam esta perda, perda que é preciso agora desdobrar, dispor diante de nós, com o fito de compreendê-la um pouco. E com este objetivo, remontar bem antes de Godard, bem antes de Dreyer, à questão do rosto, questão humana eterna e essencialmente posta...
Jacques Aumont, Du visage au cinéma
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Noite dos mortos vivos, Romero 1968

No decorrer dos anos 60, dois cineastas totalmente independentes e à margem dos grandes estúdios foram particularmente inovadores. Herschell Gordon Lewiks, cujo Blood Feast, 1963, e 2000 maniacs, 1964, engendrarão a moda do “gore” ( fantástico sanguinolento radicalizado com uma complacência mesclada de humor até os extremos limites da repugnância) e Georges Romero, cujo Noite dos mortos vivos, variação contemporânea sobre o tema do zumbi, marca uma espécie de intrusão bem eficaz do realismo no fantástico mais horrífico. Quatro elementos principais darão ao filme sua força e originalidade: 1) a condensação da ação e da duração no seio de um crescendo dramático constante; 2) a intervenção permanente na intriga das mídias ( rádio, tv); 3) utilização conjunta da audácia visual ( ponto comum com Herschell Gordon) e da discrição nas cenas sanguinolentas; 4) recusa das convenções e clichês em uso no gênero.
Ao invés do happy end corrente, o filme acaba em um mal-entendido sangrento que radicaliza ainda mais, de um modo irônico,o horror de tudo o que já fora mostrado.Por estas diversas razões, o filme provocou em eu lançamento uma surpresa e mesmo certo escândalo, que acentuou seu sucesso. Em relação à audácia visual, ela está muito distante da complacência grand-guignolesque e guignolesque estrita dos filmes de H. Lewis. Ela é justificada pelo rigor da intriga e pelo ciclo infernal onde embarcam todos os personagens. Aliás, a influência exercida pelos dois cineastas não foi igual. A de Lewis, de qualquer forma irrecuperável no plano estético, foi muito maior, e suscitou por um longo período ( que dura até hoje) uma degenerescência do filme fantástico e de horror, ilustrada por exemplo por um filme como Massacre da serra elétrica, Tobe Hooper, 1974. ( A notar que esta degenerescência se dá paralelamente a uma revitalização do cinema de ficção científica, até meados dos anos 70).
Apesar de ter relançado o tema do zumbi, a lição realista de Romero ficou, por assim dizer, sem eco, e mesmo seus filmes seguintes não estiveram à altura deste rascunho de mestre, realizado com um orçamento irrisório.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

La fiamma che non si spegne, Cottafavi 1949

Baseado num fato real, ilustrado nas últimas sequências, este severo elogio das virtudes morais e do senso de sacrifício, reconduzidos de geração a geração, estava de tal forma na contracorrente da época ( estamos em pleno início do neo-realismo) que suscitou uma polêmica no Festival de Veneza de 1949. Crônica de ritmo fluido e cativante, Fiamma che non se spegne é iluminado, em seus momentos mais fortes, por um lirismo de caráter trágico: perseguição do carabineiro no início do filme por marginais, em um depósito de locomotivas; seu casamento precipitado e noturno, quando de uma folga no serviço; a cena onde sua esposa recebe a notícia de sua morte ( “ Nós não vemos de imediato seu rosto, escreve Mourlet, mas ela se volta para a câmera com lágrimas que nascem. E assistimos ao assalto lento e inelutável de uma alma pela dor, filmado face a face nesta câmara, nesta solidão absoluta, como se, ao penetrarmos aí por efração, contemplássemos com uma espécie de terror sagrado, aquilo que ninguém deveria contemplar”); e, claro, a execução final, a mais bela seqüência da obra de Cottafavi, a respeito da qual o realizador confessou que se deixou guiar, na direção da cena, por sua admiração pela música de Bach. Ao longo de todo filme, as cenas de ação e as cenas íntimas se encontram situadas em um mesmo plano de intensidade quase litúrgica, realização das pesquisas formais do cineasta. A liturgia suprime o Tempo, dirime a História; ela recoloca cada ação trágica em uma continuidade de ordem religiosa que é uma espécie de eternidade: a chama que não se extingue.
Assim, o retrato da execução de um soldado anônimo em uma guerra com milhões de mortos terá a mesma grandeza, merecerá tanto esmero em sua composição quanto o suicídio de Marco Antônio e Cleópatra. É porque ele visa, antes de tudo, à eternidade que o cinema de Cottafavi ignora -soberbamente- o neo-realismo.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Il cavaliere di Maison Rouge, Cottafavi

A carreira cinematográfica de Vittorio Cottafavi teve a duração de um raio e a forma do paradoxo. Cottafavi não gostava de gêneros- comerciais- onde teve de trabalhar. Longe de ridicularizá-los, pelo contrário ele tenta magnificá-los, à sua maneira, por um estilo de dignidade altaneira que não queria ter nada de popular. Il cavaliere é o exemplo mais bem realizado deste trabalho. O filme participa de quatro gêneros diferentes- capa e espada, melodrama, drama psicológico, tragédia histórica- e não pertence a nenhum em particular. ( Eles são citados na ordem crescente de interesse que parecem ter para Cottafavi). A maior originalidade do filme diz respeito à sua construção, e se refere ao entrelaçamento, em alguns conjurados ( ex: o casal A. Franciolini e Y. Lebon), de sua busca pela felicidade individual e de seus esforços impotentes a pôr um fim ao martírio histórico da rainha. A última meia hora do filme é, sem dúvida, o que Cottafavi realizou de mais convincente: é aí que os quatro gêneros se mesclam e se harmonizam da melhor maneira, que a velocidade da ação se acelera e que cada personagem, sofrendo o peso do destino que lhe cabe, se revela em sua identidade própria, sua grandeza e solidão. A liberdade não existe no universo fatal de Cottafavi. Mas estes personagens possuem sempre a escolha entre a elegância e a mediocridade, entre a bestialidade e uma forma de nobreza que os tornaria quase semelhantes a deuses.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Traviata 53, Cottafavi

Uma adaptação moderna da Dama das Camélias. Ao contrário de Riccardo Freda, Cottafavi sempre fez cinema comercial ( popular) contra sua vontade. Tão logo pôde, foi para a RAI e dirigiu trabalhos mais nobres ( adaptação de peças ou romances clássicos). Ele tenta aqui transformar um melodrama a seu ver muito canhestro em uma evocação raciniana da impossibilidade de amar e ser amado. Suas ambições com frequência o denunciam, e fazem dele uma espécie de “Antonioni do pobre”. Vide as cenas de party onde os personagens se entediam, e a descrição convencional dessas figuras deslocadas ( mal dans sa peau) e sem força de caráter, perdidas em seus problemas de comunicação e melancolia. A sensibilidade aristocrática de Cottafavi só consegue se exprimir plenamente na direção de atores- sobretudo de atrizes. Bárbara Laage, como uma falsa vagabunda que permanece ingênua e vulnerável, empresta densidade à sua personagem e nos faz ressentir intensamente seu desequilíbrio íntimo. Ela está constantemente dividida entre os élans espontâneos de ternura que desejaria reprimir e uma dureza calculista. Pouco a pouco submergida pelo amor, perde sua ambigüidade e se torna uma personagem transparente e trágica: uma vítima, destruída muito mais por sua melancolia que pelos acidentes materiais de sua vida movimentada. Com o auxílio de uma mise em scéne fundada sobre a interiorização e o silêncio, Cottafavi é vitorioso em sua alquimia, e metamorfoseia uma personagem de melodrama em uma heroína de tragédia. Mas isto a despeito do contexto social e realista do filme.

O mensageiro do diabo, Charles Laughton 1956

Este filme inclassificável, que foi um fracasso comercial e impediu Charles Laughton de continuar uma carreira de metteur em scéne, foi sempre muito apreciado por alguns cinéfilos. Tomando emprestado característica de diversos gêneros cinematográficos ( western, filme noir) , não se encaixa em nenhum mas , no plano literário, se inscreve nesta linha de contos negros, narrativas de aventuras mais ou menos fantásticas e “de pesadelo” , onde as crianças são ao mesmo tempo os heróis e as vítimas ( Moonfleet de Lang, adaptado do romance de John Meade Falkner, Tempestade na Jamaica de Mackendrick, adaptado de Richard Hughes, Our mother’s house, de Jack Clayton, adaptado de Julian Gloag, etc). Em sua autobiografia, Elsa Lanchester, esposa de Laughton, afirma que ele começou a escrever o roteiro com David Grubb, autor do romance original, depois encomendou uma adaptação a James Agee, que ele julgou muito longa e realista. Laughton a remodelou e encurtou, com o objetivo de que esta reencontrasse uma parte do onirismo e do insólito da obra original, que havia perdido ( James Agee morreu em 1955 com 45 anos e não pôde ver o filme terminado).
O relativo “desajeito” do filme no plano dramático reforça ainda mais sua estranheza. O desenvolvimento da história, articulada em três fases, onde se mesclam confusamente um ponto de vista objetivo do narrador e o ponto de vista subjetivo das crianças, conta muito menos no filme que a atmosfera e os personagens. Se é absurdo dizer, como foi feito, que Mitchum encontra aqui seu melhor papel e foi descoberto a partir deste filme (!), não há dúvida de que seu personagem é dotado de originalidade incomum. Ele possui muito de Barba Azul, de ogre e todos esses seres míticos que fascinam e aterrorizam a imaginação infantil. Alguns, sobretudo em razão da cena final da prisão, quiseram ver em Powell um substituto da figura paterna para as crianças. Embora aparentemente encorajada pela substância do filme, este tipo de exegese psicanalítica corre o risco da gratuidade e nos deixa insatisfeitos. É sobretudo plasticamente que o filme é surpreendente. Deve muito isso ao trabalho do operador Stanley Cortez. Os cenários de inspiração gótica e expressionista evocam também o universo escandinavo, o de Dreyer em particular. Os interiores ( recriados em estúdios) tem em comum uma compósita qualidade de irrealismo- ou de surrealismo- que dá ao filme sua bizarra coerência. Para além de toda racionalidade, a narrativa é pontuada de imagens e cenas inesquecíveis: o cadáver de Shelley Winters no fundo da água, o cântico que Lílian Gich canta, sentada na varanda, um fuzil pousado nos joelhos, e Mitchum que a persegue no jardim. Embora noir sob o ponto de vista plástico, o filme está longe de ser inteiramente pessimista. Uma parte importante de sua mensagem ( na última parte) visa a mostrar que a resistência natural das crianças e sua inocência podem acabar por vencer a loucura, a cupidez e o mal que são o quinhão de muitos adultos. Mas o que se tornarão elas quando crescerem?
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Laranja mecânica, Kubrick

Menos inovador que 2001, obra precedente de Kubrick, Laranja mecânica é o exemplo típico do filme que vem exatamente na hora que tem de vir, responde a uma expectativa do público, embora provocando nele um choque e uma surpresa, e assim o preenche totalmente. Em primeiro lugar, o filme é totalmente de sua época, tomando emprestado a uma variedade de gêneros literários e dramáticos ( conto filosófico, alegoria, filme de tese, teatro, sátira e humor noir), todos afetados por um importante coeficiente de fantástico e ficção científica. No fim dos anos 60, nenhum gênero cinematográfico possui mais um status dominante. No plano criativo, o fantástico ou a ficção científica suplantaram ou contaminaram, mais ou menos, a todos. É o caso aqui. O fantástico e a FC intervém no cadre cronológico da ação, linguagem dos personagens e no tipo de tratamento aplicado ao herói. Mas sobretudo eles dão uma dimensão apocalíptica à aventura.
Do ponto de vista temático e sociológico, o filme trata do problema número 1 da maioria das sociedades modernas ( presente em um grande número de filmes), ou seja, a violência. Mas Kubrick o estuda sob um ângulo original, comparando a violência do indivíduo à da sociedade. Kubrick inova também utilizando um estilo onde, paradoxalmente, o formalismo mais desenfreado reforça, no nível das emoções sentidas pelo espectador, o caráter cruel, bárbaro e insuportável desta violência. Quando se mostra mais brilhante, o estilo de Kubrick repousa, em efeito, sobre um equilíbrio extremamente eficaz entre a sofisticação e a brutalidade. O sentido da fábula de Laranja mecânica ( que deixa, como em toda fábula digna deste nome, uma parte não desprezível à reflexão e às hipóteses do espectador) é que a violência da sociedade é ainda mais nefasta e perigosa que a do indivíduo. Kubrick denuncia o absurdo de uma sociedade que buscaria estabelecer a ordem e a saúde através de indivíduos enfraquecidos e doentes ( pois é exatamente uma doença que é inoculada em Alex). Em um desenlace particularmente noir e corrosivo, Kubrick mostra que a sociedade, que talvez não tenha tido tanto sucesso como acreditara no tratamento imposto ao perverso, procura recuperar a violência de Alex e de seus companheiros.
Laranja mecânica representa o filme mais típico de seu autor, pela ambivalência clássica e barroca. Esta ambivalência aparece tanto no plano formal quanto moral e filosófico. Pela justeza, o bom senso ( e seríamos quase tentados a dizer pela banalidade) de suas vistas, pela claridade bem distanciada do que expõe, não deixando mesmo de recorrer a paralelismos teatrais ( encontros idênticos de Alex antes e depois de seu tratamento) e pela sã habilidade de uma retórica bem aplicada, Kubrick é um classicista. Por sua vontade de demonstração a qualquer preço, pela insistência com a qual ele tende a impor seus efeitos e convicções, e sobretudo por sua recusa do realismo, da precisão e do particularismo, recusa pela qual ele pensa atingir um público ilimitado, sob todas as altitudes, Kubrick é um barroco. Mas sua recusa do particularismo, e o fato, por exemplo, que a intriga se passe numa “terra de ninguém” ( no man’s land) vagamente anglo-saxônica e em cenários inspirados pelo filme noir e pela ópera, levam às vezes a uma certa confusão, sobretudo se o espectador busca colocar etiquetas políticas muito precisas sobre os personagens e o tipo de sociedade onde eles vivem. Este barroquismo “pela metade” assumido de Kubrick é sem dúvida também a parte mais frágil e mais vulnerável ao envelhecimento de sua obra.

Nota: Na retranscrição do filme com o auxílio de fotogramas publicada por Kubrick, ele não esconde seu ecletismo formal e mostra com clareza que faz uso de todos os meios ( il fait feu de tout bois), utilizando segundo a ocasião o estatismo da câmera, amplos movimentos de aparelho ou efeitos de câmera na mão, quando se trata de valorizar um cenário, uma situação ou o jogo de um ator. Ele comenta também seu interesse pelo romance de Burgess: O que me atraiu nele foi a narração, o personagem e as idéias”. Mas ele admite também “que o diálogo de Burgess no romance é quase perfeito” Sua principal modificação ao livro concerne ao desenlace: “Há duas versões do livro, mas eu só li a versão com o capítulo suplementar após meses de trabalho no roteiro. Eu estava estupefato, pois não tinha nada a ver com o estilo satírico do livro, e penso que foi o editor quem convenceu Burgess a terminar o livro com uma nota de esperança ou coisa assim. Honestamente, não podia crer no que tinha diante dos olhos, ao terminar o último capítulo. Alex sai da prisão e volta para casa. Um dos rapazes se casa, o outro desaparece, e no fim Alex toma a decisão de se tornar um adulto responsável”.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

2001, uma odisséia no espaço, Kubrick

Como disse Jacques Goimard: “2001 é o primeiro filme desde Intolerância que é ao mesmo tempo uma superprodução e um filme experimental”. Ao contrário de várias superproduções holywoodianas, este filme emana, no sentido e na forma, de um único homem, sem passar de mão em mão, apesar de possuir uma gênese longa ( 1964-1968), durante a qual o orçamento inicial cresceu de seis a dez milhões e meio de dólares.
A contribuição do roteirista e escritor de Ficção científica Arthur Clarke foi muito importante. No início de 1964, Kubrick propõe a Clarke escrever um roteiro com vistas a um filme de ficção científica , mas que primeiro teria a forma de um romance escrito a duas mãos. O ponto de partida do romance e do filme foram as novelas de Clarke “The sentinel” ( escrita em 1948) , “Encounter in the Dawn” ( 1950) e “Guardian Angel” ( 1950). O trabalho de escritura e preparação do filme duraram até 29-12-1965, data do primeiro dia de filmagem. A filmagem se estendeu por cerca de 7 meses ( nos estúdios Boreham Wood, na Inglaterra) , e a pós-produção ( mais de 200 planos do filme necessitaram de efeitos especiais) só chegou ao fim no começo de 68.
O trabalho e a inspiração de Kubrick visavam dois fins paralelos: realizar o filme de FC mais espetacular feito até ali ( com as maquetes, os efeitos especiais mais bem cuidados e sofisticados, graças ao talento de Douglas Trumbull) e destilar uma espécie de poema filosófico sobre o destino do Homem em sua relação com o Tempo, o progresso e o universo. Esta dupla ambição conduz a uma obra de construção muito original e arriscada, feita de quatro blocos relativamente autônomos, o que coloca também em relevo o virtuosismo de Kubrick e sua vontade de percorrer o campo quase completo do gênero ( como bem o coloca Bernard Eisenschitz em Cahiers du Cinema 209: “O domínio de Kubrick aparece na justaposição e combinação de quatro grandes motivos característicos: FC pré-histórica, antecipação a curto prazo, viagens interplanetárias, enfim grandes galáxias, mutantes no hiperespaço”).
Basicamente, 2001 é um filme de angústia- uma angústia difusa, glacial, cuja substância é , por assim dizer, consubstancial à existência do homem no universo. É a angústia- física e metafísica- do homem perdido nos espaços infinitos, mas também acossado, em todas as épocas, pela próxima etapa- inelutável- do progresso científico, que não deixará de ser para ele ainda mais destrutivo que construtivo.
Mas 2001 é também um filme de especulação: a influência dos extra-terrestres ( que se manifesta nos monólitos), a mutação final do herói engendrarão talvez uma forma de vida e de desenvolvimento menos decepcionante, menos imperfeita que aquela conhecida por nós. Sob esta perspectiva, o filme pode ser julgado otimista. Mas enquanto o pessimismo de Kubrick é ressentido como uma evidência durante a maior parte do filme ( onde mesmo a vida cotidiana dos personagens, tornados simples servos das máquinas e do cérebro que os comanda, engendra uma deprimente monotonia, semelhante ao “tédio mortal da imortalidade” de que fala Cocteau), seu otimismo permanece puramente especulativo e, enquanto tal, existe apenas como um imenso ponto de interrogação. Otimismo a bem dizer muito relativo, uma vez que tudo o que poderia advir de melhor para o homem viria “de fora”, e sem que este o tenha decidido. Kubrick parece mesmo emitir a hipótese de que toda evolução científica do homem pode ser determinada pela intervenção de extra-terrestres.
No plano formal, Kubrick alterna com uma maravilhosa plenitude o aspecto contemplativo ( evolução das naves no espaço) e o aspecto dramático ( vide o extraordinário duelo entre Keir Dullea e o computador Hal 9000, que não terá a última palavra). Ele irisa os vastos espaços de angústia disseminados pelo filme com estreitas zonas de humor. Humor ora relativamente secreto ( troca de banalidades entre os astronautas) , ora mais evidente ( utilização da música de Johann Strauss). Tudo o que se sabe a respeito da elaboração do filme, das hesitações e tateamentos de Kubrick mostra que ele desejou ir cada vez mais longe na direção do silêncio, da economia, do segredo e do mistério. Nesse sentido, ele suprimiu o comentário em off do início, reduziu ao mínimo o número de membros da equipe da Discovery, renunciou a mostrar os extra-terrestres. Esta direção foi muito benéfica para o filme. Estimulou, como nunca antes num filme com tal orçamento, a imaginação do espectador. ( E é significativo que a maioria dos comentários escritos sobre 2001, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, sejam no geral de um altíssimo nível). Ela teve igualmente por efeito dirimir no estilo a tendência de Kubrick a sublinhar pesadamente seus efeitos e suas intenções: de todos os seus filmes, 2001 é o mais sóbrio, mais completo e mais bem acabado. No que concerne à história da Ficção Científica cinematográfica, 2001, que criou em seu lançamento um choque cujo eco ainda hoje não se extinguiu, se situa na crista de uma década na qual o gênero deveria tornar-se enfim predominante, depois de ter sido considerado minoritário e marginal durante cinqüenta anos em Holywood.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

O gênio de Howard Hawks. Jacques Rivette, Cahiers du Cinéma 23 ( maio 1953)

A evidência na tela é a prova do gênio de Hawks: basta assistir a O Inventor da Mocidade para saber que é um filme brilhante. Alguns recusam-se a admiti-lo, no entanto; eles recusam a persuasão pelas evidências. Não pode haver outro motivo para que não o reconheçam.A obra de Hawks é igualmente dividida entre comédias e dramas – uma ambivalência notável. Ainda mais notável é a fusão desses elementos para que cada um, ao invés de danificar ao outro, sublinhe a reciprocidade: um afia o outro. A comédia jamais está ausente por muito tempo nos enredos mais dramáticos, e ela, longe de comprometer a sensação de tragédia, remove o fatalismo complacente para manter os eventos num equilíbrio perigoso, uma incerteza estimulante que colabora para a força do drama. O secretário de Scarface fala um inglês comicamente embolado, mas isso não o impede de ser baleado; nosso riso no decorrer de À Beira do Abismo é inseparável do receio do perigo; o clímax de Rio Vermelho, quando não estamos mais certos das nossos emoções, avaliando qual lado tomar e se devemos nos deleitar ou assustar, coloca nossos nervos em pânico e nos instala num estado tão atordoante e vertiginoso quanto o do equilibrista na corda-bamba cujo pé vacila sem escorregar, um sentimento tão inquietante quanto o término de um pesadelo.Enquanto a comédia confere à tragédia hawksiana sua efetividade, ela não consegue dissipar (não a tragédia; não vamos estragar nossos melhores argumentos ao ir longe demais) a forte impressão de uma existência em que nenhuma ação pode desatar-se da teia da responsabilidade. Poderíamos ser expostos a uma visão de vida mais amarga que essa? Tenho que confessar ser um tanto incapaz de aderir às risadas de uma sala lotada enquanto sou arrebitado pelas viravoltas da fábula (O Inventor da Mocidade) que retrata – alegre, lógica e impiedosamente – os decisivos estágios de degradação de uma inteligência superior.Não é um acaso que grupos semelhantes de intelectuais apareçam tanto em Bola de Fogo e O Monstro do Ártico. Hawks, porém, preocupa-se menos com a submissão do mundo à visão fria e enfadonha da mente científica que com o retrato das desgraças cômicas da inteligência. Hawks não está preocupado com a sátira ou a psicologia; para ele, as sociedades não significam mais que sentimentos; ao contrário de Capra ou McCarey, ele está exclusivamente interessado na aventura do intelecto. Se ele opõe o velho ao novo - o conhecimento humano acumulado do passado às formas degradadas da vida moderna (Bola de Fogo, A Canção Prometida), ou o homem à besta (Levada da Breca), ele se atém à mesma história – a intrusão do inumano, ou da manifestação mais crua de humanidade, na sociedade altamente civilizada. Em O Monstro do Ártico, a máscara finalmente cai: no confinado espaço do universo, alguns homens da ciência estão engalfinhados com uma criatura pior que o inumano, uma criatura do outro mundo; seus esforços pretendem enquadrá-la nos parâmetros lógicos do conhecimento humano.Mas, em O Inventor da Mocidade, o inimigo adentrou o próprio homem: o sutil veneno da fonte da juventude, a tentação do infantilismo. Esta sabemos há muito tempo ser uma das menos sutis astúcias do Mal – a um tempo na forma de cão de caça(hound), outrora na forma do macaco – quando enfrenta o homem de rara inteligência. E é a mais infeliz das ilusões que Hawks ataca com crueldade: a noção de que a adolescência e a infância são estados bárbaros dos quais somos resgatados pela educação. A criança é dificilmente distinguível do selvagem que a imita em suas brincadeiras: até o idoso mais distinto, depois de ingerir o precioso líquido, imita um chimpanzé com prazer. Pode-se encontrar nisso uma concepção clássica do homem, uma criatura cujo único trajeto para a grandeza reside na experiência e na maturidade; ao fim de seu percurso, sua avançada idade irá julgá-lo.Ainda pior que o infantilismo, degradação, ou decadência, no entanto, é a fascinação que essas tendências exercem na mesma inteligência que as percebe como más. O filme não é meramente uma história sobre essa fascinação; ele se coloca ao espectador como uma demonstração do poder da fascinação. Igualmente, qualquer um que critique essa tendência deve primeiramente submeter-se a ela.
Os macacos, os índios, o peixinho dourado não são mais que disfarce para a obsessão de Hawks com o primitivismo, que também ganha expressão nos selvagens ritmos da música tom-tom, na doce estupidez de Marilyn Monroe (o monstro de feminilidade que o figurinista quase deformou), ou no momento em que a envelhecida bacante Ginger Rogers retoma a adolescência e suas rugas esmaecem. A euforia instintiva das ações das personagens confere uma qualidade lírica para a feiúra e a asneira, uma densidade de expressão que eleva tudo à abstração: a fascinação por tudo isso confere beleza à respectiva metamorfose. Poder-se-ia aplicar a palavra “expressionista” para a maestria com que Cary Grant desdobra seus gestos em símbolos; olhando a cena em que ele se disfarça de índio, é impossível não se lembrar do famoso plano de O Anjo Azul em que Jannings olha o seu rosto distorcido. Não é de maneira alguma fácil comparar esses dois contos da ruína: recordamos como os temas de danação e maldição no cinema alemão impuseram a mesma variação rigorosa do agradável para o medonho.Do close-up do chimpanzé ao momento em que a fralda escorrega do Cary Grant bebê, a cabeça do espectador nada em constante turbilhão de imodéstia e impropriedade. E o que é essa sensação se não a mistura de medo, censura – e fascinação?
O encantamento pelo instintivo, a renúncia para as forças terrenas primitivas, a maldade, a feiúra, a estupidez – todos os atributos do Diabo são, nessas comédias em que a própria alma sofre a tentação da bestialidade, tortuosamente combinados com a lógica in extremis; o ponto mais afiado da inteligência é revertido contra si. A Noiva Era Ele toma como tema simplesmente a impossibilidade de encontrar um lugar para dormir e, em seguida, o prolonga até os extremos do aviltamento e da desmoralização.Hawks sabe melhor que qualquer outro que a arte deve ir aos extremos, mesmo os extremos da sordidez, porque essa é a fonte de comédia. Ele nunca teme usar bizarras guinadas narrativas, uma vez estabelecendo que elas são possíveis. Ele não tenta confundir as inclinações vulgares do espectador; ele as afirma ao levá-las um passo adiante. Isso é também o gênio de Molière: suas loucas relações lógicas são capazes de fazer o riso impregnar a garganta. É também o gênio de Murnau – a famosa cena com Dame Martha em seu excelente Tartufo e várias seqüências de A Última Gargalhada ainda são modelos de cinema molieresquiano.Hawks é o diretor da inteligência e da precisão, mas é também um maço de forças negras e fascinações estranhas; ele é um espírito teutônico, atraído por surtos de furor controlado que geram uma cadeia infinita de conseqüências. A existência de sua continuidade é a manifestação do Destino. Os heróis demonstram isso não tanto nos sentimentos, como nas ações, observadas por Hawks com meticulosidade e paixão. É as ações que ele filma, meditando sobre o poder autônomo da aparência. Não nos preocupamos com os pensamentos de John Wayne enquanto ele anda em direção a Montgomery Clift ao final de Rio Vermelho, ou nos pensamentos de Bogart enquanto ele bate em alguém: nossa atenção é direcionada unicamente para a precisão de cada passo – o exato ritmo do andar, de cada golpe - e o gradual colapso do corpo exaurido.
Mas ao mesmo tempo, Hawks exemplifica as mais altas qualidades do cinema americano: ele é o único diretor americano que sabe como delinear a moral. Sua maravilhosa fusão de ação e moralidade é provavelmente o segredo do gênio. Não é a idéia o que fascina em um filme de Hawks, mas a eficácia. A ação prende nossa atenção não tanto pela beleza intrínseca quanto por sua eficiência e pelos mecanismos internos que regem seu universo.Uma arte dessas exige uma honestidade básica, e o uso que Hawks faz do tempo e do espaço é testemunha disso – sem flashbacks, sem elipses; a regra é continuidade. Nenhum personagem desaparece sem que o sigamos, nada surpreende o herói se não nos surpreender ao mesmo tempo. Parece haver uma lei por trás da ação e edição de Hawks, uma lei biológica, porém, como a que regula a vida de qualquer ser vivo: cada cena tem uma beleza funcional, como um pescoço ou um tornozelo. A deslizante e regular sucessão de planos têm o ritmo da pulsação sangüínea e o filme todo é como um belíssimo corpo mantido vivo por uma respiração profunda e resiliente.Essa obsessão pela continuidade impõe aos filmes de Hawks a impressão de monotonia, do tipo geralmente associado à idéia de uma jornada a ser cumprida ou um curso a ser percorrido (Águias Amaricanas, Rio Vermelho), porque tudo é apreendido em conexão com todo o resto, tempo ao espaço e espaço ao tempo. Daí em filmes predominantemente cômicos (Uma Aventura na Martinica, À Beira do Abismo), os personagens são confinados em poucos cenários e se locomovem um tanto desgraçadamente dentro deles. Começamos a sentir a gravidade de cada movimento que fazem e somos incapazes de escapar à sua presença. Mas o drama hawksiano é sempre expresso em noções espaciais e as variações nos cenários são acompanhadas das variações temporais: seja no drama de Scarface, cujo reino encolhe da cidade que outrora governava para o quarto em que é finalmente enclausurado, ou o dos cientistas que não se atrevem a deixar a cabana por temerem a coisa (O Monstro do Ártico); dos pilotos de Paraíso Infernal, presos na sua estação pela névoa e conseguindo escapar para as montanhas de tempos em tempos, assim como Bogart (Uma Aventura na Martinica) escapa para o mar partindo do hotel que ele ronda impotentemente, entre o porão e seu quarto; mesmo quando esses temas são tornados burlescos em Bola de Fogo, com o gramático saindo de sua biblioteca hermética para encarar os perigos da cidade, ou em O Inventor da Mocidade, em que os passeios dos personagens indiciam a reversão para a infância (A Noiva Era Ele trabalha o motivo da jornada de outra forma), sempre os heróis caminham em direção ao seu destino.A monotonia é apenas uma fachada. Sob ela, sentimentos estão amadurecendo lentamente, evoluindo passo a passo rumo ao clímax violento. Hawks utiliza lassidão como dispositivo dramático – para transmitir a exasperação dos homens obrigados a se reter por duas horas, pacientemente contendo raiva, ódio, ou amor diante dos nossos olhos para repentinamente libertá-los, como baterias lentamente carregadas que eventualmente soltam uma faísca. A raiva dos personagens é elevada pelo habitual sangue-frio; a fachada calma é impregnada da emoção, com o oculto tremer de nervos e almas – até que o copo transborda. Um filme de Hawks freqüentemente possui a mesma sensação da agonizante espera da queda de uma gota d’água.
As comédias mostram outro lado desse princípio da monotonia. O andamento da ação é substituído pela repetição, como a retórica de Raymond Roussel substituindo a de Péguy; as mesmas ações, eternamente recorrendo, que Hawks desenvolve com a persistência de um maníaco e a paciência de um obcecado, repentinamente embaralham, como que à mercê de um capcioso redemoinho.Qual outro homem de gênio, ainda que estivesse mais obcecado pela continuidade, poderia ser mais apaixonadamente preocupado com as conseqüências das ações dos homens, ou da relação dessas ações uma com a outra? A maneira com que elas influenciam, repelem ou atraem uma à outra se torna um mundo unificado e coerente, um universo newtoniano cujos princípios governantes são a lei universal da gravidade e a profunda convicção da gravidade da existência. Ações humanas são medidas e pesadas por um diretor-mestre, preocupado com as responsabilidades do homem.A medida dos filmes de Hawks é a inteligência, mas a inteligência pragmática, aplicada diretamente para o mundo físico, uma inteligência que retira sua eficácia do ponto de vista exato de uma profissão ou de alguma forma de atividade humana atrelada ao mundo e ansiosa por conquista. Marlowe em À Beira do Abismo pratica a profissão assim como o cientista ou o aviador; e quando Bogart aluga seu barco em Uma Aventura na Martinica, ele mal olha para o mar: está mais interessado na beleza de seus passageiros que na beleza das ondas. Cada rio existe para ser cruzado, cada rebanho é feito para ser engordado e vendido pelo preço mais alto. E as mulheres, não obstante sedutoras, por mais que o herói se afeiçoe a elas, devem juntar-se a ele na luta.É impossível evocar adequadamente Uma Aventura na Martinica sem imediatamente lembrar a batalha com o peixe no começo do filme. O universo não pode ser conquistado sem a luta, e a luta é natural para os heróis hawksianos: briga corpo-a-corpo. Que entendimento mais próximo do outro poderíamos esperar, se não uma batalha vigorosa como essa? Assim, o amor existe mesmo onde há oposição perpétua; é um duelo amargo cujos perigos constantes são ignorados por homens intoxicados pela paixão (À Beira do Abismo, Rio Vermelho). Da competição surge a estima - essa palavra admirável englobando sabedoria, apreciação e simpatia: o oponente vira um parceiro. O herói sente repulsa se tiver que enfrentar um inimigo que se recusa a lutar; Marlowe, tomado por amargura súbita, precipita os eventos para apressar o clímax de seu caso. Maturidade é a marca da qualidade desses homens meditativos, heróis de um mundo adulto, quase sempre exclusivamente masculino, cuja tragédia está nos relacionamentos pessoais; comédia advém da intrusão e mescla de elementos alienígenas, ou objetos mecânicos que lhes tiram a livre iniciativa – aquela liberdade de decisão pela qual o homem pode expressar-se e afirmar sua existência, assim como um criador faz no ato de criação.
Não quero parecer estar elogiando Hawks por ele ser um “gênio alienado do seu tempo”, mas é a obviedade de sua modernidade que me impede de detratá-la. Prefiro, ao invés disso, apontar como, mesmo ocasionalmente levado ao ridículo ou ao absurdo, Hawks concentra-se primeiramente no cheiro e na sensação da realidade, conferindo-lhe uma pouco usual e profundamente oculta grandeza e nobreza; como Hawks dá à sensibilidade moderna a consciência clássica. O pai de Rio Vermelho e Paraíso Infernal não é outro senão Corneille; ambigüidade e complexidade são compatíveis apenas com os sentimentos mais nobres, que alguns ainda consideram “tediosos”, mesmo que não sejam esses sentimentos os primeiros a serem exauridos, mas antes a natureza bárbara e mutável das almas brutas – eis o motivo de romances modernos serem tão chatos.
Finalmente, como poderia omitir menção às maravilhosas cenas de abertura hawksianas em que o herói se estabelece firme e tranqüilamente? Sem preliminares, sem dispositivos expositores: uma porta abre e lá está ele em sua primeira tomada. A conversação avança e silenciosamente nos familiariza com seu ritmo pessoal; depois de esbarrar nele assim, não podemos deixar de ficar a seu lado. Somos seus companheiros ao longo da jornada enquanto ela se desenrola com tanta certeza e regularidade quanto a película que atravessa o projetor. O herói move-se com mesma leveza e constância do montanhista que inicia com passo firme e o mantém nas trilhas mais árduas, inclusive até o final da marcha mais longa do dia.Partindo desses primeiros indícios, não estamos apenas certos de que os heróis nunca nos abandonarão, mas também sabemos que eles se agarrarão às suas promessas para além de qualquer limite, e nunca hesitarão ou desistirão: ninguém consegue parar sua maravilhosa obstinação e tenacidade. Uma vez estabelecidos, eles irão até o esgotamento das forças, levarão as promessas que fizeram às conclusões lógicas, seja lá quais forem elas. O que é iniciado precisa ser encerrado. Não importa que os heróis sejam quase sempre empurrados contra seus desejos: ao se provarem a eles mesmos, ao atingir seus fins, eles vencem o direito de serem livres e a honra de se chamarem homens. Para eles, lógica não é uma fria atividade intelectual, mas a prova de que o corpo é um todo coerente, seguindo harmoniosamente as conseqüências, em ato de lealdade a si. O vigor da força de vontade dos heróis é a garantia da unidade entre homem e espírito em nome daquilo que, duplamente, justifica a existência e lhe confere seu sentido mais elevado.Se é verdade que somos fascinados por extremos, por tudo que é ousado e excessivo, e que achamos grandeza na falta de moderação – então é dedutível que deveríamos nos intrigar com o choque dos extremos, porque estes agregam a precisão intelectual das abstrações e a magia elementar dos grandes impulsos mundanos, conectando tempestades com equações em afirmação da vida. A beleza do filme de Hawks advém desse tipo de afirmação, persistente e serena, sem remorsos e sobressaltos. É uma beleza que manifesta a existência pelo respirar e o movimento pelo andar. O que é, é. (That which is, is).
Tradução de francês para inglês por Russel Campbell e Marvin Pister, adaptado da tradução de Adrian Brine. Tradução de inglês para português de Nikola Matevski.

Il cavaliere misterioso, Freda 1948

Depois de Don César de Bazan e o primeiro Áquila nera, duas obras que restituíam ao filme de aventuras italiano seu vigor, seu picaresco, seu dinamismo originais, em oposição ao caligrafismo mórbido do período fascista, Freda assina este Cavaleiro misterioso, uma narrativa de tom muito mais pessoal e uma de suas obras-primas. Seu virtuosismo o leva a incluir um retrato original de Casanova ( Gassman aqui no início de carreira- é seu sétimo filme- é o mais verossímil e “raçudo” de todos os Casanovas da tela) em uma narrativa de aventuras polivalente que possui, ao longo das sequências, a progressão enigmática e obscura de um récit policial ou a atmosfera insólita e angustiante de um conto quase fantástico ( as cenas em Viena). Sem, evidentemente, esquecer este clima de intriga e de “marivaudage” ( de Marivaux, escritor francês do século XVIII) glacial, através dos quais Freda nos dá sua visão do século XVIII. Ele coloca aqui com brio o seu universo pessoal: um mundo de perfídia, de cálculo e crueldade, onde a sinceridade é sempre perdedora, iluminado por uma elegante luz crepuscular. Como sempre em Freda, o aspecto plástico do filme ( cenário, figurino, fotografia) é extremamente cuidado, mas de forma alguma cultivado por ele mesmo.Ele se encontra sempre maravilhosamente situado em uma concepção ultra-dinâmica da narrativa cinematográfica. Neste sentido, as seqüências finais da perseguição de trenós, que utilizam todas as variações do branco, são exemplares. Possuem um belo fôlego rítmico e destilam, mesclada à suntuosidade visual, uma nota de desencantamento e de amargura características do autor.

Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

La leggenda del Piave, Freda 1952


Longe do neo-realismo, Freda assina com La leggenda del Piave um filme formalmente riquíssimo que toma elementos emprestados do melodrama, do filme de aventuras, do afresco histórico. A matéria do filme repousa sobre contrastes violentos: heroísmo e covardia ( vistos aqui no interior de um mesmo personagem, portanto fora de todo maniqueísmo) , doçura e brutalidade, exaltação e desânimo, vitória e derrota. Ela se sustenta também na exaltação sistemática dos sentimentos fortes, que buscam a retomada das fontes de toda aventura e de toda História. O filme acolhe o realismo, mas com a condição de que este possua uma dimensão épica, que ultrapasse a anedota e a simples verdade do momento.Trata-se, para Freda, de reencontrar na história particular de um lugar e de uma época o que ela pode ter em comum, em seu registro do grandioso, do heróico e do passional, com outros lugares e épocas. Freda é, com efeito, animado pela visão de uma espécie de eternidade da História, que se poderia também chamar de poesia. Sua mise em scéne é particularmente forte nas cenas de ação e movimento, acolhendo o espaço onde se esvai uma multidão desvairada e indivíduos tomados por sentimentos extremos. O découpage, vívido e variado, utiliza toda a gama de planos. O filme tem também a originalidade de manter na narrativa, com igual nível de interesse, um ponto de vista masculino e feminino ( dualidade que se encontrava já no Passaporte rosso, de Guido Bignone). Esta originalidade implica aqui uma fusão insólita e interessante entre o melodrama e o filme de guerra.

Nota: Como sempre em Freda, a filmagem foi muito rápida, sobretudo em se tratando de um filme com muitos figurantes ( 4 semanas, nos arredores de Roma).
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Beatrice Cenci, Freda

Primeiro Cinemascope de Freda. Na tela larga, com um orçamento médio ao qual ele sabe emprestar a aparência da magnificência, Freda celebra em imagens suntuosas as núpcias do melodrama e da História. O que a História perde em veracidade, o melodrama conquista em caráter febril, lirismo, intensidade na pintura de um passado revivido no presente. Beatrice é metamorfoseada aqui em sublime heroína de melodrama, e a continuidade da narrativa oferece, à maneira da ópera, uma justaposição lírica e plástica de momentos fortes delineados sobre a trama de seu destino inexoravelmente trágico. No entanto, o dinamismo e a capacidade de aliciamento da mise em scéne de Freda são tais que o espectador, perto do fim, põe-se a imaginar que esta história foi inventada, que ela se recria à medida em que é contada e que Beatrice, por obra de intercessão de algum milagre, poderia escapar à sua sorte trágica. A originalidade do estilo de Freda- uma permanente e viva contestação do academicismo- repousa sobre uma igual atenção dispensada ao dinamismo do conjunto da narrativa e à composição plástica de cada cena. Esta síntese da dinâmica e da plástica, sempre muito natural em Freda, e que nos faz “passar por cima” de algumas imperfeições no roteiro e na direção de atores, encontra neste filme uma de suas melhores aplicações. Outras versões dirigidas por Mario Caserini ( 1908) e Guido Brignone ( 1941).
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Dillinger está morto, Ferreri

Descrição experimental e quase muda da angústia da alienação do homem contemporâneo, perdido em seus objetos, seu conforto, nos sons e nas imagens difundidos ao longo do dia pela televisão. O filme pode ser visto como um sonho ou uma metáfora da insônia, aspiração para o Nada do sono ou da morte. Sua duração é sufocante e castradora, seqüência de gestos privados do devir e de finalidade, filmados em longos planos sequências voluntariamente desprovidos de dinamismo interno. Na vacuidade desta durée, o assassinato da esposa representa para o personagem o gesto mais gratuito e o mais significativo que este poderia cometer. A visão deste filme e a visão do mundo que se exprime nele parecerão a muitos uma mauvaise farse ( ( uma farsa de mau-gosto). É isto o que Ferreri deseja. No interior da obra desesperada, iconoclasta, teratológica de Ferreri, Dillinger está morto é uma espécie de ápice, uma anti-fábula, um anti-drama, algo como um longo interlúdio de televisão que podemos assistir comendo ou pensando em outra coisa. Uma expressão limite da fascinação do vazio.

Nota: Ferreri , 16 anos mais tarde, vai construir o desenlace de I love you utilizando os planos do final de Dillinger.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.