quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

No future. Fuga de Los Angeles

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Escape from Los Angeles pertence à veia mais iconoclasta do cinema de Carpenter e marca seu retorno a uma forma voluntariamente mais rica, depois do rigor classicista de Village of the damned. Esta continuação do seu Escape from New York ( 1980) toma algumas distâncias em relação ao original: para utilizar a analogia de Bill Krohn sobre Scorsese, Escape from L. A. é para Escape from New York o que El Dorado é para Rio Bravo. Onde a Manhattan de New York 1997 representava uma figura alegórica, , a Los Angeles de 2013 imaginada por Carpenter se distancia pouco da realidade. Como diz Snake Plissken, o herói do filme, “the future is now”: o futuro é agora.

Snake Plissken ( Kurt Russel), sobrevivente de Escape from New York, é chamado a cumprir uma missão quase similar à precedente. Este processo de retomada, de repetição, inerente a todo filme seqüência, torna-se para Caepenter uma metáfora de sua própria situação de cineasta a quem se encomenda repetir seu grande sucesso. Escape from Los Angeles retoma a estrutura de New York 1997, a da aventura picaresca, pontuada de etapas e encontros: ocasião para Carpenter de zombar dos clichês do modo de vida californiano, do culto ao corpo ao surf. Sucedem-se assim uma série de episódios irresistíveis, que conduzem Snake pelos quatro cantos da cidade: um centro cirúgico estético povoado de zumbis, uma Disneyland transformada em campo de batalha.

A América mudou, portanto e, em 2013, mostra-se mais moralista e puritana que nunca. Escape from los Angeles visa à ditadura do “politicamente correto”, a fim de imaginar os seus efeitos desastrosos sobre a sociedade americana. A personagem de Snake torna-se então mais que um herói de filme de ação; ele é o porta-voz de um discurso virulento, niilista que é o de Carpenter diretor: não se trata aqui de se conformar às regras arbitrárias que poderiam lhe ser impostas pelo projeto do filme.

O filme pode também ser visto como um anti-Independence Day, uma vez que o medo do Outro não é simbolizado por extraterrestes maléficos, mas por uma oposição flagrante entre terceiro mundo e capitalismo. A América transformou los Angeles em centro de deportação que as nações mais desmunidas utilizam para preparar a invasão do país, graças à ajuda da filha do presidente, que se juntou aos rebeldes. Em uma das mais belas seqüências do filme, os líderes da missão suicida de Plissken projetam-lhe uma gravação em três dimensões da fuga da jovem: Snake é quase um prisioneiro da imagem, assim como já aprisionado em uma ficção à qual ele está longe de desconhecer ( être le dupe).

Snake Plissken está em um “entre-deux” ( entre duas dimensões, dois mundos, no meio de), tão desgostoso da hipocrisia dos políticos conservadores quanto do oportunismo de ditadores de pacotilha. O que poderia se mostrar como uma contradição ideológica de Carpenter , ao invés disso deve ser interpretado como uma espécie de manifesto político impossível, aquele de uma sociedade ideal onde todos os indivíduos poderiam coabitar , para além das ideologias: não é por acaso que o personagem mais positivo do filme, a filha do presidente, se chama Utopia. Cineasta hawksiano ( mais pela aproximação dos temas que pelo estilo), Carpenter presta talvez homenagem aqui à poderosa mensagem de Hawks em The big sky, filme onde os indivíduos se revelam mais fortes que os modelos de sociedade de onde vieram. Em seu caminho, Plissken faz aliança com os excluídos, ladrões, vigaristas, traficantes de todos os gêneros, até um transexual especialista em guerrilha urbana. Carpenter toma deliberadamente o partido destes “perdedores”, estes losers, no fundo mais envolventes que o presidente e seus conselheiros, situados em uma base militar.
Carpenter faz prova aqui de um humor negro já presente em In the Mouth of Madness ( À beira da loucura, 1995), e opta por um estilo por instantes exuberante, em total adequação com a virulência de suas intenções. Escape nos mostra um universo caótico, quase carnavalesco, nas antípodas do bom gosto e do aspecto excessivamente “suave”( lisse) das novas tecnologias do cinema de ficção científica. Los Angeles é descrita como uma espécie de corte dos milagres, anunciadora de uma nova Idade Média , prestes a se abater sobre o planeta.
Escape aliás pode ser visto como uma versão moderna da Ópera dos três vintéms, com seu desfile variado de personagens ricos em cores, interpretados por atores magníficos ( Kurt Russel, Valeria Golino, Cliff Robertson, Stacy Keach e Steve Buscemi). Sem dúvida, uma das grandes forças do filme é nos tornar quase familiar esta visão de Apocalipse, como se este já estivesse às nossas portas; basta ver o admirável prólogo, que mostra a destruição de Los Angeles por um tremor de terra titânico. Os planos são filmados como arquivos, reforçados por uma voz-off feminina, quase neutra, que descreve o fim de um mundo. Carpenter consegue criar um sentimento de conivência entre o espectador e este imaginário pessimista, à maneira de Hyeronimus Bosch, no qual o filme faz pensar às vezes. Mas Escape é também uma espécie de western urbano, que progride com um ritmo regular, sem jamais se perder em demonstrações pesadas ou precipitadas. É neste equilíbrio constante entre o aspecto lúdico do gênero e o pessimismo da mensagem que Escape consegue se reconciliar com uma energia destrutiva à qual o cinema americano parecia ter renunciado.
Sabia-se desde alguns anos que Carpenter estava prestes a se tornar um dos metteurs-en-scène mais apaixonantes de sua geração. Sabe-se agora que ele é também um dos mais importantes. Certo, Escape from Los Angeles é talvez menos “sustentado” ( tenu) formalmente que alguns de seus últimos filmes, mas suas imagens são tão singulares e poéticas quanto: um ballet de helicópteros em plena noite, uma corrida de surf nas ruínas, uma viagem submarina nos destroços de uma cidade submersa... Os efeitos especiais, com frequência utilizados de forma exagerada nas grandes produções, servem aqui a colocar em relevo um mundo dominado pela mentira e pela ausência total de comunicação entre os seres. Nesse sentido, a cena final do filme, que repousa sobre um jogo de “faux-semblants” e de hologramas, é um modelo de inteligência e economia.
Mas com os anos Carpenter tornou-se um cineasta mais grave, mais lúcido, portanto mais insolente. Snake encontra, ao longo de seu périplo, Taslima, uma jovem aventureira que o salva das garras de um espantoso agressor. Ao curso de um curto monólogo, Taslima descreve sua existência em Los Angeles , explicando que, apesar da guerra e da violência, é-se mesmo assim livre. Sob os olhos de Snake, ela se deixa subitamente matar por uma bala perdida. Cena trágica, dirigida sem pathos, e que nos confronta com qualquer coisa de fugitivo, brutal e absurdo que é simplesmente a própria vida. Esta breve sequência é o espelho do filme, de uma invenção e simplicidade prodigiosas. Saímos de Escape com o sentimento inesperado de que o cinema pode ainda ser febril, livre e jubilatório. Pois sob seus dilúvios de explosões e ruídos, penetra paradoxalmente uma força e uma imaginação extraordinárias, aquelas de um dos maiores cineastas de sua geração.

Nicolas Saada sobre Fuga de Los Angeles
Tradução Luiz Soares Júnior.

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